A celeuma a ser analisada no presente trabalho diz respeito ao fato de grande parte dos Estados, lastreados em decisões dos respectivos Tribunais de Contas[1] (órgãos de auditoria contábil competente para controle externo da aplicação pelo Estado dos recursos vinculados) considerar, para fins de atingimento do percentual constitucional de 25% para manutenção e desenvolvimento da educação, o gasto com inativos como verbas de manutenção e desenvolvimento da educação (MDE).
A despeito disso, a União, por meio de seus órgãos de fiscalização, desconsiderarem esse montante para fins de atingimento do percentual mínimo previsto na Constituição, gerando insegurança e restrições aos Estados para recebimento de recursos federais.
Preconiza o dispositivo constitucional, que traz o percentual mínimo em comento, ipsis litteris:
“Art. 212. A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino.”
Já em seu art. 205[2],a Constituição da República trata da educação como direito de todos e dever do Estado e da família, devendo ser promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Erigida à categoria de direito social, conforme art. 6º da Carta Maior[3], e apresentando-se como princípio programático a ser implementado pelo Estado Social de Direito, a importância da efetivação das políticas educacionais é diretamente relacionada com a concretização dos valores constitucionalmente tutelados. Nas palavras de Gilmar Mendes:
“(...) é interessante ressaltar o papel desempenhado por uma educação de qualidade na completa eficácia dos direitos políticos dos cidadãos, principalmente no que se refere aos instrumentos de participação direta, como referendo e plebiscito. Isto porque as falhas na formação intelectual da população inibem sua participação no processo político e impedem o aprofundamento da democracia.”[4]
Nesse sentido, a fim de concretizar o direito à educação, o constituinte vinculou patamar mínimo de 25%, resultante da receita de impostos, a ser direcionado à manutenção e desenvolvimento do ensino pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, conforme se observa do disposto no art. 212 da CRFB/88 acima colacionado.
Diante da exigência constitucional, o art. 25 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2001) elencou, como uma das exigências (além das estabelecidas nas leis de diretrizes orçamentárias) para se receber transferências voluntárias, a comprovação, por parte do beneficiário, de que cumpriu os limites constitucionais destinados à educação e saúde. Confira-se:
“Art. 25. Para efeito desta Lei Complementar, entende-se por transferência voluntária a entrega de recursos correntes ou de capital a outro ente da Federação, a título de cooperação, auxílio ou assistência financeira, que não decorra de determinação constitucional, legal ou os destinados ao Sistema Único de Saúde.
(...) IV - comprovação, por parte do beneficiário, de:
(...) b) cumprimento dos limites constitucionais relativos à educação e à saúde;”
Em interessante estudo elaborado pelo pós-doutor em Educação, Fábio Araújo de Souza, publicado na Revista Brasileira de Política e Administração da Educação - RBPAE, observou-se que inúmeros tribunais de contas do país, por parecer de seus plenários, têm julgado no sentido de permitir a inclusão dos gastos com inativos no cômputo para a manutenção e desenvolvimento do ensino.
Pontua-se, inclusive, que os TCE/ES, TCE/PA e TCE/PI permitem, em suas normas, a contabilização dos inativos como aplicação de recursos na educação.[5]
Em outras palavras, de acordo com o estudo supra mencionado, os Tribunais de Contas têm julgado favoravelmente as contas dos governos estaduais no que diz respeito aos investimentos em educação, validando, portanto, a inclusão dos gastos com inativos no percentual constitucional de 25% previsto pelo art. 212, da CRFB/1988.
Apesar do entendimento das Cortes de Contas estaduais consolidado ao longo de décadas, a União, reiteradamente, tem incluído os Estados em cadastros restritivos, alegando o desatendimento da aplicação percentual constitucional mínima em ações e serviços de educação.
Tal inscrição decorre da patente divergência metodológica nos critérios de cálculo usados pelo Fundo Nacional de Educação/MEC e Secretaria do Tesouro Nacional/ME – quando comparados com os entendimentos manifestados pelas cortes de contas estaduais –, para apurar o cômputo do percentual constitucional do art. 212 da CRFB/1988, sendo, no âmbito da União, dominante o entendimento de que os gastos com inativos e pensionistas não podem ser incluídos para computar o mínimo constitucional com manutenção e desenvolvimento do ensino.
Registre-se que o próprio Ministério da Educação, por intermédio do eminente ex-ministro Fernando Haddad, apontou, no ofício 132/2006 encaminhado ao Senador Osmar Dias (Requerimento SN nº 1.450/2005), a evidente divergência entre a metodologia aplicada pela União e aquela utilizada pela maioria dos Estados. Confira-se excerto da resposta do Ministério da Educação:
“Em consulta ao Cadastro acima referido, em 13 de março último, verificou-se que os Estados e o Distrito Federal encontram-se em situação de regularidade quanto à conformação ao art. 212 da Constituição Federal. Destaque-se, por oportuno, que nem todos os entes federativos têm interpretação unânime em relação aos conceitos sobre manutenção e desenvolvimento do ensino explicitados pelos artigos 70 e 71 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Caso exemplificativo é o pagamento de pessoal inativo: o entendimento da União e de uma minoria dos Estados é de não computá-lo como comprovação do mínimo de impostos vinculados à educação, interpretação não acompanhada pela maioria dos Estados, como demonstra o levantamento realizado junto aos Tribunais de Contas em 2003.”
Referida divergência, da qual resulta a inclusão nos cadastros restritivos (muitas vezes até mesmo sem obediência ao contraditório e em ausência de tomada de contas especial[6]), tem forçado os Estados a ingressar com ações no Supremo Tribunal Federal para, dentre outros pleitos, contestar os cálculos efetuados.
A disparidade de entendimentos deriva do tratamento dado ao tema pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n.º 9.394/1996), que, além de não distinguir as despesas entre ativos e inativos, considera como de manutenção e desenvolvimento, simplesmente, as despesas realizadas com profissionais da educação.
Oportuno ressaltar que a Lei nº 7.348/1985, tacitamente revogada pela LDB, continha disposição expressa acerca da inclusão de inativos como despesa de manutenção e desenvolvimento do ensino (alínea “g” do parágrafo 1º do art. 6º). Pode-se dizer, nesse sentido, que a referida disposição embasou a construção do entendimento dos Estados acerca da possibilidade da inclusão dessas despesas para o cômputo do percentual constitucional mínimo do art. 212 da CRFB/88.
Veja-se a redação dos arts. 70 e 71 da LDB, in verbis:
“Art. 70. Considerar-se-ão como de manutenção e desenvolvimento do ensino as despesas realizadas com vistas à consecução dos objetivos básicos das instituições educacionais de todos os níveis, compreendendo as que se destinam a:
I - remuneração e aperfeiçoamento do pessoal docente e demais profissionais da educação;
II - aquisição, manutenção, construção e conservação de instalações e equipamentos necessários ao ensino;
III – uso e manutenção de bens e serviços vinculados ao ensino;
IV - levantamentos estatísticos, estudos e pesquisas visando precipuamente ao aprimoramento da qualidade e à expansão do ensino;
V - realização de atividades-meio necessárias ao funcionamento dos sistemas de ensino;
VI - concessão de bolsas de estudo a alunos de escolas públicas e privadas;
VII - amortização e custeio de operações de crédito destinadas a atender ao disposto nos incisos deste artigo;
VIII - aquisição de material didático-escolar e manutenção de programas de transporte escolar.
Art. 71. Não constituirão despesas de manutenção e desenvolvimento do ensino aquelas realizadas com:
I - pesquisa, quando não vinculada às instituições de ensino, ou, quando efetivada fora dos sistemas de ensino, que não vise, precipuamente, ao aprimoramento de sua qualidade ou à sua expansão;
II - subvenção a instituições públicas ou privadas de caráter assistencial, desportivo ou cultural;
III - formação de quadros especiais para a administração pública, sejam militares ou civis, inclusive diplomáticos;
IV - programas suplementares de alimentação, assistência médico-odontológica, farmacêutica e psicológica, e outras formas de assistência social;
V - obras de infra-estrutura, ainda que realizadas para beneficiar direta ou indiretamente a rede escolar;
VI - pessoal docente e demais trabalhadores da educação, quando em desvio de função ou em atividade alheia à manutenção e desenvolvimento do ensino.”
Da atenta leitura do art. 71 acima colacionado, percebe-se que não consta da lei qualquer comando normativo destinado a excepcionar os gastos com inativos e pensionistas das despesas com manutenção e desenvolvimento do ensino. No que diz respeito aos gastos com pessoal da educação, a lei é clara em excepcionar das despesas apenas quando há desvio de função ou quando se tratar de atividades alheias à educação, sem, contudo, enumerá-las.
Por tal motivo, sob a ótica dos Estados, não se mostraria concebível a criação de outras exceções – infralegais em sede administrativa – além das já estabelecidas pelo legislador infraconstitucional, considerando que a Administração deve obediência estrita ao princípio da legalidade, positivado expressamente no caput do art. 37 da CRFB/88.
No entanto, interpretando os dispositivos acima mencionados, o STF tem manifestado entendimento de que “remuneração”, como consta do art. 70, I, da LDB, pressupõe servidores em atividade[7], evidenciando que a redação do dispositivo em comento consagra o recebimento de verbas como contraprestação do efetivo exercício da docência, não se aplicando, portanto, aos inativos, que recebem “proventos”.[8]
O Supremo, portanto, apesar da inexistência de comando normativo expresso na LDB, diferencia “remuneração” de “proventos” para concluir que se incluem nos gastos de manutenção e desenvolvimento do ensino apenas as verbas com caráter de contraprestação para servidores efetivos em atividade.
Valendo-se de uma interpretação teleológica e sistemática, consignou o Ministro Dias Toffoli em sua decisão monocrática na ACO 2799 AL, ipsis litteris:
“Tamanha a clareza de que foi esse o intuito da lei (considerar apenas os gastos que se direcionem à efetiva atividade de ensino) que no art. 71, VI, constou a vedação a que se considere verba com educação aquela destinada a ‘pessoal docente e demais trabalhadores da educação, quando em desvio de função ou em atividade alheia à manutenção e desenvolvimento do ensino’.”
Em que pese o entendimento manifestado pelo Supremo (longe de ser tema pacificado), apesar do engessamento orçamentário cujos contornos são delimitados pela própria Constituição Federal, desvincular os gastos com inativos e pensionistas das despesas de manutenção e desenvolvimento do ensino representa um dano extremamente grave à saúde fiscal dos estados.
Outrossim, conforme mencionado, o cômputo dessas despesas nos gastos para manutenção e desenvolvimento da educação tem sido amplamente referendado pelos Tribunais de Contas estaduais ao longo de décadas, enraizando-se, assim, nas formulações das políticas públicas. Nesse sentido, consolidada e chancelada referida prática, os estados passaram, ao longo do tempo, a redirecionar suas políticas financeiras para outros setores de interesse social, seja para criação ou expansão de políticas públicas.
Nesse diapasão, retirando-se os gastos com inativos das despesas com manutenção e desenvolvimento da educação, a maioria dos Estados não mais atingiria o percentual mínimo de 25%, razão pela qual tornar-se-ia necessário realocar e redirecionar finanças públicas para o cumprimento do imperativo constitucional.
Se, por um lado, é certo que um maior investimento em educação seria socialmente necessário ou benéfico, por outro é de se atentar para o fato de que os recursos financeiros existentes não são suficientes para o atendimento de todas as demandas sociais, havendo uma real insuficiência orçamentária; principalmente nessa época de pandemia e distanciamento social em que as receitas dos Estados reduziram drasticamente, e as poucas que permaneceram tiveram que ser destinadas em grande parte ao enfrentamento do COVID-19.
Ademais, revela-se pertinente destacar que, com a inovação promovida na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB (Decreto-Lei n.º 4.657/1942), foi positivada a necessidade da observância de questões de ordem prática em decisões judiciais, evidenciando um maior dever de cuidado com a ponderação dos efeitos consequencialistas das decisões. Pela relevância, cita-se, in verbis:
“Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.
Art. 21. A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas.
Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput deste artigo deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos.”
Diante da novel disposição legal aplicável à espécie, resta evidente que a intervenção judicial deve ser cautelosa quanto aos impactos orçamentários possivelmente gerados, tudo em observância à limitação dos recursos e eventuais prejuízos aos interesses da sociedade.
Transmudar o entendimento que vem sendo aplicado pelos Estados, com o aval dos Tribunais de Contas, é passível de comprometer sobremaneira as finanças estatais, considerando-se que haverá uma maior limitação fiscal em contraposição às infinitas necessidades público-sociais.
Assim, diante do contexto da frágil autonomia financeira dos Estados Membros da Federação, vetar a inclusão dos gastos com inativos e pensionistas na aplicação do mínimo exigido para manutenção e desenvolvimento do ensino, como dispõe o art. 212 da CRFB/88, tende a causar danos à população com a descontinuidade dos projetos governamentais em curso e da manutenção dos serviços públicos mais custosos.
Considerando que decisões meramente interpretativas proferidas pelo STF podem até mesmo obstar a adequada prestação de serviço à população, dadas as reais limitações financeiras, é preciso compatibilizar as tensões com os executores de políticas públicas, considerando as possibilidades orçamentárias disponíveis. Ou, ao menos, conferindo prazo razoável para a adequação à sistemática entendida definitivamente como correta.
Por todo o exposto, nota-se que é necessário um estudo mais aprofundado, coordenado em escala nacional, para aferir as reais dificuldades dos Estados, antes de simplesmente decidir pela exclusão, ou não, das despesas com inativos do percentual preconizado no art. 212 da CF/88. Há, assim, uma notória necessidade de redimensionar as intervenções judiciárias.
[1]Segundo entendimento manifestado pelo STF no julgamento da ACO 2799, no que diz respeito aos gastos mínimos com educação, o controle e a fiscalização dessas verbas (...) cabe aos tribunais de contas local, cuja apreciação sobre o tema pode ser utilizada para certificar o atendimento da obrigação constitucional pelo Estado.
[2]Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
[3]Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
[4]MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 15ª ed., São Paulo, Saraiva Educação, 2020, n.p.
[5]DE SOUZA, FÁBIO. Inativos da educação: despesa da educação? Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, da Associação Brasileira de Política e Administração da Educação. V. 35. N.
[6] Conforme decidido pelo STF (RE 1.067.086) sob a sistemática de repercussão geral (tema 327), a inscrição de entes federados em cadastro de inadimplentes pressupõe, em linhas gerais, o respeito aos princípios do contraditório, ampla defesa e devido processo legal, reconhecido através do julgamento da tomada de contas especial perante o Tribunal de Contas, ou, no caso de não prestação de contas, decurso do prazo previsto na notificação do ente faltoso.
[7] ACO 3131 SC, Rel. Min. Roberto Barroso
[8] ACO 2799 AL, Rel. Min. Dias Toffoli