O paradigma liberal esta e muito ligado à noção de individualidade moderna, e transpassa a noção metafísica-religiosa do Direito Natural, que neste paradigma têm a racionalidade como fonte do estatuir do Direito, sendo estes principalmente a Liberdade a Igualdade e a Propriedade.
Importante salientar também que o terreno do privado era visto como onde se materializavam as liberdades individuais e o âmbito público era tido como um mal necessário, que através da promulgação de um número ínfimo de leis agia para que garantisse as liberdades individuais. Neste paradigma a Sociedade pode ser classificada de dois modos, sendo a Sociedade Civil aquela que conta com a participação de todos, ao passo que na sociedade política era necessária a participação nas elites através de posses e ou faculdades culturais para que se pudesse fazer presente e influente, como prova disso estão leis eleitorais que estabeleciam restrições censitárias tanto para votar, quanto para concorrer aos cargos públicos.
José Bonifácio possuía uma visão típica do liberalismo oitocentista, ele preside a Assembleia Constituinte de 1823, defendendo a Abolição, reformas para os escravos, promulgação de leis que disciplinassem o tráfico e sua gradual extinção, uma vez que perante sua concepção de Direito Natural seria um crime, um atentado. Não sendo ela um direito à propriedade, mas a um Direito à força.
Joaquim Nabuco foi um grande abolicionista, o maior de sua geração. Publicou obra sobre o abolicionismo com título homônimo, contemplando uma contextualização sociopolítica da Escravidão, sendo ela o fator dominante dos problemas sociopolíticos do país, que corroía as potencialidades de desenvolvimento econômico e sociais do Brasil. Possui uma perspectiva de um projeto de desenvolvimento da nação que extinguiria com esta prática. Todavia menciona fatores como a dignidade e leis morais para justificar a necessidade da Abolição. Acreditava que a batalha pela liberdade dos escravos seria travada na Sociedade Política, não se estendendo até a Sociedade Civil. Possuía uma análise negacionista no referente à existência de racismo e intolerância no Brasil.
Rui Barbosa foi um grande jurista e advogado brasileiro, sua visão de Constituição era voltada ao ideário da Constituição Estadunidense, a Escravidão seria tudo menos Direito, seria a própria expressão do arbítrio, opondo o Direito de Personalidade do escravo e o da Propriedade do senhor. Nem sequer a legalidade poderia validar esta prática. Disserta que a Lei Eusébio de Queiroz seria uma lei “para inglês ver”, desrespeitada por todos. A escravidão dificultaria desenvolvimento do país, que proveria através da industrialização e do trabalho assalariado. Critica também a Lei do Ventre Livre que dificultaria e não possibilitaria a inclusão social do escravo na sociedade. Capítulo curioso em sua estão como ministro da fazenda fora a queima de artigos da Escravidão para impedir indenização de ex proprietários, o que em seu juízo seria totalmente descabida e escandalosa.
Das contradições liberais: Alfredo Bosi em seu livro A Dialética da Colonização, mais especificamente no capítulo a A Escravidão entre dois liberalismos, argumenta que em 1º momento o ideário liberal não possuía nenhuma contraposição a esta prática, já em um 2º momento, com o advento de um “novo liberalismo” ainda que formalmente legal, seria ilegítima. A Lei Feijó proibiu a importação de escravos em nosso país, todavia ficou marcado que esta era descumprida de modo solene, de modo que entre 1830-1850, mais de 700.000 africanos atravessaram o atlântico para serem aqui escravizados. Este descumprimento era devido a uma aliança estabelecida entre as oligarquias rurais do Brasil, exportadores desses bens, traficantes e políticos. Deste modo desenvolveu-se uma forma inovadora de liberalismo, onde o livre mercado se abstinha de promover o trabalho livre. Toda a economia agrícola e a estrutura de poder político do país se pautava na exploração da mão de obra escrava, It was freedom to destroy freedom. Era deste modo que a invocação do ideário liberal não apenas convivia com a escravidão mas o justificava e consolidava a prerrogativa dos poderes do cidadão proprietário, ainda que para isto fosse necessário afirmar que ainda as doutrinas liberais clássicas deveriam ser adaptadas às circunstancias e peculiaridades de cada país (como modo de justificar a escravidão).
Em um segundo momento, por volta da década de 1860, surge um novo liberalismo, este contrário à convivência com a Escravidão, simplesmente referendando o interesse das elites. Este Liberalismo está relacionado ao processo de urbanização crescente, que com aumento do serviço assalariado proporcionou uma nova expectativa de desenvolvimento ao país. Deste modo, os políticos liberais se colocaram contrários à prática Escravidão, requerendo seu fim imediato. Por outro lado, os conservadores se opunham ao fim da prática da Escravidão. Um exemplo desta mudança de posicionamento é o político Nabuco de Araújo que deixa de ser um Ministro da Justiça que referendava a Escravidão e pouco mais de uma década depois militava por sua ilegitimidade.
Deste modo, a Abolição ganhou força, com ativismo para reformas que propiciassem a inclusão dos futuros ex-escravos na sociedade e uma contraparte retrógrada que buscava procrastinar o fim deste instituto. A Escravidão foi extinta de nosso país, todavia a inclusão daqueles que outrora foram explorados não fora colocada em prática.
Julgo a dissertação de Alfredo Bosi riquíssima e muito explicativa no que tange ao papel das elites políticas neste contexto de busca pela abolição e abolição da escravidão no país, explicita a mudança de ideário que atingiu aos pensadores liberais. Acredito que é de grande valia para a compreensão dos interesses políticos e econômicos que influenciaram neste processo, ainda que os escravos recebam pouco enfoque na exposição trazida pelo texto.
Marcelo Neves por sua vez, questiona a tese do autor Roberto Schwarz, que acreditava que a presença de instituições liberais na virada do século seriam ideias fora do lugar, Neves contrapõe está ideia indicando que a sociedade moderna, na realidade, emerge como uma sociedade mundial, não explicada somente por suas particularidades, onde o horizonte de comunicação é prioritariamente mundial. Vê também o Ideário liberal como artefato semântico entrecortado pelas diversas particularidades enxergadas em diversos contextos dentro da sociedade mundial, de modo que a sua recepção em determinado contexto será influenciada por ideias antiliberais de diversos juristas, no caso de uma lei que traga o conteúdo liberal, ou estruturas sociais que sejam incompatíveis com o liberalismo. A análise do professor Marcelo Neves avalia tanto a codificação civil, quanto a Constituição de 1891 (de cunho liberal). Para ele, anteprojeto de código civil de Teixeira de Freitas fez-se incompatível diante dos interesses escravistas, uma vez que contrário a separação do Direito Civil e Comercial em virtude de não conceber dualidade no modo de produção. A Consolidação das Leis Civis manteve as leis vigentes, somente em 1916 que ajustou ao individualismo liberal.
Desta maneira, o Professor Marcelo Neves aponta uma dificuldade de recepção do ideário liberal no país, mas não aprovando que estas seriam ideias fora do lugar. Apesar da baixa força normativa dessas prescrições liberais, possuíam carga político-simbólica, apesar da ilusão de que através da análise dessas leis o país se tornaria liberal ainda com toda a desigualdade, serviam para crítica das instituições antiliberais.
Não é oposição entre legal e oficial, não seriam ideias deslocadas, mas ideias em outro lugar, que assumiram diversas funções nos lugares que foram recebidas e tratadas.
Alfredo Bosi concorda com esta tese de Marcelo Neves, ainda que sem a matriz luhmaniana (teoria dos sistemas), realizando quase que uma referência implícita, demonstrando que não seria verossímil esta posição de ideias fora do lugar. Neves conclui apontando que paradoxalmente seriam ideias em outro lugar (na sociedade brasileira) e no mesmo lugar (inseridas na sociedade mundial).
Acredito que a análise do professor Marcelo Neves é fenomenal, resolve com uma visão imprecisa e até errática de Roberto Schwarz e não somente corrige, mas acrescenta com grande valia e riqueza, ressignificando a afirmativa de que as ideais liberais estariam fora do lugar. O acréscimo da teoria dos sistemas luhmaniana é indubitavelmente o que, ao meu ver, esclarece e ilumina a tese de Neves.
Susan Buck-Morss em sua obra realiza abordagem inovadora, estabelecendo vínculos entre a revolução no Haiti e a dialética hegeliana, desta maneira buscando romper com a segmentação acadêmica através de uma abordagem multidisciplinar e interdisciplinar. A autora fora instigada a demonstrar as contradições envolvendo as ideias defendidas pelos pensadores liberais (como Rousseau, John Locke, entre outros) e a prática da Escravidão, questionando se seria coerente a posição contrária às explorações aviltantes, a qual estruturava o pensamento liberal, mas pouco se atinha ao problema da escravidão de negros. A própria vida destes pensadores expunha a contradição inerente a eles, uma vez que se beneficiavam da mão de obra escrava em certo modo.
A Revolução Haitiana ficara marcada como o 1º levante negro contrário à prática da Escravidão, abolindo a prática desta e afastando o uso de um Código Negro que regulava as relações para com os escravos. Posteriormente alcançando a sua independência diante do Império francês. Susan relê a Dialética do Senhor e do Escravo, ao contrário da posição marxista que enxergava como uma luta de classes, ou dos hegelianos ortodoxos que criam em uma pura e simples abstração do autor, ou que fosse algo retirado dos gregos clássicos, apontando que seria inconcebível que esta obra não tenha sido retirada da experiencia prática ocorrida no Haiti.
Hegel disserta a dinâmica de desenvolvimento do tempo histórico como um embate do senhor e do escravo, sendo um demasiadamente possuidor de bens e o outro carente destes mesmos bens, de modo que seria a relação entre estes que molda aos conceitos de liberdade no tempo histórico. Apontando que a liberdade do senhor estava amplamente dependente da Escravidão, a partir do momento em que os escravos se insubordinam, o elo seria rompido e a dialética avançaria, moldando a maneira como o espírito da liberdade se moveria. Depois disso, a autora aponta que Hegel adotou postura mais conservadora, caracterizando como “tolo”, de modo que defendeu uma extinção gradual da prática da escravidão.
Vejo a análise de Susan como extremamente singular e autêntica, correndo na contramão do que a hegemonia acadêmica estabelece. A correlação entre dialética hegeliana e os acontecimentos em Haiti é precisa e acurada, de modo que em poucas páginas a autora consegue tecer e correlacionar fatos que outrora não estavam vinculados por ninguém, e depois que correlacionados, dificilmente podem ser separados. Fantástico o texto!
Marcos Queiroz, por sua vez, aborda a questão da Assembleia constituinte de 1823 liderada por Joaquim Nabuco, em que diversos debates englobaram o tema escravidão, havia grande temor à época com os ventos libertários que sopravam do Haiti - em virtude da Revolução ocasionada cerca de 20 anos ante - a Constituição outorgada em 1824, que excluía os negros escravos de seu corpo dogmático. O autor traz como grande tese de seu texto a maneira que o constitucionalismo brasileiro surge a partir do medo da Escravidão e com a explicita intencionalidade de silenciar as reivindicações dos negros. Foram os homens brancos latifundiários da elite seriam estes que estavam por de trás dessa Assembleia Constituinte. As leis que regulamentavam a escravidão e a própria abolição fora conquistada nesta dinâmica, sem atender a um ideal de libertação e inclusão dos negros, mas movidos pelos interesses de uma elite branca escravocrata que na gênese do constitucionalismo brasileiro se deram através do silenciamento das requisições dos negros. Marcos também aponta que apesar de defender a integração dos negros da sociedade, este defendia nesta constituinte um projeto de nação integrada e não dissonante na sociedade brasileira. Deste modo excludente, racista e intolerante no que tange a vozes dissonantes. Sendo o Haiti um exemplo prático dos frutos obtidos quando não foram inclusos na sociedade.
O texto do professor Marcos, debruçado em parte na análise de Susan, explicita e revela detalhes que pouco vi em meus estudos, no que tange aos bastidores da Constituinte de 1823. Com a revelação das intenções e das inquietudes que assolavam as classes influentes e estruturantes da Assembleia Constituinte, podemos reler os acontecimentos ocorridos no Brasil ao longo do século XIX, desde a Constituição de 1824 ao que findaria formalmente com a Abolição, mas traz consequências até os dias atuais, principalmente em questões de desigualdade racial, marginalização e exclusão predominante dos negros e silenciamento das requisições e clamores dos descendentes dos cativos e ex-cativos.