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Elaborando a denúncia criminal

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Agenda 24/11/2006 às 00:00

Sumário: 1. Introdução. 2. A Persecução Penal como Monopólio Estatal. 3. Persecução Penal: Ação e processo. 4. Da Juridicização à Jurisdicionalização. 5. Alternativas: Arquivamento, Diligências, Denúncia. 6. Condições da Ação. 7. Princípios de regência e Princípios Informativos. 7.1. Princípio da Precisão. 7.2. Princípio da Concisão. 7.3. Princípio da Precisão. 7.4. Princípio da não Limitação da Acusação 8. Elaborando a Denúncia ou Queixa. 9. Controle da Denúncia ou Queixa. 10. Conclusões.


1. INTRODUÇÃO

O período recente da legislação penal brasileira tem se marcado pelo balanço de medidas de descriminalização e descarcerização e de medidas de recrudescimento penal.

Marco importante foi a Lei dos Juizados Especiais (Lei nº 9.099/90) que trouxe os institutos da composição cível, transação penal e a suspensão condicional do processo. Antes dela, porém, a Lei nº 8072/90 havia estabelecido o rol dos crimes hediondos, vendando-lhes a concessão da liberdade provisória e da progressão de regime, neste último caso medida declarada recentemente (e infelizmente) inconstitucional pelo STF.

A Lei nº 9.714/98 versou sobre as penas substitutivas, em franca medida de descarcerização (merecendo encômio). Ao revés, as Lei nº 9.437/97 e 10.826/03 recrudesceram o tratamento penal em relação às armas de fogo (também merecendo aplausos, ainda que com algumas impropriedades). Mais recentemente, a Lei nº 11.343/06 estabelece disciplina penal e processual para os delitos relacionados a entorpecentes, estabelecendo uma dicotomia entre o usuário e o traficante, com visível abrandamento do tratamento deferido ao primeiro.

O que se constata do balanço destas alterações, ora em um sentido, ora em outro, é que a criminalidade não reduz, ao contrário, se expande e se sofistica. Na verdade, este não é um fenômeno sazonal de nosso País, mas um fenômeno mundial, que acompanha o aumento da complexidade da sociedade moderna.

O descomunal desenvolvimento da humanidade nos últimos duzentos anos ampliou significativamente o rol de bens jurídicos passíveis de tutela penal. A estruturação científico-dogmática do direito penal permitiu a concepção de legislações abrangentes e complexas. Por outro lado, também se incrementaram as possibilidades de cometimento de ilícitos, pois a delinqüência não se manteve infensa à tecnologia.

O fato é que hoje a criminalidade é uma realidade presente, embora não haja motivo para alarmismos ou precipitações, sempre desastrosos em termos de repressão penal. Mas esta constatação é importante para que a sociedade, e principalmente os operadores jurídicos (e aqui faço abranger a todos os que trabalham na área jurídica), não ignorem esta problemática. No caso dos operadores jurídicos esta preocupação se traduz em problemas técnicos.

Não é incomum o profissional jurídico, assim como ocorre nas áreas médicas, por exemplo, se especializar em determinada área, afastando-se de outras. Mas no caso do direito e do processo penal, ainda nestas hipóteses onde se busque evitar trabalhar-se nesta área, é de bom alvitre que noções fundamentais sejam aprendidas e mantidas em constante atualização, pois a cobrança prática em relação a estes conhecimentos pode vir de formas inusitadas.

De qualquer forma, na fase de formação, este conhecimento inarredavelmente será ensinado e sobre ele se operará cobrança. Há, portanto, presente demanda de trabalhos de exposição e sistematização da matéria, em especial de trabalhos que possam conceder ao aluno uma visão prática, que é imprescindível ao bom exercício de sua profissão futuramente, qualquer que seja a especialidade.

O presente trabalho, tendo em vista esta constatação, buscará abordar aspectos teóricos e práticos de uma das mais importantes questões da área penal: a denúncia.

A denúncia, juntamente com a decisão final, representa momento crucial da persecução penal. Como peça motriz do procedimento judicial penal, demanda especial atenção e enseja uma série ampla e substancial de questões. Estas questões é que serão adiante tratadas, com especial ênfase a aspectos práticos, acerca dos quais os manuais usualmente utilizados no estudo do processo penal são relativamente carentes.

Antes, porém, é necessário que lancemos algumas pontuações para constituição de uma base teórica fundamental à compreensão do singular papel desenvolvido pela denúncia criminal, não se olvidando que a presente abordagem não está voltada exclusivamente ao profissional, mas também ao estudante, daí sendo escusada a menção a algumas conceituações e realização de abordagens de questões já de domínio geral do profissional, mas não necessariamente do estudante.


2. A PERSECUÇÃO PENAL COMO MOMOPÓLIO ESTATAL

A noção de Estado como hoje a conhecemos é relativamente recente, datando de três séculos. Mais recente ainda é a noção de Estado de Direito e de Estado Democrático de Direito.

A concepção material de um Estado de Direito pressupõe o exercício, pelo ente estatal, de uma série mínima de atividades, algumas das quais com exclusividade. Dentre estas últimas, encontram-se as atividades típicas dos poderes, segundo a clássica teoria da tripartição das funções-poderes. Uma destas atividades é a de administração da justiça.

O exercício jurisdicional é monopólio estatal, até porque a jurisdição é emanação da própria soberania. Isto não significa que a composição de litígios, com aplicação da lei ao caso concreto, seja exclusiva do Estado, uma vez que há possibilidade de juízos arbitrais na área privada. Mas no campo do direito público, particularmente em relação ao Direito Penal, a regra da inafastabilidade de apreciação jurisdicional é regra absoluta, visto que a persecução penal é monopólio do Estado. Não há, em regra, aplicação concreta final da lei penal fora do âmbito do poder judiciário. Esta é uma premissa fundamental.

A aplicação da lei penal se faz através do exercício da ação penal, cuja manifestação concreta é o processo penal, aqui mencionado no sentido de veículo daquela. Temos, portanto, a formação de um tripé: jurisdição, ação e processo, como elementos interligados1.

A correta compreensão destes institutos começou a ser urdida a partir de meados do século XIX. Mas é interessante observar que os estudos que fundaram a moderna dogmática processual foram conduzidos tendo em pauta o processo civil, cuja matriz hermenêutica é voltada para a resolução de conflitos entre sujeitos privados e com aplicação de direito com idêntica natureza. Houve uma visível dicotomia entre o processo civil e o processo penal, tendo este último sido notoriamente negligenciado frente à quantidade e profundidade dos estudos destinados ao processo civil.

Esta perspectiva se traduziu em uma visão míope, que desconsiderou os benefícios dos estudos do processo à luz de uma teoria geral do processo. O sincretismo processo-direito material do período anterior à independência dogmática do processo ainda influenciou toda a elaboração científica então conduzida, de forma que se partiu da equivocada premissa de que a diversidade da natureza dos direitos materiais postos em apreciação decorresse, necessariamente, uma diversidade ontológica e invencível dos fenômenos processuais correlatos.

Conseqüência deste fato foi a enorme perda gerada pela desconsideração dos benefícios que seriam gerados a partir da consideração do processo através do prisma de uma teoria geral do processo, que permitisse o estudo conjunto dos infinitos pontos de comunhão entre o processo penal e o processo civil.

Por outras palavras, o equívoco da perspectiva que norteou até bem recentemente o estudo do processo residiu em não atentar para o fato de que o que há de comum entre o processo civil e o processo penal é muito mais significativo do que o que há de diversidade.

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Esta falha tem sido paulatinamente corrigida pela adoção de uma visão centrada não mais na ação, típico reflexo da matriz privatista que serviu de base ao processo, a qual é substituída por uma visão centrada na jurisdição, mais própria a abarcar o direito público, seja penal ou de natureza diversa.2

Somente a pouco tempo começamos a ver que a ação existe em função do exercício da jurisdição, ocupando esta última o centro do sistema, e não o inverso.

Passamos a poder compreender que o que há de essencial para o Estado e para a sociedade é o exercício da jurisdição, sendo a ação e o processo opções de como este exercício pode ser lavado a efeito.

Desta forma, a persecução penal é monopólio do Estado, sendo exercida través de uma ação que origina um processo.


3. PERSECUÇÃO PENAL, AÇÃO E PROCESSO

Não só no campo do direito processual a dicotomia entre a natureza civil ou penal do caso concreto produziu efeitos danosos, pois estes se fazem presentes mesmo no campo do direito material.

O estudo do fenômeno da juridicização é conduzido fundalmentalmente sob a perspectiva do direito de natureza civil ou privada. Ocorre, porém, que a juridicização decorrente da norma penal não traduz fenômeno diverso. De fato, o Estado, in casu a União, titular da competência legislativa penal, ex vi do artigo 22, inciso I, da CF/88, estabelece através da legislação penal uma pauta de comportamentos, uns estimulados, outros indesejados.

Para tanto, a legislação penal se vale de normas materializadas em regra sob a forma de tipos, ou seja, previsões positivadas abstratas que agregam a um comportamento uma sanção (conceito válido para o tipo incriminador).

A ocorrência no mundo empírico da hipótese abstratamente prevista enseja a juridicização, que eqüivale à entrada daquele fato concreto no mundo jurídico, tornando-o apto a gerar alguma conseqüência juridicamente relevante.

A juridicização conduz, em linha de princípio, ao direito subjetivo, que condensa a atribuição a uma pessoa da capacidade de agir fática e juridicamente em vista deste direito e das conseqüências que ele prevê. Ao direito subjetivo podem vir agregadas a ação e a pretensão.

Superado o sincretismo imanentista, que confundia os planos do direito material e processual, hoje sabemos que há direito subjetivo material, ação de direito material e pretensão de direito material, e há direito subjetivo de ação, ação processual e pretensão processual.

Observada esta separação dos planos, temos que "a ação é o direito subjetivo público que tem qualquer pessoa de exigir do Estado a prestação jurisdicional. Essa definição convém a todos os tipos de ação."3

A moderna concepção de ação, descortinando a independência dos planos material e processual, concebe a ação como "um direito abstrato que independe da existência ou inexistência do direito substancial (material) que se pretende, através dela, ver reconhecido ou satisfeito."4 A propósito, lembram Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pelegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco:

"Caracteriza-se a ação, pois, como uma situação jurídica de que desfruta o autor perante o Estado, seja ela um direito (direto público subjetivo) ou um poder. Entre os direitos públicos subjetivos, caracteriza-se mais especificamente como direito cívico, por ter como objeto uma prestação positiva por parte do Estado (obrigação de dare, de facere, praestare): a facultas agendi do indivíduo é substituída pela facultas exigendi.

Nessa concepção, que é da doutrina dominante, a ação é dirigida apenas contra o Estado (embora uma vez apreciada pelo juiz, vá ter efeitos jurídicos na esfera jurídica de outra pessoa: o réu ou executado). Nega-se, portanto, ser ela exercida contra o adversário isoladamente, contra este e o Estado ao mesmo tempo, ou contra a pessoa física do juiz." 5

Mas enquanto o direito de ação abstratamente considerado é um direito constitucional genérico e ilimitado, aproximando-se, como advogava Couture, do próprio direito de petição, o direito de ação processual é limitado, uma vez que condicionado pelas denominadas condições da ação, cuja ausência conduz ao juízo de "carência de ação". Não obstante a dicotomia entre o direito (objetivos) processual civil e penal, esta categoria, a das condições da ação, é comum a ambos.

Para desincumbir-se da obrigação de prestação jurisdicional que lhe é carreada, o Estado instituiu o processo. Múltiplos significados podem ser conferidos ao vocábulo. Como conjunto de atos concatenados a uma finalidade, certamente que não há ação sem um "processo", porque a prestação jurisdicional terá necessariamente de envolver uma série de atividades do ente estatal, no caso o Estado-Juiz. Mas a instituição de um processo como uma relação jurídica de direito público é uma opção do legislador. Surgiu como uma conseqüência do desenvolvimento dogmático do direito processual e como exigência de um Estado Democrático de Direito.

Na esteira deste raciocínio, a presença de um processo como relação jurídica de direito público regrada por normas que observam os cânones e valores constitucionais é mecanismo imprescindível para assegurar a legitimação do exercício do poder sub especie jurisdicionis. A respeito, pertinente mencionar as conclusões do Ministro Celso de Melo no julgamento do HC 73.338, in verbis:

"A persecução penal rege-se, enquanto atividade estatal juridicamente vinculada, por padrões normativos, que, consagrados pela Constituição e pelas leis, traduzem limitações significativas ao poder do Estado. Por isso mesmo, o processo penal só pode ser concebido — e assim deve ser visto — como instrumento de salvaguarda da liberdade do réu. O processo penal condenatório não é um instrumento de arbítrio do Estado. Ele representa, antes, um poderoso meio de contenção e de delimitação dos poderes de que dispõem os órgãos incumbidos da persecução penal. Ao delinear um círculo de proteção em torno da pessoa do réu — que jamais se presume culpado, até que sobrevenha irrecorrível sentença condenatória —, o processo penal revela-se instrumento que inibe a opressão judicial e que, condicionado por parâmetros ético-jurídicos, impõe ao órgão acusador o ônus integral da prova, ao mesmo tempo em que faculta ao acusado, que jamais necessita demonstrar a sua inocência, o direito de defender-se e de questionar, criticamente, sob a égide do contraditório, todos os elementos probatórios produzidos pelo Ministério Público. A própria exigência de processo judicial representa poderoso fator de inibição do arbítrio estatal e de restrição ao poder de coerção do Estado. A cláusula nulla poena sine judicio exprime, no plano do processo penal condenatório, a fórmula de salvaguarda da liberdade individual" 6

Ordinariamente, a legitimidade para o exercício do direito de ação é atribuída ao respectivo titular do direito subjetivo material, havendo, porém, situações onde esta regra é excepcionada, em especial diante dos novos direitos de terceira geração, de feição difusa ou coletiva.

Especificamente no caso do direito penal, ocorrida a juridicização pela correspondência entre o suporte fático concreto (fato do mundo natural) e o suporte fático abstrato (tipo), surge para o Estado o jus puniendi a que se relaciona o jus perseqüendi in juditio, porque o direito de punir não será exercido senão em juízo, através de um "due process of law", permeado pela ampla defesa e pelo contraditório.

O jus perseqüendi in juditio corporifica-se em um processo, que, por imposição lógica, apresenta fases distintas, de proposição, defesa, instrução e julgamento. A propositura, no caso do processo penal, é feita através do oferecimento da denúncia ou queixa, que nada mais é do que a "petição inicial do processo penal".

No processo penal, a legitimidade para propositura da ação e desencadeamento do respectivo processo é atribuída, em regra, ao Ministério Público, e excepcionalmente ao ofendido, não mais havendo as ações penais instauradas por portaria da autoridade policial, como anteriormente ocorria nos caos de contravenções e delitos de trânsito7.

O fato de um órgão estatal dar início à ação penal perante outro órgão do Estado, não legitima a ilação de que atue o Ministério Público em situação diversa da que atuaria o titular de um direito privado qualquer. Aliás, a legitimação ordinariamente concedida à pessoa física ou jurídica, ou a órgão, não altera ou interfere na substância do direito que está sendo exercido. O contrário é que pode ocorrer. No caso do direito penal, sendo o direito subjetivo titularizado pelo Estado, a concessão a um órgão seu ou extraordinariamente ao ofendido não altera esta titularidade, exatamente porque a legitimação ad causam, condição da ação, é um instituto de natureza exclusivamente processual, ainda que se busque o aporte da dimensão material. Em síntese, não repercute sobre a dimensão material.


4. DA JURIDICIZAÇÃO À JURISDICIONALIZAÇÃO

Juridicização e jurisdicionalização não se confundem. Um fato relevante penalmente é juridicizado assim que um suporte fático concreto encontra correspondência com o suporte fático abstrato de um tipo. Esta subsunção opera-se no plano abstrato. Não requer qualquer providência humana e tampouco demanda conhecimento por qualquer um de que ela se tenha operado.

Se um indivíduo dispara uma arma para cima e vem a atingir, sem querer, um indigente que se encontrava no interior de uma mata e cujo corpo jamais vem a ser encontrado, tal fato não será de conhecimento de ninguém, e jamais será objeto de investigação ou processo. Não obstante, ainda que desconhecido de qualquer pessoa e especialmente das autoridades e agentes que conduzem a persecução penal, ocorreu neste fato, em tese, um homicídio culposo, pois uma ação humana causou a morte de uma pessoa.

Quando o fato vem a ser conhecido e é levado a juízo, há a jurisdicionalização, ou seja, o fato típico é objeto de persecução penal através do exercício do direito de ação e da formação de uma relação processual. Observa-se que, para que isso ocorra, é fundamental que os agentes e autoridades encarregados de realizar a persecução penal tenham conhecimento do fato penalmente relevante.

O conhecimento acerca da existência de um delito pode ocorrer de forma direta, quando agentes estatais encarregados da atividade policial tomam ciência direta da infração. Nestes casos, a investigação iniciará por iniciativa dos próprios agentes policiais, e quiçá, inclusive através de prisão em flagrante.

Mas a maioria das situações é de conhecimento indireto dos fatos, através da notitia criminis, que é uma comunicação de conhecimento efetuada à autoridade policial. Não se trata de ato jurídico lato sensu, pelo que não requer capacidade jurídica ou objeto lícito ou mesmo forma especial. Desta comunicação poderá ou não ocorrer a instauração de uma investigação criminal. Se houver necessidade de representação, por exemplo, e esta não for exercida, o feito não irá adiante, salvo a remessa, se for o caso, para o juizado especial, pois tem sido requerida a renúncia em audiência judicial ao direito de representação.

Com o advento da Lei nº 9.099/95, passamos a ter duas espécies de procedimentos investigatórios básicos, ou seja, o inquérito policial e o termo circunstanciado. Esta fase, conduzida pela autoridade policial e denominada fase inquisitorial, marca-se por atividades eminentemente administrativas. Não fica inviabilizada a presença de atividades jurisdicionais, praticadas pela autoridade competente e que se consubstanciam nas prisões cautelares, apreciação de pedidos de busca e apreensão etc... O que ocorre é que, em regra, a atividade é de investigação, e não ostenta caráter jurisdicional, não estando, portanto, sujeita a recursos.

Em vista desta natureza, a necessidade de contraditório e ampla defesa não é regra nesta fase. A propósito, pertinente citar a conclusão do julgamento do RHC 16.152/SP, pela Sexta Turma do STJ, onde o relator, Ministro Hamilton Carvalhido, asseverou que

"o inquérito policial é mero procedimento de natureza inquisitorial, destinado à apuração das infrações penais, cuja falta em nada impede a propositura da actio poenalis, se de outros elementos de sua prova dispuser o seu titular, não havendo falar em exercício do direito de defesa nessa fase da persecutio criminis."

Da mesma forma, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 82.354, tendo por relator o Ministro Sepúlveda Pertence decidiu:

"Inaplicabilidade da garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa ao inquérito policial, que não é processo, porque não destinado a decidir litígio algum, ainda que na esfera administrativa; existência, não obstante, de direitos fundamentais do indiciado no curso do inquérito, entre os quais o de fazer-se assistir por advogado, o de não se incriminar e o de manter-se em silêncio." 8

Mas o mesmo Excelso Pretório, quando analisando o sigilo em investigação levada a efeito pelo Ministério Público, concluiu diversamente:

"Entendeu-se que eventual sigilo em procedimento investigatório não pode ser oposto ao acusado e ao seu defensor relativamente aos atos de instrução já realizados e documentados. Nesse sentido, esclareceu-se que o segredo deve ser mantido somente quanto aos atos de investigação, tanto na deliberação quanto na sua prática, quando necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse social (CPP, art. 20). Todavia, uma vez formalizada a diligência, em documento, deve-se permitir o exercício do direito de defesa na fase preliminar da persecução penal. Citaram-se, ainda, algumas normas infraconstitucionais que tratam da inoponibilidade ao defensor do sigilo eventualmente decretado na persecução penal (Lei 8.906/94, art. 7º, XIV; CPPM, art. 16; Lei 6.368/76, art. 20). Além disso, asseverou-se que invocar a intimidade dos demais investigados para obstar o acesso aos autos importa restrição ao direito de cada um dos envolvidos. Por fim, aduziu-se que, diversamente do inquérito penal, que possui regramento próprio no CPP, os procedimentos investigatórios do Ministério Público não encontram figura nem forma legais, a dificultar o exercício do direito de defesa. HC parcialmente deferido para garantir ao paciente, por intermédio de seus advogados regularmente constituídos, o direito de acesso, no que lhe diga respeito, aos autos de procedimento investigatório em trâmite perante a Procuradoria da República, no Estado do Rio de Janeiro. Ressaltou-se que este provimento assegura ao paciente o direito de acesso apenas às informações formalmente documentadas nos autos desse procedimento." 9

É fato já assentado na doutrina e na jurisprudência que eventuais nulidades do inquérito não contaminam de nulidade a ação penal nele embasada. A respeito, o STJ a pouco assentou que "eventuais vícios procedimentais ocorridos no inquérito policial não teriam o condão de inviabilizar a ação penal, porquanto aquele constitui mera peça informativa, não sujeito aos princípios da ampla defesa e do contraditório." 10

Obviamente, a prova produzida na fase inquisitorial, sem ampla defesa e contraditório, apresenta escasso valor, não podendo, por si só, lastrear um decreto condenatório. Sua finalidade é, precipuamente, subsidiar a denúncia (ou queixa) ou o arquivamento.

E as investigações podem ser levadas a efeito pelo próprio Ministério Público? O tema ainda rende controvérsia. A respeito manifestou-se o STJ em recente julgamento:

"Em que pese o Ministério Público não poder presidir inquérito policial, a Constituição Federal atribui ao Parquet poderes investigatórios, em seu artigo 129, incisos VI, VIII e IX, e artigo 8º, incisos II e IV, e § 2º, da Lei Complementar n.º 75/1993. Se a Lei maior lhe atribui outras funções compatíveis com sua atribuição, conclui-se existir nítida ligação entre poderes investigatórios e persecutórios. Esse poder de modo algum exclui a Polícia Judiciária, antes a complementa na colheita de elementos para a propositura da ação, pois até mesmo um particular pode coligar elementos de provas e apresentá-los ao Ministério Público. Por outra volta, se o Parquet é o titular da ação penal, podendo requisitar a instauração de inquérito policial, por qual razão não poderia fazer o menos que seria investigar fatos?" 11

No mesmo diapasão, manifestou-se o Ministro Gilson Gipp no Recurso Especial nº 756.891/GO, em cuja ementa consta:

"I. Não obstante se verifique, atualmente, o debate em torno da questão pelo Supremo Tribunal Federal, o entendimento consolidado desta Corte é no sentido de que são válidos, em princípio, os atos investigatórios realizados pelo Ministério Público. II. A interpretação sistêmica da Constituição e a aplicação dos poderes implícitos do Ministério Público conduzem à preservação dos poderes investigatórios deste Órgão, independentemente da investigação policial. III. Independentemente da investigação policial, o Ministério Público pode se valer de outros elementos de convencimento, como diligências complementares a sindicâncias ou auditorias desenvolvidas por outros órgãos, peças de informação, bem como inquéritos civis que evidenciem, além dos fatos que lhe são próprios, a ocorrência, também, de crimes. IV. A vedação dirigida ao Ministério Público é quanto a presidir e realizar inquérito policial. Precedente do STF" 12

No âmbito do Supremo Tribunal federal, o Ministro Nelson Jobim, no julgamento do RHC 81.326, asseverou que "a Constituição Federal dotou o Ministério Público do poder de requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial (CF, art. 129, VIII). A norma constitucional não contemplou a possibilidade do Parquet realizar e presidir inquérito policial. Não cabe, portanto, aos seus membros inquirir diretamente pessoas suspeitas de autoria de crime. Mas requisitar diligência nesse sentido à autoridade policial." 13

Todavia, o mesmo Sodalício, no Inquérito nº 1.957, relatado pelo Ministro Carlos Velloso entendeu que "não há impedimento para que o agente do Ministério Público efetue a colheita de determinados depoimentos, quando, tendo conhecimento fático do indício de autoria e da materialidade do crime, tiver notícia, diretamente, de algum fato que merecesse ser elucidado." 14

De minha parte, não vejo como se possa negar pode investigatório ao Ministério Público, o qual tendo mais (atribuição de formação da opinio delicti) certamente tem que ter o menos (poder de investigar). Esta foi a correta conclusão do julgamento do Habeas Corpus nº 0006761860, Câmara Especial Criminal, Tribunal de Justiça do RS, onde o Relator, Desembargador Marco Antônio Barbosa Leal, concluiu:

"No que tange ao exercício da atividade investigativa pelo Ministério Público, a legitimidade constitucional emerge estampada no artigo 129, inciso VI, da Carta Política.

O dispositivo em comento assegura ao Ministério Público o poder de realizar diligências investigatórias, objetivando formar a opinio delictis. Aliás, não teria sentido que o Parquet, titular exclusivo da ação penal pública, não pudesse colher, por conta própria, elementos necessários ao oferecimento da denúncia." 15

Não se vai advogar aqui a supressão da polícia e a inflação do Ministério Público a ponto de esvaziar a atividade policial. Todavia, em situações excepcionais, a atuação investigativa da instituição é medida não só recomendada como necessária. De qualquer forma, seria de bom alvitre que nos espelhássemos no sistema anglo-saxão, onde a colaboração entre o órgão acusador e a polícia é muito mais intensa e desburocratizada, resultando celeridade e eficiência.

Qualquer que seja o posicionamento quanto a esta matéria, algo, porém, é certo: o inquérito policial não é condição "sine qua nom" para a denúncia.

Documentos, peças de informação e procedimentos oriundos de órgãos administrativos e comissões parlamentares de inquérito podem lastrear o oferecimento da denúncia de forma direta, prescindindo da instauração de procedimento investigatório pela polícia. Assim, não é incomum que procedimentos disciplinares administrativos ou realizados por Tribunal de Contas estribem denúncia.

No caso dos delitos sujeitos a ação privada, a instauração de procedimento policial carece de requerimento do interessado, diversamente do que ocorre nos delitos de ação pública, onde a autoridade age de ofício.

Recebidos elementos de informação que podem, em tese, ter repercussão penal, três caminhos se abrem.

Sobre o autor
Marcelo Colombelli Mezzomo

Ex-Juiz de Direito no Rio Grande do Sul. Professor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEZZOMO, Marcelo Colombelli. Elaborando a denúncia criminal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1241, 24 nov. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9196. Acesso em: 5 nov. 2024.

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