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A teoria da co-culpabilidade na perspectiva do Estado Democrático de Direito

Agenda 25/11/2006 às 00:00

Para entendermos o que vem a ser a chamada co-culpabilidade e como ela pode influir na dosimetria da pena, faz-se mister esclarecer previamente alguns pontos sobre a culpabilidade como elemento do crime em seu conceito analítico, assim como sobre o papel do Estado Democrático de Direito em uma sociedade onde a desigualdade campeia.

Superada a teoria causal da ação e, por conseqüência, transferindo-se os elementos subjetivos – dolo e culpa – da culpabilidade para o fato típico, a teoria finalista da ação de Hans Welzel inaugura uma nova configuração para o conceito de culpabilidade, que agora passa a ser analisado tomando-se por base somente a imputabilidade, a potencial consciência da ilicitude, e a exigibilidade de conduta diversa.

Nesses termos a culpabilidade é compreendida como um juízo de reprovabilidade social da conduta típica e ilícita do agente. A culpabilidade, assim, revela-se como um juízo de valor, ou seja, um juízo de censura à conduta do agente, como fenômeno exclusivamente normativo, não sofrendo influência de dolo ou culpa. Sendo certo que a culpabilidade também pode ser considerada como elemento de determinação ou medição da pena.

Por outro lado, é importante ressaltar que a culpabilidade como juízo de reprovação da conduta é eminentemente individual, vale dizer, deve recair exclusivamente sobre a conduta do agente. Assim, partindo da verdade de que cada homem possui sua própria identidade, personalidade e história pessoal, não havendo no mundo um ser igual ao outro, tendo peculiaridades que o distinguem dos demais seres, não é demais afirmar que em tema de culpabilidade todos esses fatos – internos e externos – devem ser levados em consideração no momento de se aferir se o agente, na condição em que se encontrava, podia agir de tal ou qual modo.

Para tentar explicar o fundamento da reprovabilidade da conduta, duas teorias, aparentemente excludentes (e só aparentemente), apontam uma justificativa para esse juízo de censura, quais sejam, a primeira, advinda da Escola Clássica, prega o livre-arbítrio; e a segunda, oriunda da Escola Positiva, prega o determinismo.

Para a primeira corrente, a do livre-arbítrio, o fundamento da responsabilidade penal está na responsabilidade moral do indivíduo, afirma que o homem é moralmente livre para fazer suas escolhas, só sendo punível por que é moralmente livre, pois estava ao seu alcance ao invés de praticar um ato criminoso, praticar um ato meritório.

Já para a segunda corrente, a determinista, o homem não teria tanta liberdade de escolha, mas sim que seria fortemente influenciado por fatores externos e internos que o levariam a agir. Desta feita, o valor da herança da educação, do meio físico e social em que o agente cresce e vive, são poderosamente responsáveis pela formação de seu caráter e temperamento, criando-lhe idéias e sentimentos que certamente guiarão sua conduta no seio da sociedade (ARAGÃO, apud GRECO, Rogério, 2005).

Na verdade, segundo acertada lição de Rogério Greco, livre-arbítrio e determinismo são conceitos que se completam. Todos sabemos a influência do meio social na prática de determinadas infrações penais, e de como ele pode ser inspirador para o agente com valores menos rígidos e de personalidade mais suscetível de influência, entretanto, também é certo que nem todos que vivem em um meio social desfavorável se tornam infratores da lei penal, resistindo e mantendo uma conduta correta, não se deixando influenciar. Para os primeiros, ou seja, para aqueles que não resistem à influência do meio, é que se vai cogitar da aplicação da teoria da co-culpabilidade.

Assim posta a questão é preciso fazer alguns apontamentos sobre o papel do Estado Democrático de Direito na sociedade atual, mormente quanto à sua atuação (ou inação) na área social.

É cediço que o papel do Estado vem sofrendo modificações ao longo do tempo e, em função de conjunturas políticas, econômicas ou sociais, é redesenhado em seus misteres para melhor atender aos anseios da sociedade de cada época e lugar.

Assim se deu na primeira metade do século XX, onde, diante de crises econômicas e crescente instabilidade social, veio à lume, decerto inspirado nas teorias intervencionista de Keynes, o chamado Estado Social de Direito, que agora se prestava a intervir fortemente na economia e, no campo social, a prestar de forma universalizada alguns serviços públicos considerados essenciais para o bem estar e o desenvolvimento saudável de uma sociedade, tais como a educação e a saúde, além de prestar auxílio ao cidadão quando este se encontrasse em situação de risco social, como por exemplo, em forma de ajuda financeira temporária aos desempregados involuntários, assistência social ao idosos e aos inválidos que não mais possuem condições de trabalhar e nem de ter a sua subsistência mantida por familiares.

Destarte, vale dizer, o Estado assumiu para si grande parcela de responsabilidade no desenvolvimento econômico e social da sociedade contemporânea, ainda mais em uma sociedade desigual como a brasileira, onde a pobreza e a marginalidade atingem níveis alarmantes.

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O Estado brasileiro, tal como configurado na Constituição Federal de 1988, apresenta claras feições de um Estado Democrático e Social de Direito, razão pela qual possui o dever - repita-se - possui o dever de não só apoiar o desenvolvimento econômico e social mas também de promovê-lo, sendo um importante gerador de oportunidades para grande parcela da população, devendo distribuir os direitos fundamentais de forma harmônica entre as pessoas (justiça social), uma vez posto que o Estado que não se preocupa com políticas sociais efetivas de inclusão, investindo em ensino, saúde, saneamento básico, moradia, criação de novos postos de trabalho, é por demais omisso, menosprezando um dever constitucional, tornando-se, portanto, ao menos em tese, responsável pelas conseqüências.

Nesses termos creio que já se pode então vislumbrar o que vem a ser a chamada teoria da co-culpabilidade. Trata-se da responsabilidade conjunta do Estado sobre os atos praticados por seus cidadãos, mormente quando estes sofreram menosprezo em seus direitos fundamentais por parte de um Estado omisso no campo social. E assim sendo, nada mais justo que repartir com o agente infrator da lei parte da pena a ele imposta pelo próprio Estado, assumindo sua parcela de responsabilidade e, por conseqüência, diminuindo o quantum da pena aplicada ao autor do delito.

Tentando pensar de modo mais prático, e objetivando comprovar a premissa acima exposta, podemos nos perguntar: será que o indivíduo que cresce e vive em um ambiente social equilibrado, com moradia digna, alimentação, acesso à educação e à serviços de saúde adequados, com trabalho lícito e com remuneração razoável, ainda que baixa, tem as mesmas possibilidades de conduta (e aqui voltamos ao livre-arbítrio e ao determinismo) daquele indivíduo que vive na miséria, sem teto ou com moradia precária, presenciando atos de violência rotineiramente, sem comida e sem escolaridade?

Será que podemos esperar, ou melhor, será que podemos exigir daquele que sobrevive em situação de grave risco social a mesma conduta, a mesma visão da realidade, a mesma concepção de certo e errado daquele que vive em um ambiente social equilibrado? Indo mais além: a capacidade de determinação de pessoas em situações tão opostas é a mesma? O livre-arbítrio de ambos é da mesma amplitude? Cremos que não. A liberdade de ação e de vontade, em algumas hipóteses, está relacionada com a realidade social em que se vive.

Destarte, percebe-se que, para se melhor compreender determinada situação em que se vive e, por sua vez, ter discernimento suficiente para fazer a melhor escolha, os indivíduos dependem, em regra, de um mínimo de estrutura psicossocial que, infelizmente, muitos não possuem. E não possuem, em grande parte, por omissão e responsabilidade do Estado, que não prestou como deveria prestar os serviços públicos essenciais que esse mesmo indivíduo tinha direito (direitos assegurados pela Constituição, repita-se). É exatamente este o fundamento da teoria da co-culpabilidade. Assim sendo, o Estado omisso em seus deveres constitucionais causadores da falta de oportunidades e da exclusão do acesso desse indivíduo aos serviços públicos essenciais, termina por provocar a diminuição do âmbito de sua autodeterminação, e deve arcar pela sua negligência no momento da formação do juízo de reprovação. Mais especificamente, a forma com que tal co-responsabilidade deve se dar é através da redução da sanção penal a ser imposta, nos termos do artigo 66 do Código Penal brasileiro.

Por oportuno, trago à colação a teoria das circunstâncias concomitantes de Reinhar Frank, citado por Damásio Evangelista de Jesus, na qual o aludido jurista adverte que, a culpa em sentido amplo é algo mais que uma relação entre o sujeito e o resultado: a culpabilidade requer a normalidade das circunstâncias em relação às quais o sujeito age; em face de um fato criminoso devemos observar as circunstâncias que o acompanham, que então denominou de "concomitantes". Pare ele (Frank) as circunstâncias que concorrem no cometimento de um fato têm grande importância, posto que não só podem atenuar a pena, como também excluir a culpabilidade, apresentando dois exemplos: (1) um viajante apropria-se de dinheiro sob sua custódia a fim de levar uma vida de luxo; (2) um carteiro mal remunerado, angustiado pelos problemas econômicos, apropria-se de dinheiro da correspondência para com ele adquirir alimentos para sua família. Nos dois casos, é a mesma a relação psicológica entre os sujeitos e o resultado, contudo, afirma, não existe a mesma culpabilidade, sendo a conduta do primeiro (o viajante) mais reprovável socialmente, logo, mais culpável.

Utilizando os exemplos de Carla Rodrigues Araújo de Castro, vejamos: será que quando Winona Ryder (atriz americana) furtou cerca de 20 mil dólares em roupas de uma loja de departamentos em Bervely Hills, ou quando um jovem de classe média furtou o aparelho de CD player de um carro na garagem de seu prédio, agiram com o mesmo animus daquele desempregado que assaltou os passageiros de um ônibus do subúrbio ou do jovem morador de rua que furtou o celular e a bolsa de uma senhora? É evidente que não. Nesse sentido, tenho que a co-culpabilidade é a forma de se cobrar do Estado o seu insucesso no atendimento do bem estar social pelo qual se comprometeu na Carta de 1988.

Zaffaroni e Pierangeli asseveram que: "todo sujeito age numa circunstância dada e com um ânimo de autodeterminação também dado. Em sua própria personalidade há uma contribuição para esse âmbito de autodeterminação posto que a sociedade – por melhor organizada que seja – nunca tem a possibilidade de brindar a todos os homens com as mesmas oportunidades. Em conseqüência, há sujeitos que tem um menos âmbito de autodeterminação, condicionado desta maneira por causas sociais. Não será possível atribuir estas causas sociais ao sujeito e sobrecarregá-lo com elas no momento da reprovação de culpabilidade. Costuma-se dizer que há, aqui, uma ‘co-culpabilidade’, com a qual a própria sociedade deve arcar".

Com maestria, Antônio Evaristo de Moraes Filho (in "Rumos Atuais do Direito Penal – Descriminalização, Despenalização e Novos Tipos"), enfatiza que "num reconhecimento explícito dos estreitos vínculos entre certa espécie de criminalidade e as mazelas da própria estrutura social, a denominada co-culpabilidade vem se tornando um dos temas mais atuais em matéria de individualização da pena, de modo que muitos penalistas entendem que se deva correlacionar a responsabilidade do acusado a uma responsabilidade geral do estado que lhe vai impor a pena".

Prossegue o ilustre jurista, agora citando doutrinadores estrangeiros, in verbis: "Assim, quanto menor o espaço social - vale dizer, oportunidades no campo da educação, saúde, trabalho, etc. - que tenha sido concedido ao infrator da lei penal, menos intensa será sua culpabilidade, porque, no dizer de Zaffaroni, "la carga de reproche que deve restarsele a quien padece de una carencia social, debe cargala la sociedad que motiva esa carencia y no lo carenciado que no puede proveer a su superación" ("Sistemas Penales y Derechos Humanos en America Latina", Informe Final, 1986, p. 59). Neste sentido o mestre colombiano Perez Pinzón arrola entre as diretivas relacionadas com a aplicação da lei penal o "principio de exigibilidad social", pelo que deve o juiz ter em conta, ao individualizar a pena, "los criterios de valoracion del espacio de alternativas comportamentales disponibles para el hombre protagonista de la situacion problematica" ("Pensamiento Penal Moderno", cit. p.147). Sobre a matéria, as formulações pioneiras devem-se a Alessandro Baratta, para quem a responsabilidade penal há de observar diversos limites, dentre eles os ditados pelo "princípio de la exigibilidad social del comportamiento alternativo", por força do qual impõe-se a fixação de "critérios para la evaluación del espacio de alternativas de conducta a disposición del sujeto" (apud Raul Cervini, "Los Procesos", cit., p. 84)".

Juarez Cirino dos Santos lucidamente reforça a tese afirmando: "hoje, como valoração compensatória da responsabilidade de indivíduos inferiorizados por condições sociais adversas, é admissível a tese da co-culpabilidade da sociedade organizada, responsável pelas injustiças das condições sociais desfavoráveis da população marginalizada, determinantes de anormal motivação da vontade nas decisões da vida. Em sociedades pluralistas, as alternativas de comportamento individual seriam diretamente dependentes do status social de cada indivíduo, com distribuição desigual das cotas pessoais de liberdade e determinação conforme a respectiva posição de classe na escala social".

Vale deixar registrado que alguns ordenamentos jurídicos já adotam expressamente a teoria da co-culpabilidade, tais como o Código Penal Peruano de 1991, em seu artigo 45, inciso I; bem como o Código Penal Argentino, que em seu artigo 41, 2, manda ter em conta, para efeito da fixação da pena, "la miseria o la dificultad de ganarse el sustento proprio necesario". Contudo, em terras brasileiras são ainda bem raras as manifestações dos tribunais sobre a questão, a exceção de alguns juízes do Rio Grande do Sul que possuem decisões que flertam com o tema, ainda que de forma tímida.

Analisando tudo o que até aqui foi dito sob o prisma do princípio constitucional do devido processo legal e do princípio da individualização da pena, na perspectiva garantista do direito penal e processual penal, segundo a qual o processo deve assegurar a efetividade dos direitos fundamentais insculpidos na Carta de 1988, creio que não é demais pensar na necessidade de apreciação pelo julgador, fundamentadamente e na sentença de condenação, da teoria da co-culpabilidade do Estado quando devidamente argüida pelo advogado de defesa, como atenuante genérica da pena (cf. artigo 387, incisos I e II, do Código de Processo Penal). No ponto, conforme destaca Eugênio Pacelli de Oliveira, o Código de Processo Penal, que é da década de 40 do século passado, necessita sempre de uma leitura que passe pelo crivo da Constituição de 1988, principalmente quando em jogo direitos e garantias fundamentais.

Em conclusão, podemos dizer que uma vez demonstrada no processo circunstâncias suficientes para convencer o julgador que aquele réu, e tendo em vista as circunstâncias judiciais do artigo 59 do Código Penal, sofreu constante e relevante exclusão, pelo Estado e pela sociedade, dos serviços públicos essenciais garantidos constitucionalmente a todos as pessoas, e não obstante ser culpável sua conduta típica e ilícita, deve ter a sua pena atenuada com base na circunstância atenuante genérica do art. 66 do Código Penal, aplicando-se a teoria da co-culpabilidade (ou co-responsabilidade) do Estado e da sociedade, que, sem dúvida, ainda que indiretamente, também contribuíram para sua marginalização e o colocaram em situação de risco social, diminuindo sensivelmente a sua capacidade de autodeterminação e de livre escolha.


Referência Bibliográfica:

BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal, Parte Geral, volume I, editora Saraiva, 2000.

CASTRO, Carla Rodrigues Araújo de. Co-culpabilidade. In Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, n.º 21, jan./jun. 2005.

FILHO, Antônio Evaristo de Moraes. Rumos Atuais do Direito Penal – Descriminalização, Despenalização e Novos Tipos. Disponível em http://www2.uerj.br/~direito/publicacoes/publicacoes/evaristo_moraes/em_7.html, acessado em 23 de outubro de 2006.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal, Parte Geral, volume I, editora Impetus, Rio de Janeiro, 2005.

JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal, Parte Geral, volume I, editora Saraiva, São Paulo, 1999.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, editora Del Rey, Belo Horizonte, 2006.

SANTOS, Juarez Cirino dos. A Moderna Teoria do Fato Punível, Freitas Bastos editores, Rio de Janeiro, 2000.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, Editora Malheiros, São Paulo, 2000.

ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro, Parte Geral, editora RT, São Paulo, 1999.

Sobre o autor
Luís Cláudio Senna Consentino

advogado no Rio de Janeiro (RJ)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CONSENTINO, Luís Cláudio Senna. A teoria da co-culpabilidade na perspectiva do Estado Democrático de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1242, 25 nov. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9206. Acesso em: 23 dez. 2024.

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