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Ultima Ratio da Lei Penal e o Crime de Omissão de Socorro: Apenando a Falta de Solidariedade?

Agenda 09/07/2021 às 08:12

Tendo em vista o caráter de ultima ratio do Direito Penal, é discutível em que medida em que o estado pode se imiscuir nas condutas do cidadão, ainda que para incentivar — e, na verdade, compelir — ações nobres, como prestar socorro.

1. O Direito Penal e o Tipo Penal do Art. 135 do Código Penal

É, em alguma medida, um consenso que o nível de evolução atingido pelo ser humano no século XXI ainda não permite que se viva sem regras impositivas emanadas por um ente estatal ou quem lhe faça as vezes. Nesse sentido, o ordenamento jurídico tem como finalidade precípua orientar o comportamento dos indivíduos para que a vida em sociedade torne-se, não somente viável, mas que evolua conforme os preceitos definidos a partir de uma decisão política. No caso do Brasil, essa decisão política materializa-se na figura que se encontra no ápice do ordenamento jurídico: a Constituição Federal de 1988. Dentre outras diretrizes, esse diploma normativo consagra, em seu artigo 5o inciso II (BRASIL, 1988), a garantia de que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Nossa carta magna, portanto, abre espaço para que o legislador infra-constitucional module a conduta dos cidadãos por meio do estabelecimento de obrigações de fazer e não fazer. Pode, portanto, a lei definir o que ela deseja que os cidadãos façam ou não façam para viabilizar o desenvolvimento da sociedade, seja para proteger e tutelar bens jurídicos, seja para promover algum valor que repute relevante.

Dentre as espécies de leis vigentes que regulam essas obrigações de fazer e não fazer para que a sociedade se amolde aos preceitos constitucionais destaca-se o subconjunto das “leis penais” (GRECO, 2018). O ramo do direito representado por essas leis é de especial peculiaridade porque, regulando o exercício do poder punitivo do estado, consubstancia-se no mais gravoso meio de controle social. Como corolário dessa definição, ao Direito Criminal em geral (e ao Penal em particular) cabe o papel de ultima ratio. Isso significa dizer que se qualquer outra forma de ordenamento puder suprir a demanda encarada pelo Direito Penal no caso concreto deve o último ser preterido em favor da primeira. É o que decorre do Princípio da Intervenção Mínima por meio do qual, segundo Bitencourt (BITENCOURT, 2012):

Se outras formas de sanção ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização é inadequada e não recomendável. Se para o restabelecimento da ordem jurídica violada forem suficientes medidas civis ou administrativas, são estas que devem ser empregadas e não as penais. (BITENCOURT, 2012)

Assim, a tutela de bens jurídicos ou promoção de valores relevantes pode ser conduzida por meio da lei penal apenas se ela for a única forma apta a fazê-lo, sob pena de corromper a própria definição de lei penal, correndo o risco de banalizar o Direito Penal como um todo. Importante mencionar que corre-se o risco, ainda, de que se usem do precedente das exceções para legislar casuisticamente em prol de teses ideológicas sem compromisso com a missão da lei penal. 

O mais emblemático — embora esteja longe de ser o único — diploma acerca da matéria de Direito Penal é o Código Penal, Decreto-Lei 2848/1940. Seu status de “código” o credencia a figurar como o melhor exemplo quanto a se averiguar se os requisitos de que deve ser dotado o Direito Penal em um ordenamento estão sendo respeitados. Por se tratar de uma lei que verse sobre tipos penais, suas considerações devem ser dotadas do supracitado caráter de ultima ratio. Dentre os vários possíveis tipos que poderiam ser elencados para suscitar uma rica discussão acerca da eventual presença ou ausência dessa propriedade, um exemplo particularmente interessante é o do crime de omissão de socorro, tipificado no art. 135 do referido código (BRASIL, 1940).

Art. 135 - Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública:

Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa. (BRASIL 1940)

Rogério Sanches (CUNHA, 2018) classifica o crime de omissão de socorro como comum, formal, de forma livre, omissivo, instantâneo, de perigo concreto, unissubjetivo, e unissubsistente. O objeto material é a criança abandonada ou extraviada ou ainda a pessoa inválida, ferida ou em situação de desamparo ou em perigo. O elemento subjetivo do crime, por sua vez, seria o dolo de perigo.

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O tipo é bem claro ao definir como crime o fato de deixar de prestar assistência a determinadas pessoas em determinadas situações em que não haja risco pessoal fazê-lo. Do ponto de vista ético, isso seria claramente uma falta. Não parece restar dúvidas de que deixar de agir sob as condições expressas no texto legal configura violação ao dever comunitário que é, admite-se, muito caro para um tecido social saudável. Resta discutir, contudo, se esse dever ético é de tal monta, ou seja, é grave o suficiente para que um tipo como esse seja legitimamente tratado pela lei penal. 

2. O Art. 135: Comando de Solidariedade como Meio de Proteção do Bem Jurídico 

    Uma importante observação a ser considerada acerca do crime de omissão de socorro é brilhantemente conduzida na obra de Guilherme de Souza Nucci (NUCCI, 2018). Ensina o autor que, ao contrário do que sustenta parte da doutrina, o objeto jurídico protegido pelo crime ora em análise não é a solidariedade humana, mas a vida e a saúde. A solidariedade humana, ao contrário, consistiria em meio eficiente a atingir o fim da norma, qual seja, a proteção do objeto jurídico vida e saúde. Isso é de particular importância para o raciocínio que viemos construindo acerca da necessidade ou não do Direito Penal para proteção de bens jurídicos à luz do Princípio da Intervenção Mínima. Do ponto de vista epistemológico faz diferença se o que a lei pretende proteger é a vida e saúde ou promover solidariedade.

De pronto, uma visão mais sistêmica da eventual tentativa de promoção da solidariedade permite que se concebam diversas possibilidades. É dizer, teoricamente devem existir formas muito menos invasivas que o Direito Penal para promover a solidariedade humana. Aliás, pode-se até questionar se o Direito Penal teria qualquer aptidão para levar a efeito a promoção desse tipo de valor. Em que pese ser essa uma questão sociológica por demais complicada e fora do escopo do presente trabalho, parece claro que outras instâncias, alheias inclusive ao Direito, seriam palcos mais adequados para lidar com esse tipo de questão. A família, a escola, a religião, políticas públicas com projetos de conscientização são algumas das hipóteses que podem ser  levantadas. Ainda que cada uma delas seja questionável, o questionamento, por si só, já faria com que a adoção do Direito Penal fosse reconsiderada dado o caráter de ultima ratio da disciplina. A relevância dessa consideração está no fato de que se algum desses institutos (ou qualquer outro que não a lei penal) for capaz de promover a solidariedade desejada, será igualmente capaz de proteger o bem jurídico tutelado pelo 135. 

Por outro lado, o que está a defender Nucci é que, embora não seja o objeto jurídico tutelado, a solidariedade é o meio que se tem para que o correto objeto seja protegido no tipo do art. 135. Ressalvada a omissão de socorro no caso do garante (tratada de forma diferente), no caso geral da omissão de socorro do 135 caput, a solidariedade, em verdade, parece ser o único meio apto para tanto. Dessa maneira negá-la significa negar o tipo. Na prática, portanto, o tipo está efetivamente promovendo a solidariedade entre os indivíduos. Essa é uma ação certamente desejável, mas que está se desenvolvendo por meio de uma ferramenta doutrinariamente equivocada. Ora, o Princípio da Intervenção Mínima deve ser considerado de um ponto de vista geral: ele incide não somente o que a lei pretende atingir nuclearmente mas também sobre o que faz na prática globalmente; sobre quais aspectos incide e principalmente do que se necessita logicamente para que possua eficácia. O Princípio da Intervenção Mínima não pode ser considerado como preceito estático pontual a incidir num ou noutro aspecto da conduta apartando meio de fim sob pena de se deixar uma margem excessiva e promover insegurança jurídica. Deve, portanto, incidir tanto sobre o objeto tutelado quanto sobre o meio apto a tutelá-lo e principalmente nos casos que esse meio é o único, como o é no caso artigo 135. 

Conclui-se, assim, que embora a solidariedade não seja o objeto tutelado pelo tipo do artigo 135, é conceito de importância central sem o qual o tipo é inócuo. Portanto, ao ser tutelado pelo Direito Penal deve-se perquirir se há algum outro meio apto a protegê-la. Valem, então as considerações anteriormente feitas acerca da possibilidade de outras ordens tutelarem a solidariedade. Heleno Cláudio Fragoso (FRAGOSO, 2003) chega a defender que “(...) deve se excluir do direito penal (...) os fatos que se situam puramente na ordem moral”. Por definição é esse o caso da solidariedade, conceito centralmente situado na ordem moral. Levando em conta o caráter de ultima ratio da lei penal, a omissão de socorro por si só não deveria ser tratada pelo Direito Penal. 

Naturalmente existem hipóteses correlatas mais gravosas que, por razões outras (que não a falta de solidariedade), deveriam ser, e de fato são, penalmente relevantes. São os casos do 135-A, que trata de atendimento médico hospitalar emergencial (não se trata de solidariedade mas de dever funcional) e mesmo os casos do Art. 13, § 2º (é o anteriormente mencionado caso dos garantes). O caso da pura omissão de socorro do 135, por si só, parece constituir mais uma falta ética ou moral, a ensejar tratamento de ordens diversas do Direito Penal. Dessa forma, como deferência ao papel do Direito Penal, entende-se que o 135 não constitui objeto apto a ser tratado por essa esfera.

3. Conclusões

Neste trabalho problematizou-se a legitimidade de o estado lançar mão do gravoso ordenamento penal para orientar condutas por meio de preceitos morais a exemplo da solidariedade. Conclui-se que, ainda que a solidariedade não seja o objeto alvo do legislador na tipificação do artigo 135 do Código Penal, porque ela se trata do único meio apto a proteger o bem jurídico tutelado, está-se, na prática, a indiretamente promover solidariedade por meio da lei penal, o que contraria seu caráter de ultima ratio. Uma vez que outros tipos de ação podem ser considerados para promover a desejável solidariedade entre os cidadãos, também serão eficientes para tutelar os bens do 135, razão pela qual o Princípio de Intervenção mínima impõe que o Direito Penal dê espaço a elas. Deve-se ressaltar que não se trata aqui de meros filigranas doutrinários: o Princípio da Intervenção Mínima tem relevância prática na medida em que substancial peso do Direito Penal tem a ver com a imagem que dele se tem. Banalizar o Direito Penal pontualmente é retirar-lhe parte da força necessária a tutelar os mais relevantes bens jurídicos, aqueles que verdadeiramente sem a lei penal ficariam absolutamente desprotegidos. É, também, abrir espaço para que decisões majoritariamente político-partidárias lancem mão dos precedentes de desrespeito a um determinado princípio para desrespeitar princípios diversos. Isso pode ser usado para levar a cabo um Direito Penal Simbólico ou mesmo qualquer agenda que pode vir a levar a técnica muito pouco em consideração em detrimento de uma ideologia pré-definida e surda a manifestações externas.

Referências

BRASIL. CONSTITUIÇÃO FEDERAL 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em 21 de outubro de 2018.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal, Parte Geral 20a ed. São Paulo: Impetus, 2018. 

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal 17a ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

BRASIL. DECRETO LEI 2848 de 1940. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848.htm>. Acesso em 21 de outubro de 2018.

CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal, Parte Especial 6a edição. Salvador: JusPodium 2018.

NUCCI, Guilherme Souza. Manual de Direito Penal 14a edição. Rio de Janeiro: Forense 2018. 

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal, Parte Geral 16a edição. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

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