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Imputabilidade e redução da maioridade penal

UMA ACEPÇÃO DA APLICAÇÃO DO DIREITO PENAL DO INIMIGO NO DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

O presente artigo promove uma breve discussão em torno da redução da maioridade penal e do direito penal do inimigo no âmbito do direito da criança e do adolescente, fazendo uma correlação com a obra Estado de Exceção, de Giorgio Agamben.

1. INTRODUÇÃO

A responsabilização penal dos menores de dezoito anos de idade no Brasil é tema recorrente e que provoca profunda discussão. A matéria esteve em pauta na seara legislativa por meio da emenda constitucional nº 171/93, aprovada no plenário da Câmara dos Deputados, tendente a reduzir a idade da inimputabilidade penal.

A justificativa para a aprovação da proposta foi de que a partir dos dezesseis anos o adolescente já deve responder pelos seus atos como os maiores de dezoito anos, posto que já possui condições de discernir o certo do errado, possuindo maturidade suficiente para entender o caráter ilícito de sua conduta. Esse entendimento é o que tem prevalecido para a maioria dos brasileiros, segundo pesquisa realizada no início do ano de 2019. (FOLHA DE SÃO PAULO, 2019).

Na realidade, o principal fundamento da proposta é deixar de lado a impunidade de adolescentes em conflito com a lei, por conta do tratamento meramente terapêutico do Estatuto da Criança e do Adolescente, o que soaria como impulso à impunidade, despertando a atenção de todo o país, em meio a tantas notícias de corrupção, violência urbana e crise econômica.

O presente trabalho promove breve estudo sobre a conveniência de estabelecer a responsabilidade penal dos adolescentes de dezesseis anos, procurando neutralizar a pretendida redução, da forma como proposta, a partir da ideia de que essa tentativa reflete um viés da aplicação do direito penal do inimigo no direito da criança e do adolescente.

  1. Teses favoráveis à redução da maioridade penal

Nesse ponto de partida, admitem os entusiastas da redução da idade penal o fato de que a partir dos dezesseis anos o adolescente já se habilita a alistar-se como eleitor, possuindo maturidade para exercer a soberania popular, direito, aliás, protegido pela Carta Magna, que o elegeu como núcleo intangível, ex vi do art. 14, caput, c/c art. 60, inciso II, do § 4º, ambos da Constituição da República Federativa do Brasil. Essa referência é feita como uma das sedutoras teses que buscam modificar a responsabilidade penal.

Sobre o tema, discorre Bitencourt (2008):

No Brasil, discute-se atualmente a necessidade ou conveniência de estabelecer a responsabilidade penal aos dezesseis anos, acrescentando-se aos argumentos conhecidos o fato de, a partir da Constituição de 1988, ser possível a esse menor alistar-se eleitoralmente (deve-se ressalvar, contudo, que o exercício do direito-dever de votar, nessa faixa etária, é facultativo e não absoluto, como determina a regra geral). E ainda, argumenta-se, tornando-os imputáveis, ser-lhes-á possível adquirir igualmente a habilitação para dirigir veículos. Convém lembrar, para reflexão, que o Código Penal da Espanha, que entrou em vigor em maio de 1996 (Ley Orgânica nº 10/95).

A ideia central é a de que não há vedação constitucional explícita à diminuição da responsabilidade penal no catálogo do § 4º do art. 60 do tecido constitucional, anotando ainda que a redução da maioridade criminal atenuaria a criminalidade ao eliminar a impunidade dos adolescentes e jovens em conflito com a lei. É dizer: impunidade gera mais violência!

Não é demais lembrar que parte da sociedade que defende as mudanças se baseia no fato de que atualmente os adolescentes com idade inferior a dezoito anos possuem plena capacidade de entender aquilo que fazem, sendo dotados de pleno desenvolvimento intelectual e cognitivo da criminalidade juvenil. Nesse aspecto, obrigatoriamente devem responder por seus atos no âmbito do Direito Penal.

  1. Teses contrárias à redução da maioridade penal

Vêm à tona as principais razões de política criminal que levaram o legislador brasileiro a escolher a absoluta presunção da inimputabilidade penal do menor de dezoito anos.

Compilando essas teses, observa-se que a premissa de uma punição mais severa não seria capaz de erradicar ou reduzir o número de atos infracionais, pouco impactando no fator da reincidência infantojuvenil. Ademais, há entendimento de que as crianças e os adolescentes que cometem fatos ilícitos são, na verdade, vítimas, por ainda estarem com a personalidade em formação. (DUPRET, 2012, p. 221)

É preciso refletir se a estrutura prisional seria suficiente para suportar a redução da maioridade penal. Não é de hoje que várias medidas são pensadas objetivando a redução da população carcerária, tal como ocorre com a audiência de custódia, instrumento previsto internacionalmente pelo Pacto de San José da Costa Rica, objeto de regulação pelo Colendo Conselho Nacional de Justiça por meio da Resolução nº 213/2015, que pode ser objeto de votação na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, em uma tentativa de sustar os seus efeitos. (O ANTAGONISTA, 2019).

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Além disso, a maioridade penal de 18 (dezoito) anos é a regra adotada na maioria dos países, e o oposto, ou seja, a redução, não influencia significativamente na redução da criminalidade.

Na precisa lição de Bitencourt (2008):

[...] Admitimos, de lege ferenda, a possibilidade de uma terceira via: nem a responsabilidade penal do nosso Código Penal, nem as medidas terapêuticas do Estatuto da Criança e do Adolescente, mas uma responsabilidade penal diminuída, com consequências diferenciadas, para os infratores jovens com idade entre dezesseis e vinte e um anos, cujas sanções devam ser cumpridas em outras espécies de estabelecimento, exclusivas para menores, com tratamento adequado, enfim, um tratamento especial. [...]

Várias são as razões daqueles que se manifestam contrariamente à redução da maioridade penal. Talvez, ao invés de defender a redução da menoridade penal, seria mais aceitável, do ponto de vista interdisciplinar, antropológico e social, sugerir um tratamento diferenciado para o adolescente em conflito com a lei.

  1. O direito penal do inimigo e sua incidência no direito da criança e do adolescente.

O desafio do Direito Penal contemporâneo é superar uma crise da violência urbana que toma conta de todo o país. Várias são as medidas que têm sido buscadas para frear a criminalidade. Nenhuma, ao que parece, tem se mostrado eficaz para alcançar o objetivo de pacificação, segurança e ímpeto de justiça, restando, como bola da vez, a diminuição da responsabilidade penal.

Posto isso, surgem medidas odiosas que tendem a tratar os criminosos como verdadeiros inimigos do sistema jurídico. A ideia é chegar a uma ideologia que se aproxime da corrente da lei e ordem, mais próximas de um verdadeiro Estado de Exceção.

Agamben (2004, p. 15) conceitua o Estado de Exceção como “uma estrutura original pela qual o direito inclui em si o vivo por meio de sua própria suspensão”.

Segundo Madeira (2012), Agamben, com o intuito de analisar as formas de controle dos Estados modernos, trata da criação de um regime diferenciado para a manutenção da ordem e da defesa nacional, em face dos riscos de novos ataques terroristas, após o atentado de 11 de setembro de 2001.

Nesse estado diferenciado, surge a necessidade de um regramento jurídico especial, brotando, em síntese, um modelo de combater o inimigo que se volta contra o sistema.

Inimigo, na visão penalista, é o indivíduo que afronta a estrutura do Estado, pretendendo desestabilizar a ordem nele reinante ou, quiçá, destruí-la. (MASSON, 2008)

Perguntar-se-ia: o menor de dezoito anos em conflito com a lei é o inimigo do sistema? A ele deve ser aplicado um regramento diferente do que se propõe o Estatuto da Criança e do Adolescente? Se afirmativo, a redução da maioridade penal é a melhor opção?

Sustenta-se nesse ensaio que os menores de dezoito anos constituem uma minoria que precisa ser protegida, estudada com sensibilidade e não alienada. A redução da maioridade penal, por si só, constitui um viés de aplicação do direito penal do inimigo no direito da criança e do adolescente, como terceira velocidade do Direito Penal: privação da liberdade e suavização ou eliminação de direitos e garantias penais e processuais, não nos parecendo a melhor opção. (SILVA SÁNCHEZ, 2002, p. 55)

O Direito da Criança e do Adolescente encontra substrato normativo no tecido constitucional, donde se extrai a doutrina da proteção integral (artigos 227 e 228 da Constituição Federal). Em suma, sendo a criança ou adolescente pessoa em desenvolvimento, a aplicação de norma com conteúdo previsto para tutelar atos praticados por adultos resulta em transgressão a um dogma de viés constitucional.

No mesmo diploma constitucional é estabelecido como um dos seus fundamentos a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III da CF/88.). Esse postulado, que se constitui núcleo intangível, é correlato ao mínimo existencial. Com efeito, dentre os direitos fundamentais da criança e do adolescente, no Estado contemporâneo, encontra-se a dignidade da pessoa humana, como vetor que irradia outros tantos direitos humanos, tais como a vida, a liberdade e a integridade física. (BARCELOS apud BARROS, 2014).

Esta é a razão pela qual se pode afirmar que qualquer medida que venha a reduzir as garantias constitucionais e estatutárias conquistadas em favor dos menores de dezoito anos importaria em violação aos direitos humanos fundamentais.

Disso resulta uma conclusão preliminar: do ponto de vista penal, a redução da idade para a responsabilidade penal afasta o primado da Constituição e aproxima o direito penal do inimigo ao direito da criança e do adolescente.

  1. Sistema atual das medidas socieducativas e necessidade de mudança.

O sistema atual das medidas socioeducativas do Estatuto da Criança e do Adolescente precisa ser aperfeiçoado em alguns pontos, máxime quando envolver a prática de atos infracionais graves ou gravíssimos, tais como os etiquetados como hediondos.

Nessa linha de raciocínio, somos levados a crer que há uma exigência para que a duração da medida de internação deva sofrer reajuste, majorando-se o piso máximo de três anos, quando o fato descrito como infracional grave ou gravíssimo carecer de um tratamento educacional e prisional diferenciado, tudo com vistas a inserir adequadamente o jovem infrator à sociedade.

A indicação de um sistema de internação com o lapso temporal mais rígido, nas hipóteses de atos infracionais equiparados a hediondos e no caso de reincidências específicas, funcionaria como uma via alternativa à responsabilidade penal diminuída dos infratores jovens.

Na hipótese de majoração do tempo de internação, é prudente que o tratamento do adolescente continue a ser diferenciado dos imputáveis, conformando o sistema menorista aos direitos humanos fundamentais, evitando qualquer forma de tratamento equivalente aos criminosos adultos.

2. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A teoria do Direito Penal do Inimigo, desenvolvida pelo alemão Günther Jakobs, consiste em diferenciar o inimigo do cidadão, quando responderem por conduta praticada em desfavor do Estado, de modo a incidir um sistema de processo diferenciado, sem obediência ao devido processo legal, quando o imputado for pessoa hostil, malquista ou dedicada ao crime.

Essa teoria, como cediço, recebe críticas diversas e não possui simpatia nos sistemas processuais nos quais são respeitados os direitos e garantias legais e constitucionais, como no Brasil.

Esse novo modelo de punição, segundo defendemos neste trabalho, constitui um dos fundamentos ideológicos para as propostas de redução da maioridade penal, o que é vedado por parte majoritária da doutrina.

Especificamente para o tratamento terapêutico dado pelas medidas socioeducativas em vigor para atos infracionais graves ou gravíssimos, deve-se buscar um novo modelo, elevando o piso máximo da medida de internação, após um indispensável e reflexivo estudo sobre a matéria, admitindo-se essa possibilidade como meio de conter a chamada punibilidade branca do Estatuto da Criança e do Adolescente para as condutas praticadas por adolescentes e jovens infratores que possuam maturidade que os aproxime da personalidade maiorista, ultrapassando o grau mediano de reprovabilidade.


REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002.

______. Estado de exceção. Trad. Iraci Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.

BARROS, Guilherme Freire de Melo. Direito da criança e do adolescente. Coleção sinopses para concursos, volume 36. 2. ed. Salvador: Jus Podivm, 2014.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, volume 1: parte geral. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988.

DUPRET, Cristiane. Curso de direito da criança e do adolescente. 2. ed. Belo Horizonte: Ius, 2012.

FOLHA DE SÃO PAULO. Maioria quer redução da maioridade penal de 18 para 16 anos, segundo Datafolha. https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/01/maioria-quer-reducao-da-maioridade-penal-de-18-para-16-anos-segundo-datafolha.shtml. Acesso em 25/03/2021.

MADEIRA, Douglas. Resenha: “Estado de Exceção”. Disponível em: https://douglasmsantos.wordpress.com/2012/08/05/resenha-estado-de-excecao/. 2012. Acesso em 25/03/2021.

MASSON, Cleber. Direito penal esquematizado: parte geral. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2008.

O ANTAGONISTA. Presidente da CCJ promete agilizar projeto que acaba com audiências de custódia. Disponível em: https://www.oantagonista.com/brasil/presidente-da-ccj-promete-agilizar-projeto-que-acaba-com-audiencias-de-custodia/ Acesso em 25/03/2021.

SILVA Sánchez, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: RT, 2002.

Sobre os autores
Tarsis Barreto Oliveira

Doutor e Mestre em Direito pela UFBA. Professor Associado de Direito da UFT. Professor Adjunto de Direito da UNITINS. Professor do Mestrado em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos da UFT/ESMAT. Membro do Comitê Internacional de Penalistas Francófonos e da Associação Internacional de Direito Penal.

Jean Fernandes Barbosa de Castro

Doutorando em Desenvolvimento Regional pela UFT/ESMAT e em Direito Constitucional pela PUC-RIO-Rio/ESMAT. Mestre em Prestação Jurisdicional de Direitos Humanos pela UFT. Professor Universitário. Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins.

Informações sobre o texto

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