O CONCEITO DE “SISTEMA DE PRECEDENTES”
A doutrina, relativamente à existência e, notadamente, à configuração e à eficácia do pretenso “sistema de precedentes” inserto no art. 927 do Novo Código de Processo Civil, divide-se em algumas correntes, que, grosso modo, cindem-se em três vertentes científico-dogmáticas, a saber: a majoritária, que propugna a existência da sistemática de precedentes e a eficácia vinculante plena dos provimentos constantes do art. 927 de nosso estatuto processual, em defesa da qual postulam, dentre outros, Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga, Rafael Alexandria de Oliveira, Hermes Zaneti Jr., Arruda Alvim; uma corrente intermediária, por assim dizer, é capitaneada por Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero, para os quais tão somente os Tribunais Superiores (por eles denominados “Cortes de Vértice” ou “Cortes de Precedentes”) são vocacionados e, por conseguinte, autorizados a emitir precedentes, sem embargo dos provimentos inscritos no art. 927 de nossa lei adjetiva.
Em outras palavras, para os referidos autores, tais precedentes são vinculantes, tanto os emanados das Cortes Superiores (quais sejam, Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal) quanto os provimentos consignados no rol constante do dispositivo retromencionado. Por derradeiro, a corrente minoritária, preconizada, dentre outros, por Lenio Luiz Streck, José Rogério Cruz e Tucci, Nelson Nery Jr, Cassio Scarpinella Bueno e Georges Abboud. Para os aludidos autores, inexiste um “sistema de precedentes” em nosso ordenamento jurídico e, a propósito, salvo a súmula vinculante e os julgados exarados em sede de controle normativo abstrato, os quais detêm o condão de vincular em razão de autorização constitucional expressa, os demais provimentos elencados na dicção do art. 927 de nosso Código instrumental não possuiriam tal eficácia e, por via de consequência, conferir-lhes interpretação vinculante seria inconstitucional. Nesse sentido, pontifica José Rogério Cruz e Tucci, verbis:
[…]daí, em princípio, a inconstitucionalidade da regra, visto que a Constituição Federal, como acima referido, reserva efeito vinculante apenas e tão somente às súmulas fixadas pelo Supremo, mediante devido processo e, ainda, aos julgados originados de controle direto de constitucionalidade (TUCCI apud CRAMER, Ronaldo. Precedentes judiciais: teoria e dinâmica. Rio de Janeiro: Forense, 2016 p. 434).
Segundo o magistério de Didier et al. (2017), há, no Brasil, uma sistemática de precedentes com força cogente, isto é, com foros de vinculação jurígena. Em outros termos, os provimentos do rol do art. 927, tendo em vista o seu peculiar aspecto relativo à razão de decidir (ratiodecidendi ou, consoante a terminologia norte-americana, holding), seriam, efetivamente, os genuínos precedentes obrigatórios. Ademais, tratar-se-ia de sistemática cuja interpretação é necessariamente extensiva, com vistas a sedimentar a conclusão segundo a qual é omissa toda e qualquer deliberação que se subtraia de apreciar e valorar quaisquer dos provimentos vinculantes a teor do art. 927 do Código de Processo Civil. Nesse sentido, impõe-se ter presente que os referidos provimentos vinculantes elencados no dispositivo supramencionado vinculam interna e externamente, isto é, vinculam o tribunal que o produziu, bem como os demais órgãos jurisdicionais que lhe são subalternos.
Por sua vez, preleciona Zaneti Jr. (2019), segundo quem a razão precípua para fins de instituição de uma sistemática de precedentes é a racionalidade, vale dizer, o pressuposto de que as deliberações jurisdicionais devem considerar com isonomia casos iguais, uma vez que, quando prolatadas as decisões, o foram com pretensão de universalidade, de modo a, em princípio, dirimir todos os casos insertos no âmbito de similitude em relação a casos futuros com os quais a decisão guarda relação de analogia. Além disso, para efeito de garantia da racionalidade, da igualdade e da previsibilidade do ordenamento jurídico, o sistema de precedentes judiciais normativos lançaria mão da razão de decidir (ratio decidendi) na condição de fiadora da confiança legítima e da segurança jurídica, as quais conferem efetividade à ordem normativa. Logo, a holding das decisões judiciais funcionaria, por assim dizer, como garante da funcionalidade do sistema normativo, de maneira a presidir de forma imparcial os atos humanos e constituir, pois, a própria premissa mesma sobre a qual se assenta o suposto de universalização. Nesse diapasão, averba o mesmo autor, in verbis:
Um modelo de precedentes é igualmente racional porque fundado na regra da universalização, ou seja, no controle das decisões exaradas pelos juízes e tribunais que devem atender a premissa de serem decisões universalizáveis para os casos análogos futuros (Zaneti Jr., 2019, p.355).
De seu turno, segundo o escólio doutrinário de Alvim (2019), a título de resposta à problemática da ausência de isonomia e de segurança jurídica, o novel Codex estatuiu um sistema que obriga o respeito a determinadas deliberações judiciais (respeito esse que deve ser considerado não em relação ao conteúdo intrínseco da decisão, mas sim em relação à decisão enquanto tal, que prescinde da qualidade do conteúdo para ser imperativa) em três vetores distintos.
A uma, impõe aos tribunais a uniformização de suas respectivas jurisprudências, em obediência aos critérios da estabilidade, integridade e coerência (art. 926 do Estatuto Processual). A duas, institui novas tecnologias de uniformização de jurisprudência, tais como o incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR), o incidente de assunção de competência (IAC) e a nova formulação do regramento normativo para fins de decisão em sede de recurso especial ou extraordinário repetitivos. A três, à luz da criteriologia de natureza tríplice (trinômio “estabilidade, integridade e coerência”), há a instituição de expedientes que visam a obstar o processamento de causas que postulem pretensões antagônicas àquelas já pacificadas pelos tribunais.
Neste passo, há quem tenha suscitado eventual inconstitucionalidade do regramento consistente no sistema de precedentes, cuja instituição demandaria mutação constitucional; anota, porém, o aludido jurisconsulto, que a disciplina se justifica na ambiência do tópico concernente à competência: teria se outorgado competência a um órgão para decidir e, em relação aos demais, restaria o mister de tão somente aplicar as teses já definidas. Por conseguinte, o sistema teria como sustentáculo o princípio constitucional implícito da segurança jurídica e realizaria, destarte, o postulado da isonomia. Convém averbar, a propósito, patente contradição em que incorreu o referido autor, litteris:
A doutrina costuma relacionar essa maior importância da jurisprudência como uma influência dos sistemas jurídicos de common law, notadamente da Inglaterra e dos Estados Unidos, onde vige a regra dos precedentes judiciais, que em alguma medida influenciou o CPC/2015. No entanto, não se pode dizer que as técnicas brasileiras são próximas ou se assemelham a um sistema de precedentes, em especial pela raiz histórica muito diversa relacionada a uma e outra tradição jurídica. Na tradição do common law, o direito nasce, preponderantemente, nas próprias decisões judiciais e não de uma lei. Em razão disso, existe desde logo a necessidade de serem observadas as decisões judiciais em casos futuros (Alvim, 2019, p.1496-1497).
Nessa perspectiva, Marinoni (2019), ancorado, igualmente, na premissa de que o lastro jurídico-constitucional do sistema de precedentes obrigatórios constante do rol do art. 927 do CPC/15 residiria no princípio da isonomia e no postulado da segurança jurídica, obtempera que a função de firmar e emitir precedentes assiste às “Cortes de Vértice” (leia-se: Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça), uma vez que o valor da igualdade, em sendo realizado empiricamente por meio da vinculação dos juízes e tribunais a quo ao “Direito” confeccionado por tais “Cortes Supremas”, conduziria à estabilização das expectativas sociais alusivas à proteção da confiança, de molde a solidificar a noção mesma de igualdade material e, ao fim e ao cabo, consolidar, de fato, o postulado constitucional da segurança jurídica.
Ato contínuo, o respectivo autor advoga a tese de que incumbe a tais “Cortes de Precedentes” atribuir sentido ao Direito e dar-lhe desenvolvimento. Em outras palavras, tais Cortes seriam as responsáveis por interpretar o texto normativo e extrair-lhes, na condição de produto, a norma, a título de resultado da interpretação. Logo, aos tribunais que lhes são hierarquicamente subordinados, restaria tão somente a aplicação de tais “precedentes” (os provimentos consignados no art. 927 do Código de Processo Civil, bem como outras decisões cuja razão de decidir (ratio decidendi) sirva de diretriz hermenêutica para os demais tribunais e juízes singulares).
Nesse particular, Mitidiero (2018) é deveras elucidativo quando argumenta no sentido de que as Cortes de Precedentes tem por função, em vista da superveniência da sistemática de precedentes no bojo do CPC/15, emitir interpretação prospectiva e unidade ao Direito por meio da confecção de precedentes, razão pela qual referidas Cortes devem ter, a seu sentir, suas atividades condicionadas à consecução deste desiderato. Nesse sentido, sobremodo esclarecedor o magistério de Sérgio Arenhart em coautoria com os dois autores supracitados:
Os juízes e tribunais interpretam para decidir, mas não existem para interpretar; a função de atribuição de sentido ao Direito ou de interpretação é reservada às Cortes Supremas. No momento em que os juízes e tribunais interpretam para resolver os casos, colaboram para o acúmulo e a discussão de razões em torno do significado do texto legal, mas, depois da decisão interpretativa elaborada para atribuir sentido ao Direito, estão obrigados perante o precedente (Marinoni, Mitidiero, Arenhart, 2015, p.105).
Em contrariedade absoluta às doutrinas anteriores, é forçoso trazer à baila o magistério de Abboud (2019), segundo o qual não existe, em nossa ordem normativa, o tão propalado sistema de precedentes, tampouco tal sistemática estaria sob a gestão e operação do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal.
Em primeiro lugar, em procedendo a uma aferição do common law, notadamente da doutrina dos precedentes e do instituto do staredecisis, verificar-se-á a inviabilidade de instituição de tais expedientes técnico-jurídicos no sistema jurídico pátrio por meio de mudanças na legislação infraconstitucional.
A uma, posto que o sistema de precedentes e o stare decisis não se sedimentaram no common law abruptamente; pelo contrário, são produtos da dinâmica histórico-social daquelas sociedades de cariz anglo-saxão, de maneira que, ad exemplum, nos Estados Unidos ou na Inglaterra, o respeito ao precedente é viável ainda que não haja qualquer dispositivo constitucional ou legal que exteriorize a obrigatoriedade de adotá-lo ou que lhe atribua efeito vinculante. A duas, relativamente à função de “Corte de Precedentes”, os paladinos de tal tese (Marinoni e Mitidiero) escamoteiam o seu genuíno intento, a saber: suas respectivas doutrinas consubstanciam uma proposição jurídica de lege ferenda consistente em uma utopia precedentalista da preeminência das Cortes de Vértice, cuja jurisdição consistiria, por assim dizer, em ressignificar e outorgar sentidos aos textos normativos e, em última análise, seria um locus privilegiado de conformação normativa mediante a concessão de unidade ao Direito por meio da construção de precedentes. Em suma, as “Cortes de Precedentes” teriam o monopólio da interpretação; os tribunais e os juízes singulares, o oligopólio da aplicação. A essa luz, é imprescindível trazer à tona a lição percuciente de Lenio Luiz Streck, qual seja:
A tentativa de outorgar eficácia vinculante às decisões dos Tribunais Superiores, a quem caberia a função de interpretar e estabelecer o sentido dos textos normativos, ficando os demais juízes e tribunais obrigados a seguir (independentemente do seu conteúdo) os supostos “precedentes”, na medida em que sua função se resumiria à de “aplicá-los”, mesmo que desconformes à própria lei e à Constituição, padece de uma indiscutível inconstitucionalidade. Estaria o Novo Código de Processo Civil e, quiçá, a própria doutrina processual modificando competências jurisdicionais dos Tribunais, o que somente pode ser feito por Emenda à Constituição? (Streck, 2019, p.44).
Nesse particular, vale salientar, por oportunas e preciosas, as lições de Nery Jr. (2020), para o qual, outrossim, inexiste o sistema de precedentes, quer sob o ângulo dos provimentos previstos no art. 927 do Código de Processo Civil, quer sob o prisma da interpretação emanada dos Tribunais Superiores, nomeadamente do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.
A tônica de sua crítica abalizada centra-se, em primeiro lugar, na força normativa da Constituição, bem assim no princípio da legalidade estrita. Como é cediço, é despicienda a circunstância de o Código de Processo Civil fazer menção a que os juízes e tribunais devam cumprir a Constituição e as leis. A Constituição, na qualidade de Lex Legum (lei das leis) deve ser observada e aplicada por todo e qualquer magistrado. Nesse tocante, por igual, a lei vincula e, portanto, ninguém está a obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (Art. 5°, II, CF). Por conseguinte, juízes e tribunais estão obrigados a observar e fazer respeitar a Constituição e as leis do país.
No que concerne ao rol componente do “sistema de precedentes”, inscrito no artigo suprarreferido, cujos incisos conformam, por assim dizer, a pretensa sistemática de aplicação de precedentes obrigatórios, consideram-se, exceto os dois primeiros incisos (de vinculação obrigatória em razão de comando constitucional expresso), todos inconstitucionais em virtude de flagrante ausência de autorização constitucional.
No que tange, ademais, à tese da conformação do sistema de precedentes via interpretação oriunda dos Tribunais Superiores, tal é inconstitucional, dado que, segundo o sistema constitucional brasileiro, inexiste a aventada hierarquia hermenêutica. Logo, vinculação a preceitos abstratos e genéricos, é dizer, com contornos de lei, apenas mediante autorização da Lex Fundamentalis, a qual, por ora, inexiste em nosso ordenamento. STF e STJ, consoante a Lei Maior (arts. 102 e 105 da CF) decidem casos concretos. Salvo a edição de súmula vinculante, não há a confecção de preceitos gerais e abstratos com o condão de vincular os demais órgãos integrantes da magistratura. Não são Tribunais construtores de teses. Em síntese, conferir eficácia aos incisos III a V do art. 927 do novel Código configura inobservância ao devido processo legal, ao postulado da legalidade estrita (de matriz constitucional) e, sobretudo, ao legado construído na última metade do século XX consistente na força normativa da Constituição.
A DEFINIÇÃO DE “PRECEDENTE”
A definição de “precedente” é eminentemente relevante para o pleno desate epistemológico do presente trabalho, por força do qual os contornos, por assim dizer, científico-dogmáticos da categoria jurídica ora em análise serão de absoluta monta para fins de pacificação de controvérsias que, hodiernamente, suscitam disceptação no seio da doutrina nacional. Logo, esta monografia detém a pretensão de ostentar a condição de contributo no que atina às perplexidades e dissidências em torno do tema e, por via de consequência, a título de consectário lógico, divisar e delimitar o conceito em razão do qual subsistem tais dissensos na comunidade jurídica, o qual, à evidência, constitui o cerne da investigação, qual seja: a definição (natureza jurídica) do autêntico “precedente”.
Segundo as lições de Didier et al. (2017), em sua acepção ampla, precedente é o decisum levado a efeito à vista de um caso em sua concretude, cujo aspecto jurídico, considerado em seu núcleo essencial, pode funcionar como baliza para efeito de julgados subsequentes, contanto que com estes detenha relação de analogia. O precedente, ademais, constitui-se das circunstâncias factuais inerentes ao caso concreto; da tese ou postulado jurídico ínsito à fundamentação (ratio decidendi) da providência judicial, e dos argumentos propriamente jurídicos esgrimidos para o desenlace da controvérsia.
Destarte, malgrado, via de regra, faça-se menção à eficácia vinculante (obrigatória) ou persuasiva do precedente, faz-se mister depreender que o aspecto nuclear que, efetivamente, pode ter natureza obrigatória ou persuasiva é a sua ratio decidendi, a qual é tão somente um dos aspectos integrantes do precedente. Em realidade, stricto sensu, o precedente, em sua definição mais exata e com foros mais precisos, consiste, em verdade, na ratio decidendi. Neste passo, faz-se imperiosa a preleção de Lucas Buril Macêdo, é dizer:
Em sentido próprio, continente ou formal, é fato jurídico instrumento de criação normativa, em outras palavras: é fonte do Direito, tratando-se de uma designação relacional entre duas decisões. Já precedente em sentido impróprio é norma, significado alcançado por redução do termo “norma do precedente”, que é precisamente a ratio decidendi. Esse sentido é também o substancial (MACÊDO, 2014, p.92-93).
No mesmo diapasão, o magistério de Zaneti Jr. (2019), para quem os precedentes constituem o produto da consolidação de normas estatuídas relativamente à apreensão de um caso à luz de suas circunstâncias factuais e normativas. Nesse sentido, quando da ocasião da aplicação propriamente dita do precedente ao conflito de interesses, extrai-se, para fins de applicatio, a ratio decidendi ou holding na qualidade de busílis do precedente.
Além disso, o precedente pode ser definido tendo por lastro tão somente uma decisão judicial, ainda que possam ser considerados sob o enfoque de uma sequência de deliberações, constitutivas de uma cadeia de precedentes; necessita-se, porém, de apenas e tão somente um leading case que crie, altere, ou acrescente uma novel tese jurídica a fim de consolidar um precedente. Logo, precedente distingue-se de jurisprudência e decisão judicial. Esta, a depender de sua holding, pode ou não consubstanciar um precedente; essa, a depender da harmonia inerente às razões de decidir das decisões reiteradas emanadas do tribunal, pode ou não consubstanciar precedentes; aquele, obrigatória e necessariamente, deve carregar consigo uma ratio decidendi que enseje a criação, alteração ou acréscimo de uma nova tese jurídica apta a integrar o ordenamento normativo na condição de jus novum.
Em suma, os precedentes serão tidos como tais quando caracterizarem adições importantes aos textos normativos para fins de dirimir conflitos de interesse. Logo, se o precedente for aplicado sem nenhum aditivo semântico em cotejo com a lei que lhe é subjacente e, portanto, sem adicionar-lhe teor normativo relevante, a vinculação defluirá diretamente da lei. Vê-se, pois, que decisão e precedente são categorias jurídicas distintas. Não será precedente, em resumo, a decisão da qual não emanar uma regra jurídica ou um princípio universalizável, exempli gratia. Nessa perspectiva, é forçoso colacionar escólio doutrinário do mesmo autor, in verbis:
Por tais razões, os precedentes devem ser tratados como norma – fonte do Direito primária e vinculante – não se confundindo com o conceito de jurisprudência ou de decisão. Isso ocorre seja pela natureza distinta do direito jurisprudencial (reiteradas decisões dos tribunais que exemplificam o sentido provável de decisão, sem caráter obrigatório e vinculante), seja porque não se podem confundir precedentes com decisões de mera aplicação de lei ou de reafirmação de casos-precedentes (ZANETI JR., 2019, p.330).
A essa luz, pontifica Alvim (2019), em consonância com os autores supramencionados, que, conquanto o critério para determinar que as decisões de vinculação cogente (precedentes) no Estatuto Processual de 2015 (art. 927) seja meramente formal, é o teor da deliberação, isto é, o seu conteúdo intrínseco qualitativamente considerado, que deve ser vinculante. Em outras palavras, são as razões de decidir de que se valeu o tribunal que devem ser vinculantes em relação aos julgadores futuros.
Nesse particular, são os motivos determinantes da decisão que consolidam a tese que deverá operar na aplicação da decisão a título de precedente em casos outros. Logo, em relação análoga ao common law, é indispensável que o magistrado, ao aplicar um precedente, extraia dele suas razões de decidir, é dizer, sua ratio decidendi. Por conseguinte, todos os elementos constantes da fundamentação da decisão que puderem ser expungidos sem, entretanto, infirmar a conclusão perfilhada não é ratiodecidendi; é, pois, obter dicta(dito de passagem), como sói dizer na ambiência do common law, razão pela qual são elementos não detentores do condão de vinculação.
Logo, posto que determinados provimentos (precedentes) possuem força vinculante, a construção e a cristalização de uma tese já deverão, em prol da operatividade e, sobretudo, da funcionalidade do sistema, exteriorizar a razão de decidir, com vistas a coadjuvar a atividade judicante que, no futuro, incumbir-se-á da aplicação. A propósito, vale encartar citação em que o mesmo autor, ao discorrer sobre o modo mediante o qual os referidos provimentos vinculam, mormente quanto à dicotomia entre formalidade e substancialidade para fins de vinculação, deixa entrever contradição entre os critérios. Em síntese, verbis:
O CPC/2015 adota um critério formal de identificação das decisões de observância obrigatória. Não é o conteúdo das decisões que dá a elas sua normatividade elevada, mas sim sua própria imperatividade. Assim, o art. 927 prevê: “Os juízes e os tribunais observarão” as decisões elencadas. Observar, como dito acima, deve ser entendido no sentido de “levarão em consideração”, pois, para seguir o entendimento do tribunal, o Judiciário deve, ao menos, ter em conta a existência da jurisprudência. Afinal, distanciar-se do direito jurisprudencial requer que o julgador se desincumba de um ônus argumentativo específico. A distinção ou superação do precedente apenas são possíveis mediante o exercício de um maior ônus argumentativo por parte do julgador, isso porque subsiste a presunção em favor do precedente (ALVIM, 2019, p.1495).
Em sentido diametralmente oposto, Abboud (2019) leciona que há, em parcela considerável de nossa doutrina, certo fetiche no tocante ao common law, com fulcro no qual, em princípio, são justificadas inúmeras teorias, dentre as quais as “precedentalistas” que residem no bojo do CPC/15. Nessa trilha, bem examinados os incisos do art. 927 do CPC, sequer pode-se conceber como tentativa de instituição do stare decisis, visto que nenhum dos aludidos incisos existem nos sistemas jurídicos de matriz anglo-saxã. Em verdade, em vez de conformarem um sistema de “precedentes”, encerram, tão somente, um expediente normativo que visa a reduzir o fenômeno da litigiosidade recorrente.
Além disso, sem embargo de afirmar que, no common law, o fundamento vinculante em um precedente é, com efeito, a ratiodecidendi, sucede que ratio decidendi e obter dictum não são substancialmente insuscetíveis de confusão. Logo, um critério reputado irrelevante para o deslinde de uma decisão judicial pode, sem maiores problemas, convolar-se em essencial em interpretação ulterior do mesmo precedente. Nesse sentido, o objeto mesmo da holding é, igualmente, passível de limitações e dilatações à vista de um novo caso concreto, em virtude do qual pode-se ampliar ou restringir o espectro semântico da ratio decorrente do caso anterior julgado, cuja decisão serviria, pois, de “precedente”.
A par da constatação de que tais provimentos vinculantes não se confundem com os precedentes do common law, não se lhes pode imputar funções e encargos para os quais não são vocacionados. Constituem, apenas, provimentos vinculantes destinados a servir de expedientes normativos obstativos de processos repetitivos, de sorte que não apreendê-los em sua precisa juridicidade pode inviabilizar sua aplicação em harmonia com a Carta Política, bem assim com a legalidade vigente. Neste passo, preleciona Nelson Nery Jr, litteris:
Porém, o precedente, no common law, vai muito além da simplificação do julgamento que é normalmente enxergado pela doutrina nacional, de modo geral. O precedente, ali, não funciona como uma simples ferramenta de simplificação de julgamento; invoca-se o precedente porque se pretende que há nele uma analogia, substancialmente falando, que permite que o princípio que justifica o caso anterior cubra também o novo caso. Vai-se do particular ao geral e não do geral ao particular, como é típico do sistema anglo-americano e inverso do nosso (NERY JR., 2020, p.1930).
Em endosso à parcela da doutrina que verbera a existência dos “precedentes”, averba Streck (2019) no sentido de que o postulado do Estado de Direito, com seus corolários lógico-jurídicos (a autoridade da Constituição Federal e da Lei em sentido estrito) obstam a instituição de precedentes na modalidade de um Direito, por assim dizer, jurisprudencial. Nesse norte, amparado no “Rule of law, not of man”, tem-se que a existência de corpos legislativos de cunho político-deliberativo não configura mera eventualidade; pelo contrário, constituem a razão mesma de um desenho jurídico-democrático voltado à absorção institucional dos incomensuráveis valores plúrimos inerentes à sociedade contemporânea.
Logo, à luz do postulado do Estado de Direito, não há como autorizar, sob nenhum título, forma ou pretexto, a manipulação do eixo deliberativo democrático para órgãos decisórios outros, sobre os quais não repousa autorização constitucional e, sobretudo, legitimidade popular. Ademais, há questões semânticas com as quais os “precedentes” não se harmonizam. Em primeiro lugar, não há no Estatuto Processual Civil alusão a “precedentes vinculantes”; há, sim, menção a súmulas vinculantes (que detêm extração constitucional, por sinal). Em segundo lugar, nossa Lei Adjetiva vale-se da locução “precedente” em quatro ocasiões, e em nenhuma delas faz referência a “precedentes vinculantes”. Em terceiro lugar, o Codex, em nenhum excerto, atrela “precedente” a Tribunais Superiores, de forma que seria sobremodo temerário afirmar que aludidas Cortes seriam “Cortes de Precedentes”. Em suma, com supedâneo na teoria do Direito e na dogmática (CF e Leis), não há como afirmar, para longe de qualquer questionamento minimamente válido, a existência inconteste da lógica dos “precedentes”.
OS PROVIMENTOS VINCULANTES
O conceito de provimentos vinculantes é sobremaneira essencial para divisar e, sobretudo, distinguir o que são efetivamente estes e apartá-los, a fim de não confundi-los, dada a sua funcionalidade no contexto da dogmática atual e, em especial, no que toca ao seu manejo por juízes e tribunais, com os genuínos precedentes oriundos do sistema do common law, os quais estão sustentados pela doutrina do stare decisis, cuja existência é o alicerce do lídimo “sistema de precedentes”, o qual vincula toda e qualquer matéria objeto da decisão tida por precedente no âmbito daquele sistema jurídico.
Em outras palavras, os provimentos vinculantes constantes do rol do art. 927 não são vocacionados a contemplar todas as matérias inerentes ao nosso sistema jurídico, dentre as quais, exempli gratia, o Direito Eleitoral, o Direito do Trabalho, o Direito Militar, entre outros. Logo, impõe-se delimitar o espectro de atuação dos referidos provimentos.
Segundo prelecionam Streck e Abboud (2016), não há equiparação possível entre os genuínos precedentes e a jurisprudência vinculante à brasileira. Nessa perspectiva, a circunstância de o art. 927 do Estatuto Processual de 2015 enumerar numerosos provimentos que passaram a ser cogentes não pode conduzir à leitura errônea de conceber-se que súmula, acórdão que julga Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) e Incidente de Assunção de Competência (IAC), bem como recurso extraordinário ou especial julgados sob a sistemática dos recursos repetitivos são categorias jurídicas que se ombreiam aos fidedignos precedentes. Constituem, pois, tão só, provimentos vinculantes por disposição legal. Neste passo, quanto à distinção epistemológica entre as categorias normativas, deveras elucidativo o escólio doutrinário de Cassio Scarpinella Bueno. In verbis:
Apresso-me a lembrar que a palavra “precedente” não se trata dos precedentes típicos (e inerentes) ao Common law. O que o dispositivo quer, nesse caso, é que os enunciados de Súmula guardem correspondência ao que foi efetivamente julgado nos casos concretos que lhe deram origem. Trata-se, pois, de mera palavra que está sendo empregada como sinônimo de caso julgado para coibir o que acabei de evidenciar. Nada além disso (BUENO, 2017, p.635).
A esse propósito, consoante abalizada doutrina de Streck e Abboud (2016), o Código de Processo Civil de 2015 instituiu provimentos jurisdicionais cogentes com vistas a minorar a litigância recorrente, por força da qual as Cortes de Justiça, notadamente os Tribunais Superiores, estão absolutamente assoberbados, circunstância que compromete a qualidade da prestação jurisdicional do País; não se pode, entretanto, igualar o rol do art. 927 de nossa Lei Instrumental a um soi disant “sistema de precedentes”, sob pena de desnaturarmos a funcionalidade da novel disciplina processual.
Nesse sentido, os referidos expedientes constantes do aludido rol devem ser reputados provimentos judiciais legalmente vinculantes; é dizer, dispositivos que visam a reduzir a complexidade do enfrentamento aos litígios de cunho repetitivo, razão de ser da implementação legislativa de tais mecanismos. Por conseguinte, toda e qualquer consideração que tencione equalizá-los a “precedentes do common law” padece de déficit epistemológico e, portanto, de rigor científico.
O motivo subjacente, porém, de tal confusão é o intento de outorgar às Cortes Superiores a resolução de tal disfuncionalidade mediante a confecção de “precedentes”. Em outras palavras, muda-se do mito da completude normativa da lei para a plenitude normativa dos “precedentes”; altera-se o juiz “boca da lei” para o juiz “boca dos provimentos vinculantes”, olvidando-se do fato de que ambos, tanto leis quanto provimentos, são textos normativos e, por via de consequência, passíveis, igualmente, de interpretação ante um caso concreto.
Não se concebe uma lei, um precedente ou uma decisão vinculante abarcando a norma de per si para fins de dirimir uma multiplicidade de casos. Tal visão, à luz da moderna teoria do Direito, é utópica e inviável. A norma não existe em si mesma, porquanto é elaborada em cada processo subjetivo em termos de decisão jurídica, é dizer, não há norma in abstracto; é, pois, construída in concreto e jamais pode ser ante casum. Nesse particular, urge trazer à baila o magistério de Nelson Nery Jr.,a saber:
Saímos, portanto, do perigo e da inconveniência do juiz boca da lei, para ingressarmos no incógnito juiz boca dos tribunais. Assim como o juiz não é a boca da lei, pois a interpreta, analisa os fins sociais a que ela se destina para aplicá-la ao caso concreto, culminando com a sentença de mérito que é a norma jurídica que faz lei entre as partes, o juiz também não é a boca dos tribunais, pois deve aplicar a súmula vinculante e o resultado da procedência da Adin ao caso concreto (Nery Jr., 2020, p.1934).
Nessa perspectiva, Bueno (2017) nos informa que os arts. 926 e 927, que consubstanciam o regramento normativo dos provimentos vinculantes, têm por escopo fazer as vezes do famigerado e vetusto “incidente de uniformização de jurisprudência”, cuja disciplina jurídica constava dos arts. 476 a 479 do CPC de 1973, de maneira que é sumamente relevante concebê-los na condição de normas que trazem consigo diretrizes de otimização das deliberações emanadas dos Tribunais Superiores e dos efeitos que o Código de Processo Civil de 2015 pretende sejam deferidos a tais decisões, a fim de que estas operem sobre a atuação de todos os graus de jurisdição.
Não há, contudo, no CPC/2015 nenhum elemento que autorize a formulação de afirmativas genéricas por parte dos Tribunais Superiores, a serem observadas pelos demais Tribunais e juízes singulares, tampouco há a tônica segundo a qual o Direito Brasileiro migra em direção ao common law ou posturas afins, muito embora seja esse o norte para o qual aponta o art. 927, à nitidez. Em contrapartida, malgrado a existência de tais ponderações, não se pode prescindir do potencial de tais provimentos vinculantes e dos demais dispositivos que lhes são correlatos.
Ademais, em que pese seja desconsiderado o efeito vinculante dos dispositivos cuja constitucionalidade é controvertida, vale dizer, sem embargo das decisões prolatadas pelo Pretório Excelso em sede de controle normativo abstrato (art. 102, §2°, da CF) e de suas respectivas súmulas vinculantes (art.103-A da CF), não há motivo para menosprezar a força persuasiva do rol do art. 927 e a necessidade premente de serem estatuídas genuínas medidas de caráter público com vistas a instituir racionalidade e funcionalidade no âmbito das decisões judiciais e, notadamente, no tocante ao respeito às decisões dos Tribunais brasileiros, de maneira a viabilizar, destarte, o postulado da efetividade das decisões judiciais. A essa luz, as lições de Georges Abboud, litteris:
Já no que diz respeito ao âmbito prático, não compreender que nossos provimentos vinculantes são mecanismos judiciais de contingenciamento de processos repetitivos, impossibilitará sua aplicação em conformidade com a Constituição Federal, assegurando ao jurisdicionado o respeito ao contraditório e o direito à decisão judicial não discricionária e fundada na legalidade vigente, respeitando sempre a ordem hierárquica, Constituição, leis, provimentos vinculantes (Abboud, 2019, p. 1109).
Nesse diapasão, obtempera Alvim (2019) no sentido de que os provimentos vinculantes constituem o denominado Direito Jurisprudencial. Este consiste nas decisões emanadas das Cortes Superiores, na medida em que seus entendimentos pacificados caracterizam, por assim dizer, um “norte” interpretativo para os demais órgãos exercentes da atividade judicante. Neste passo, seja para fins de applicatiode uma tese oriunda de um provimento vinculante, seja para efeito de rejeitar-lhe aplicação in concreto, os magistrados deverão, à luz da novel disciplina processual, observar o assim cognominado Direito Jurisprudencial. Se, no entanto, os juízes quiserem rejeitar aplicação a algum provimento vinculante, devem fazê-lo mediante as técnicas próprias, quais sejam, a distinção (distinguishing) e a superação (overruling).
Em outras palavras, em honra ao princípio da segurança jurídica, da isonomia, da proteção da confiança e da previsibilidade das expectativas sociais, impõe-se um ônus argumentativo a todo e qualquer magistrado que julgue pertinente se desvencilhar da compreensão hermenêutica das Cortes Superiores se julgar insuficiente a tese para fins de deslinde do caso concreto sob sua apreciação.
Além disso, nos países em que há um escalonamento entre os Tribunais, isto é, uma estrutura hierarquizada, impõe-se, igualmente, uma hierarquia hermenêutico-normativa; do contrário, tornar-se-ia disfuncional o sistema jurídico, sob pena de, em não sendo conferida a última palavra acerca da interpretação do Direito aos Tribunais Superiores, tornar-se contraproducente a própria jurisdição, uma vez que os magistrados e Tribunais inferiores, caso desrespeitem as teses advindas dos precedentes vinculantes das Cortes Superiores, terão seus julgados dissonantes reformados por tais Cortes de Vértice, de sorte que tal conduta jurisdicional destoante, além de rebelde ao pleno funcionamento da Administração da Justiça, desbordaria, em última instância, do anseio social de segurança jurídica e, ao fim e ao cabo, relegaria ao menoscabo o ideal de pacificação social, razão de ser do Direito, seja qual for a tradição jurídica à qual se filia e da qual é tributário. Nesse aspecto, são “precedentes” os provimentos vinculantes (decisões de observância solenemente obrigatória) os pronunciamentos enquistados no rol do art. 927, bem como as decisões exaradas em sede de recurso extraordinário sob a sistemática da repercussão geral.
ANÁLISE CONSTITUCIONAL DO ART. 927 DO NCPC
A análise da constitucionalidade do art. 927 é postura que se impõe com vistas a aferir a legitimidade do soi disant “sistema de precedentes” ou dos assim denominados provimentos vinculantes por previsão legal, de cujo exame se verificarão necessária e forçosamente os efeitos que tais mecanismos podem, eventualmente, ensejar em nosso ordenamento jurídico, haja vista a tradição jurídica de que o Direito Brasileiro é tributário (tradição romano-germânica).
Nessa medida, ter presente os impactos intrínsecos e extrínsecos que podem ser ocasionados por tais expedientes processuais é sumamente relevante, notadamente sob o ângulo da funcionalidade ou disfuncionalidade, porquanto, se levados a efeito e adotados na qualidade de diretriz em matéria de aplicação do Direito, podem acarretar no âmbito mesmo da jurisdição constitucional uma “fratura” institucional, em decorrência das competências e atribuições que estão inscritas na Carta Política, da qual emana a concepção de desenho institucional vigente e à qual, até o presente momento, rende-se obediência (Rule of law).
Consoante o magistério de Gonçalves (2018), tendo em vista a circunstância de que o nosso sistema se filia ao Civil Law e, atualmente, ensaia uma atenuação em decorrência da importação de institutos típicos do Common Law, a exemplo da pretensa instituição do sistema de precedentes vinculantes, subjaz às mudanças legislativas a preocupação com a implantação de um Direito Jurisprudencial, é dizer, tornar a jurisprudência fonte primária do Direito, sob a justificativa jurídica de que referidas alterações conformariam os contornos necessários do postulado da isonomia, do princípio da segurança jurídica e, em especial, do princípio da proteção da confiança, de tal forma a municiar os jurisdicionados com as legítimas expectativas jurídico-sociais que um ordenamento normativo deve inspirar no contexto da sociedade, razão pela qual reza o Estatuto Processual de 2015 que os Tribunais devem manter a sua jurisprudência “estável, íntegra e coerente” (Art. 926).
Ocorre, porém, que a disciplina inscrita no art. 927 suscita estranheza. E causa espécie justamente em razão da determinação categórica do caput do artigo retromencionado, segundo o qual a lei criaria hipóteses de provimentos vinculantes, os quais não detêm previsão na Constituição Federal. Relativamente aos dois primeiros incisos, a eficácia obrigatória e, portanto, o condão da vinculação detém extração constitucional; os demais incisos, todavia, padecem de inconstitucionalidade, de vez que não é juridicamente possível criar casos de vinculação de jurisprudência fora das hipóteses elencadas numerus clausus na Carta Magna e, sobretudo, mediante lei ordinária. Logo, tais eivas de inconstitucionalidade podem ser reconhecidas por meio do controle difuso de constitucionalidade, exercitável por todo e qualquer magistrado.
Na mesma senda, Nery Jr. (2020) ensina que o preceito supramencionado é imperativo, de modo que, em tese, vide a mens legislatoris, seria de obediência obrigatória pelos juízes e Tribunais, posto que o legislador ordinário os instituiu como provimentos que carregam consigo caráter abstrato e geral; sucede, entretanto, que, visto que não houve alteração de estatura constitucional para facultar ao Judiciário a prerrogativa de legislar fora da hipótese de edição de súmulas vinculantes e, por via de consequência, não se obedeceu ao devido processo constitucional, não se pode assentar a legitimidade constitucional do respectivo instituto. Logo, é cediço que a criação de decisões vinculantes depende de autorização constitucional; optou-se, entretanto, por uma lei ordinária, caminho flagrante e sabidamente inconstitucional. Tais ferramentas, por conseguinte, são tão somente meios de uniformização de jurisprudência, sem, portanto, nenhum cunho vinculante ou caráter obrigatório. Esta é a funcionalidade que deles pode emanar sem que lhes pronuncie a inconstitucionalidade in casu. Nesse diapasão, oportunas as lições de José Rogério Cruz e Tucci, a saber:
Salta aos olhos o lamentável equívoco constante desse dispositivo, uma vez que impõe aos magistrados, de forma cogente – “os tribunais observarão” – , os mencionados precedentes, como se todos aqueles arrolados tivessem a mesma força vinculante vertical. Daí, em princípio, a inconstitucionalidade da regra, visto que a Constituição Federal reserva efeito vinculante apenas e tão somente às súmulas fixadas pelo Supremo, mediante devido processo e, ainda, aos julgados originados de controle direito de constitucionalidade (TUCCI, 2015, p.454).
Em contrapartida, Zaneti Jr. (2019) propugna que a vinculação plena dos incisos III, IV e V do art. 927 de nossa Lei adjetiva se justifica em razão da gradual incorporação do stare decisis em nossa ordem normativa. Ademais, inexiste inconstitucionalidade, uma vez que não há transgressão normativa aos postulados da separação de poderes e da legalidade estrita, porquanto se vincula tão somente o Poder Judiciário, razão pela qual, a rigor, respeitar-se-ia o princípio da legalidade estrita, posto que a vinculação está solenemente consagrada na lei em sentido formal. A propósito, em sendo procedente tal crítica, ter-se-á que considerar, igualmente, os dois primeiros incisos do supracitado dispositivo como inquinados de inconstitucionalidade, dado ser algumas vinculatividades dele decorrentes estatuídas mediante a edição de emenda constitucional. Se a premissa da legalidade estrita e da separação de poderes, que são cláusulas pétreas e, por conseguinte, obstativas de emenda constitucional, forem levadas às últimas consequências jurídico-institucionais, tais institutos também seriam, à evidência, inconstitucionais. Em crítica a esta noção conceitual de stare decisis, preleciona Georges Abboud, in verbis:
Todavia, no Brasil, o que se constata é que o maior problema da adoção dessa perspectiva não são as tentativas legislativas de pretender instituir o staredecisis no sistema pátrio. O maior risco que essas reformas trazem é que, no afã de implantar o sistema de precedentes em nosso ordenamento, tais reformas suprimam garantias fundamentais, posto ignorar a flexibilidade ínsita ao sistema de precedentes do common law (ABBOUD, 2019, p.1008-1009).
Outra corrente doutrinária, capitaneada por Marinoni (2019), preconiza a constitucionalidade dos expedientes descritos no rol do art. 927, contanto que tais provimentos ou precedentes sejam emanados das “Cortes Supremas” ou “Cortes de Precedentes” (a saber: Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal). À Corte de Precedentes compete garantir a unidade da interpretação do Direito Positivo, mediante a interpretação cogente que referidas Cortes outorgam aos mais variados textos normativos, extraindo-lhes as respectivas normas, as quais serão aplicadas, de forma isonômica, pelas Cortes Inferiores e juízes monocráticos.
Tal vertente sustenta a aludida doutrina edificando-se no valor da igualdade, que deve presidir as relações jurídico-sociais. Uma vez absorvido tal componente axiológico das decisões das “Cortes de Vértice”, das quais defluiriam os precedentes a serem observados, consolidar-se-ia um procedimento que respeitaria o progresso da vida ético-social, aberta à dinâmica da vida gregária e suas complexidades ínsitas, de tal forma a otimizar os princípios fundamentais da ordem jurídica e dirimir-lhe os conflitos imanentes a fim de chegar-se à devida pacificação social. Nessa medida, faz-se mister colacionar o magistério de Luiz Guilherme Marinoni, litteris:
Nos Estados contemporâneos, em que a adequada distribuição de justiça exige muitos juízes e diversos tribunais, é necessário que os casos, após as manifestações das Cortes Supremas, sejam solucionados mediante a mesma regra ou interpretação, sob pena de não se viver em um Estado de Direito, mas sim num Estado de múltiplas e incoerentes opiniões de quem se arroga no poder de afirmar o direito (MARINONI, 2015, p.2072).
Na mesma linha teórico-dogmática, Mitidiero (2018) advoga a tese segundo a qual as Cortes de Precedentes, que também recebem a designação de “Cortes Supremas’, tem por função precípua imprimir interpretação prospectiva e unicidade ao Direito Positivo por meio da técnica de criação de precedentes. Respectivas Cortes não atuam, em rigor, para conhecer dos casos concretos decididos pelas demais Cortes (alcunhadas de “Cortes de Justiça”); noutros termos, não devem sindicar as decisões das Cortes de Justiça em caráter retrospectivo; pelo contrário, devem exercer a função de faróis exegéticos na qualidade de orientação hermenêutica a ser seguida pelas “Cortes de Justiça”, bem como por seus respectivos magistrados de piso. Sem prejuízo das demais atribuições a elas deferidas, tal seria, por excelência, sua função constitucional.
Em posição crítica relativamente à tese doutrinária defendida pelos autores supra, Zaneti Jr. (2019) pontifica, malgrado reconheça que há a necessidade de respeito à unidade do ordenamento jurídico e, igualmente, deve-se render observância ao exercício judicante jus constitutionis desempenhado pelas Cortes Supremas, sem o qual não se poderia falar em provimentos normativos formalmente obrigatórios, tendo em vista o protagonismo de aludidas Cortes no que concerne à edificação deste modelo institucional, não se pode olvidar da premissa erigida pela Teoria do Direito de acordo com a qual o Direito regula, outrossim, suas fontes, bem como sua criação.
Dado que o Direito é estatuído, por assim dizer, artificialmente, revela-se inviável outorgar a prerrogativa de emissão de precedentes apenas e tão somente às Cortes Supremas, notadamente na ordem normativa pátria, em cujo regramento jurídico (art. 927 CPC/15) não há referida prescrição ou referência, ainda que remota, a tal distinção institucional. Logo, serão reputadas precedentes as decisões, ainda que não dimanadas das Cortes Supremas, contanto que, por óbvio, atenham-se ao seu espectro de atribuição jurisdicional formal e, por via de consequência, observem as decisões dos Tribunais que lhes são formal e hierarquicamente superiores. Nesse sentido, em crítica percuciente à tese das “Cortes de Vértice”, ressalte-se a preleção de Lenio Luiz Streck, qual seja:
Querem transformar o nosso Direito em um “sistema” de precedentes e teses. O Ministro Luís Roberto Barroso, do STF, é entusiasta das “teses”. Como se precedente fosse uma tese ou uma tese fosse igual a um precedente. Na verdade, por trás disso, há uma tese, consciente ou inconsciente, de cunho realista: querem substituir o Direito Posto (leis, Constituição Federal) por teses feitas pelas Cortes Superiores. Ou “decretar” – como fez o ministro Edson Fachin no RE 655.265 – que já vivemos, com o novo CPC, no common law porque adotamos o stare decisis. Resultado: o Direito é aquilo que as Cortes Superiores dizem que é. E as decisões são resultantes de um ato de vontade. É o que sustentam os adeptos da tese de que os tribunais superiores devem ser Tribunais de Precedentes. Ou Cortes de Vértice (STRECK, 2019, p.15).
Em favor da constitucionalidade plena do art. 927, Didier Jr., Braga e Oliveira, (2017, p.526), para quem “O art. 927 do CPC inova ao estabelecer um rol de precedentes obrigatórios, que se distinguem entre si pelo seu procedimento de formação”. Em igual sentido, Alvim (2019, p.1495), para o qual “O CPC/2015 adota um critério formal de identificação das decisões de observância obrigatória”.
PRECEDENTES E JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL
A relação existente entre o “sistema de precedentes” (ou os também cognominados “provimentos vinculantes”) e o desempenho da Jurisdição Constitucional, acaso subsistentes os primeiros, traduz consequências inapeláveis no que concerne ao exercício da Jurisdição no âmbito de nosso sistema jurídico, a qual, à nitidez, ostenta feição marcadamente romano-germânica (civil law), de sorte que, a revelar-se existente tal instituição, implementar-se-ia um verdadeiro marco disruptivo em matéria de funcionamento, interpretação e, notadamente, aplicação do Direito Posto ao caso concreto tendo em vista, sobretudo, as características do uso da Jurisdição Constitucional em nosso País.
Nesse sentido, Streck (2016) preleciona que nossa ordem jurídica compõe-se de uma Constituição escrita, quanto à forma, e analítica, quanto à extensão; temos, ademais, leis em abundância, das quais os Códigos são o melhor exemplo de sistematização; na ambiência infralegal, há decretos, regulamentos, portarias, e, doravante, provimentos obrigatórios com pretensão de cogência.
Neste passo, o desafio repousa sobre a circunstância de haver a necessidade de coordenação de todos os atos normativos suprarreferidos por uma Constituição normativa e, ipso facto, por uma legalidade constitucional. A essa luz, é forçoso reconhecer o fato de que, em nosso arcabouço normativo, todo juiz exerce Jurisdição Constitucional. Cada juiz é um protetor desse desenho normativo-institucional.
Em outras palavras, todo e qualquer magistrado, independentemente de ser um Ministro do Pretório Excelso ou um juiz que oficie em quaisquer das comarcas distribuídas pelos mais diversos rincões deste país, é um artífice que confecciona uma obra lavrada por várias mãos, a saber, a edificação do Direito, cuja existência se justifica no fato de o uso do monopólio da força pelo Estado estar amparado em princípios, os quais, em última instância, descansam sob os ombros dos exercentesda Jurisdição Constitucional, que será levada a efeito por meio da interpretação das normas sob o ângulo da Constituição e, nomeadamente, pelo desempenho do controle concreto de constitucionalidade.
Nessa perspectiva, há um julgado sobremodo relevante, da lavra do Ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, exarado no bojo do Recurso Extraordinário n° 655.265, em que o preclaro Ministro afirma instaurada em nossa ordem jurídica a doutrina do stare decisis. Para tanto, assevera que a função de Corte de Vértice outorgada ao Pretório Excelso tem por atribuição conferir unidade ao Direito e estabilidade aos precedentes por ela exarados. Tal peroração decorre do art. 926 do Novo Código de Processo Civil, cuja redação corrobora a implantação do stare decisis em nosso sistema, do qual adviria a vinculação vertical e horizontal das Cortes e dos juízos em geral.
No mesmo sentido, isto é, em prol do patrocínio da tese da adoção do stare decisis em virtude da superveniência do Novo Código de Processo Civil e, sobretudo, tendo em vista o impacto de tal importação no âmbito da Jurisdição Constitucional, faz-se mister trazer à baila o magistério de Mitidiero (2018), para o qual a aludida doutrina não adviria propriamente do art. 926 do NCPC, tampouco do art. 927; pelo contrário, o preceito do stare decisis, em seus dois vetores, quais sejam, vertical e horizontal, sobreviria da apreensão da função adjucatória de interpretação e da necessidade premente de sedimentar o postulado da segurança jurídica, considerando-se o desempenho conjunto e harmonioso do labor do legislador, da doutrina e do juiz quando da interpretação e aplicação do Direito. Nessa medida, a lição do mesmo autor, litteris:
Nessa perspectiva, os arts. 926 e 927, CPC, apenas tornam mais visível a adoção da regra do staredecisis entre nós: o deslocamento de uma perspectiva cognitivista (do judge inanimé, dos juízes como oracles of the law) para uma perspectiva adscritivista da interpretação (em que se reconhece que os juízes concorrem para a definição do significado do Direito e que em certa medida – e apenas em certa medida – a judge-made-law) exige a alteração do referencial da segurança jurídica: não mais apenas a estática declaração da lei ou dos precedentes, mas a dinâmica reconstrução da relação entre a lei, a doutrina e os precedentes a partir de parâmetros racionais de justificação (MITIDIERO, 2018, p.88).
No mesmo diapasão, Marinoni (2019, p.294-295), segundo o qual “numa Corte preocupada em atribuir sentido ao Direito ou em instituir a interpretação adequada, deve-se enxergar a função de elaboração de regras universalizantes”.
Em contrapartida, porém, impõe-se elucidar precisamente o instituto do stare decisis, bem como aferir se o Novo Código de Processo Civil (norma infraconstitucional), em tese, detém aptidão e, por conseguinte, possui o condão de instituí-lo em nosso figurino constitucional, de tal forma a sustentar a sistemática de precedentes e, mormente, tendo em conta o fato de que a doutrina do stare decisis constitui, por assim dizer, a pedra angular da tese precedentalista nos países de common law. Ademais, acaso existente tal instituição em nossa ordem normativa, afigura-se imprescindível esquadrinhar quais seriam os impactos dogmático-epistemológicos no contexto da Jurisdição Constitucional, tendo em vista a técnica radical de controle de constitucionalidade existente em nosso ordenamento jurídico-constitucional.
Nessa medida, consoante o magistério de Zaneti Jr. (2019), stare decisis é uma expressão idiomática latina que significa, em tradução livre, “seguir ou aderir às questões já decididas”, de forma a estar, via de regra, em sede de Direito, atrelada à noção de respeito dos próprios tribunais prolatores das decisões aos precedentes por eles mesmos exarados. Em outras palavras, tão logo um tribunal estatui um preceito subsumível a determinados grupamentos de fatos reputados valiosos sob o enfoque normativo, aludido comando deverá, a rigor, ser observado nos casos posteriores nos quais concorram aspectos factuais ou jurídicos análogos.
Além disso, o desenho institucional exigível à luz da doutrina do stare decisis supõe duas variáveis: organização hierarquizada do Poder Judiciário e necessidade de um sistema de publicação oficial das decisões, de maneira a facilitar o acesso com vistas à consulta e à eventual adesão na hipótese de algum juiz, desembargador ou Ministro perfilhar o precedente quando da apreciação de casos semelhantes e subsequentes. Destarte, afigura-se viável asseverar que o instituto do stare decisis consiste, por assim dizer, em um progresso gradual e sólido, à medida que propicia a evolução dos modelos institucionais e das ferramentas pelas quais se conhece das decisões. Logo, o exercício do múnus judicial sob a batuta institucional do stare decisis desagua na construção dos precedentes, de tal forma que as deliberações pretorianas conquistam um estofo normativo para fins de solução dos casos futuros à luz das semelhanças factuais e jurídicas com os casos que deram azo aos precedentes.
Aresto relevante para fins de investigação do impacto da potencial e genuína recepção em nosso sistema normativo da doutrina do stare decisis e, notadamente, dos efeitos que serão deflagrados sobre o exercício da Jurisdição Constitucional, consta no bojo da reclamação n° 26.448, de lavra e relatoria do mesmo Ministro Edson Fachin (o qual, saliente-se, já atestou em sede de Recurso Extraordinário a instituição do staredecisis em nosso ordenamento), cujo conteúdo versa sobre o enunciado da Súmula Vinculante n° 13 (Nepotismo) do Supremo Tribunal Federal, in verbis:
Em que pesem as decisões do Tribunal excepcionando a sua incidência a cargos de natureza política, a orientação que emerge dos debates da aprovação da Súmula, assim como dos precedentes que lhe deram origem, não autoriza a interpretação segundo a qual a designação de parentes para cargo de natureza política é imune ao princípio da impessoalidade. Noutras palavras, cargos políticos também estão abrangidos pela Súmula Vinculante. Essa conclusão decorre dos próprios fundamentos pelos quais o Tribunal reconheceu na proibição de nepotismo uma zona de certeza dos princípios da moralidade, da impessoalidade e da eficiência (BRASIL, 2008).
A decisão do conspícuo Ministro Edson Fachin encerra, em seus próprios termos, complexidades abissais em torno da temática do instituto do stare decisis e, máxime, no que toca à existência de um sistema de precedentes, uma vez que, conduzidas as premissas científicas por ora alinhavadas às últimas consequências, chegar-se-á a uma vigorosa contradictio in terminis.
A uma, pois a regra do stare decisis impõe vinculação horizontal, é dizer, o próprio Tribunal prolator da decisão deve obedecer aos seus respectivos precedentes. In casu, o referido Ministro afastou a jurisprudência pacífica do Tribunal sobre a matéria e o enunciado expresso da Súmula Vinculante. A duas, vale ressaltar que, com o fim de afastar os precedentes que compõem a jurisprudência consolidada do Tribunal e o enunciado expresso de Súmula Vinculante, o respectivo Ministro se valeu da ratio decidendi (ou holding) da decisão na condição de elemento justificador da exceção (Defeasibility). Nesse sentido, equiparou arbitrariamente “ratio decidendi” a “precedente”; o golpe, entretanto, mais percuciente desferido em matéria de Jurisdição Constitucional, é este: ao fazê-lo, o aludido Ministro desrespeitou uma regra jurídica abstrata e geral com força de lei e com extração constitucional cogente (art. 103-A, CF).
Em outros termos, a pretexto de dar vida a uma pretensa e virtual sistemática de precedentes, o Ministro Edson Fachin não só desrespeitou a jurisprudência estável e segura do Pretório Excelso; inobservou, outrossim, sem cerimônia e sem reserva, um preceito vinculante albergado e autorizado constitucionalmente, qual seja, o enunciado da Súmula Vinculante n° 13. A três, ao levar a cabo a interpretação ora em análise, o ínclito Ministro concorreu para a perturbação do ideal de segurança jurídica e proteção da confiança, uma vez que, de sua decisão, decorreu o comprometimento das expectativas sociais legitimamente ansiadas pelos jurisdicionados, haja vista referidas expectativas estarem amparadas em um enunciado constitucionalmente vinculante e em uma jurisprudência construída e consolidada no decorrer de muitos anos.
Em suma, a título meramente exemplificativo, sem embargo de outras decisões afins que carreguem consigo semelhantes nuances em termos de controvérsia constitucional, vê-se, à evidência, que a problemática concernente à existência de um sistema de precedentes pode, de per si, vulnerar profundamente o desempenho da Jurisdição Constitucional em nossa ordem normativa, sob pena de, em sendo aplicada acriticamente e sem o rigor científico devido, desnaturar a essência da Jurisdição Constitucional e, por tabela, subverter a lógica de nosso ordenamento jurídico-constitucional.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A conclusão a que se chega no bojo do presente trabalho é a de que a novel disciplina constante do art. 927 do Estatuto Processual Civil, quer sob o prisma jurídico-positivo, quer sob o enfoque científico-doutrinário, quer, sobretudo, à luz de nossa tradição jurídica, não instaura, em definitivo, um sistema de precedentes brasileiro. A transição do centro de normatividade das leis e, sobretudo, da Constituição Federal para as decisões judiciais (Mutatis Mutandis, do Congresso Nacional, instância, por excelência, representativa da cidadania em geral, para os Tribunais do País, notadamente os superiores, vide Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal, carentes de legitimidade popular) resta inviabilizada em virtude de insuperáveis óbices de cunho dogmático-constitucional, científico-epistêmico e, mormente, em vista da compreensão sistêmica e una do ordenamento jurídico, cuja compleição normativa não comporta contradições internas, sob pena de disfuncionalidade intrínseca e, em última análise, incorrer-se, por assim dizer, em uma “fratura” institucional.
Relativamente à temática da existência dos “precedentes”, restou patente, à luz dos argumentos esgrimidos no curso da presente monografia, a total e absoluta incapacidade de se reputar lídima a existência de um precedente genuíno na ambiência de nossa ordem normativa. Em primeiro lugar, tendo em vista os autores que defendem a vinculação obrigatória plena de todos os provimentos constantes do rol do texto normativo do dispositivo do art. 927 de nosso Estatuto Processual Civil, tais doutrinadores, grosso modo, justificam a juridicidade de tais figuras processuais na condição de vinculantes valendo-se, dentre outros, na qualidade de elementos fundantes e legitimadores de tais provimentos, dos postulados da segurança jurídica, da isonomia material, da proteção da confiança e da estabilidade das relações jurídicas; há, ademais, outro fator que, para tais doutrinadores, com maior razão, amparam a legitimidade vinculante de tais provimentos: a ratio decidendi (ou holding) constantes das decisões judiciais, de cuja pretensão universalizante, abstrata e geral, decorreria, em tese, a almejada segurança jurídica, acompanhada de seus corolários e consectários.
Nesse compasso, vê-se que, vertendo os argumentos teóricos na praxe forense, constata-se que “na prática, a teoria é outra”, uma vez que o nosso desenho institucional, bem como as características peculiares da técnica de controle de constitucionalidade adotada por nosso ordenamento jurídico-constitucional constituem, em absoluto, um entrave à encampação dos precedentes, tão vigorosamente defendidos por referida parcela doutrinária. Ademais, a própria técnica hermenêutica consistente na definição do que seja, em determinado caso concreto, a ratio decidendi ou o obiter dictum da decisão em apreço não é tarefa de somenos relevância, da qual emerge hesitação e indefinição, posto que, a depender do magistrado que se defronta com determinada decisão judicial, os aspectos principais e nucleares da decisão (holding) ou os aspectos acessórios e secundários (obiter dictum) podem ser diversos e antagônicos, circunstância que introduz perturbação ao ordenamento jurídico, de tal sorte a malferir os postulados da segurança jurídica e seus corolários lógicos.
Nesse diapasão, exemplo ilustrativo de tal incongruência no plano dos fatos foi a decisão exarada pelo Ministro Edson Fachin (defensor da instituição do stare decisis em nosso ordenamento) no bojo da Reclamação n° 26.448, que versava sobre o conteúdo do enunciado da Súmula Vinculante n° 13 (Nepotismo) do Supremo Tribunal Federal, que, a pretexto de invocar os motivos determinantes (ratio decidendi) da decisão que rendeu ensejo à edição do referido Verbete Sumular a título de “precedente”, preteriu jurisprudência pacífica do Pretório Excelso no sentido de que os cargos de natureza política (cargos em comissão) não estão abrangidos pelo conteúdo normativo da respectiva Súmula Vinculante.
Além disso, ao fazê-lo, o preclaro Ministro Edson Fachin transgrediu uma regra de conduta elementar da doutrina do stare decisis (da qual é adepto e por cuja existência se posiciona), consistente na vinculação horizontal. Em outras palavras, segundo tal regra o Tribunal prolator da decisão fica vinculado às suas próprias decisões. Logo, verifica-se, à evidência, a inviabilidade de adoção das teses precedentalistas, dadas as incompatibilidades institucionais, lógico-jurídicas e, sobretudo, culturais que permeiam o genuíno sistema de precedentes e, notadamente, a doutrina do stare decisis, que constitui o pressuposto lógico dos precedentes nos países que albergam o Direito Comum (common law).
Nessa medida, a título de confirmação empírica da impossibilidade das teses precedentalistas e dos riscos que decorrem do uso canhestro de seus institutos típicos, vale trazer à baila o Inquérito n° 4781 (vulgarmente denominado nos meios de comunicação social de “Inquérito das Fake News”) aberto ex officio pelo Supremo Tribunal Federal e do qual decorreram inúmeras arbitrariedades, tais como buscas e apreensões ilegais e prisões preventivas destituídas, in totum, de lastro normativo hígido. Como é cediço, em apertada síntese, referido Inquérito violou o princípio da inércia da jurisdição; ao ser distribuído ad hoc, violou o princípio do juiz natural; por não respeitar a distribuição de competências delimitadas na Carta Magna, violou, igualmente, o princípio acusatório, bem como transgrediu o enunciado da Súmula Vinculante n° 14 do próprio Pretório Excelso, que assegura o direito subjetivo do advogado a ter acesso aos autos de procedimentos investigatórios.
Neste passo, o Superior Tribunal de Justiça, em razão das informações supervenientes oriundas da “Operação Spoofing”, publicizadas pelo Ministro Ricardo Lewandowski, de cujos diálogos constavam a intenção de membros do Ministério Público Federal em investigar Ministros daquele Tribunal, em dezenove de fevereiro deste ano (19.02.21), o Presidente do Tribunal da Cidadania, Ministro Humberto Martins, instaurou, de ofício, por meio da portaria STJ/GP n° 58, Inquérito, nos mesmos termos e fundamentação (holding) do que fora aberto pelo Supremo Tribunal Federal, sob a alegação de que tais membros do Parquet tencionavam intimidar os Ministros daquela Corte.
Em outras palavras, tal é a repercussão que um uso canhestro de um instituto inexistente em nossa ordem normativa (in casu, de um “precedente”) pode ocasionar. Se não fosse sobremodo teratológico o Inquérito n° 4781 do STF, em manifesto desprezilho para com o Estado Democrático de Direito e, sobretudo, para com os direitos e garantias fundamentais da cidadania, referida excrescência serviu de “precedente” para a abertura de um congênere no âmbito do STJ.
Em trinta e um de março do corrente ano (31.03.21), todavia, antevendo as consequências nefastas que poderiam se abater sobre o ordenamento jurídico em sua globalidade a permanecer a higidez jurídica do “precedente” criado pelo STF, a Ministra Rosa Weber, em sede de liminar em habeas corpus, suspendeu o aludido Inquérito emanado do STJ.
Também, pudera. Se os vinte e sete TRE’s do país, os vinte e sete TJ’s, os cinco TRF’s, bem como os vinte e quatro TRT’s resolvessem fazê-lo com fulcro no “precedente” do STF, instaurando Inquéritos a bel-prazer, certamente a desproporção de poder inconstitucional conferida a tais órgãos conduziria a uma crise institucional sem precedentes.
Por conseguinte, tal circunstância é suficiente para demonstrar que aos doutrinadores que defendem a tese intermediária, isto é, aquela que preconiza a emissão de “precedentes” pelas Cortes Superiores, por eles cognominadas “Cortes de Vértice”, não lhes assiste razão, porquanto os resultados no plano da realidade, haja vista os casos supramencionados, demonstram, à saciedade, os riscos de um uso temerário dos “precedentes”; ademais, há um entrave de cunho jurídico-constitucional: a Constituição Federal não outorgou às referidas Cortes Superiores a prerrogativa de editar normas de cunho geral e abstrato, salvo a edição de Súmulas Vinculantes pelo Supremo Tribunal Federal.
Por derradeiro, assiste razão à tese minoritária, de acordo com a qual todos os incisos do art. 927, ressalvados os incisos um e dois, que detêm extração constitucional, são inconstitucionais, a eles não devendo estar vinculados os magistrados, os quais devem estar obrigados, tão somente, à Constituição e às leis do País.
A essa luz, é forçoso reconhecer que os elaboradores do Novo Código de Processo Civil não visaram, com efeito, a instituir um “sistema de precedentes”, cujo transplante em nossa ordem normativa é absolutamente inviável; pretenderam, antes, instituir mecanismos de contenção da litigiosidade repetitiva com vistas a desafogar os Tribunais do País.
Nesse cenário, a comunidade jurídica não pode se deixar ludibriar por tais teses. Temos uma Constituição normativa, fundada em um sistema de direitos e garantias fundamentais, que impõe a força normativa da Constituição como premissa, e as leis que lhe são conformes como exteriorização. Não há decisão judicial (salvo as proferidas em sede de controle concentrado) com o condão de obrigar os magistrados, tampouco os jurisdicionados. Logo, valorizemos a Constituição, a Jurisdição Constitucional, e as leis, que são a expressão da vontade geral segundo o nosso desenho institucional. Como disse, certa feita, Ruy Barbosa: “a força do Direito deve superar o Direito da força”. E a força de nossa Democracia está na Constituição e nas leis, não em pseudoprecedentes que operam ao largo e à margem da Constituição. Logo, dadas as circunstâncias, depositar a correção de rumos em matéria de prestação jurisdicional em institutos inconstitucionais não nos é uma opção. Afinal, como nos admoestava o teórico argentino Luis Alberto Warat, “não podemos mais construir próteses para fantasmas”.
8 REFERÊNCIAS
ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.
ALVIM, Arruda. Manual de Direito Processual Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n° 655.265 - DF. Relator: Ministro Edson Fachin. Brasília, 13 de abril de 2016. Disponível em: Supremo Tribunal Federal STF - RECURSO EXTRAORDINÁRIO : RE 655265 DF - DISTRITO FEDERAL (jusbrasil.com.br). Acesso em: 29 de maio de 2021.
______. Supremo Tribunal Federal. Reclamação n° 26.448 – SP. Relator: Ministro Edson Fachin. Brasília, 25 de outubro de 2020. Disponível em: Processo n. 26448 do Supremo Tribunal Federal (jusbrasil.com.br). Acesso em: 29 de maio de 2021.
______. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n° 198.013 – DF. Relatora: Ministra Rosa Weber. Brasília, 30 de março de 2021. Disponível em: leia-decisao-rosa-weber-suspende.pdf (conjur.com.br). Acesso em: 29 de maio de 2021.
BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 2017.
CRAMER, Ronaldo. Precedentes Judiciais: teoria e dinâmica. São Paulo: Forense, 2016.
CRUZ E TUCCI, José Rogério. Precedente Judicial como fonte do Direito. São Paulo: GZ editora, 2021.
DE MACÊDO, Lucas Buril. Precedentes Judiciais e o Direito Processual Civil. Salvador: Juspodivm, 2019.
DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil (vol. 2). Salvador: Juspodivm, 2016.
GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Direito Processual Civil Esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2018.
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.
______, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel; ARENHART, Sérgio Cruz. O Novo Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.
NERY JR., Nelson. Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020.
STRECK, Lenio Luiz. Precedentes Judiciais e hermenêutica: o sentido da vinculação no CPC/2015. Salvador: Juspodivm, 2019.
______, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges. O que é isto – o sistema (sic) de precedentes no CPC? Revista Eletrônica Consultor Jurídico. São Paulo, 18 de agosto de 2016. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2016-ago-18/senso-incomum-isto-sistema-sic-precedentes-cpc>. Acesso em: 12 de maio de 2021.
ZANETI JR., Hermes. O valor vinculante dos precedentes: teoria dos precedentes normativos formalmente vinculantes. Salvador: Juspodivm, 2019.