Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br

A condução coercitiva para interrogatório e o direito de silêncio de indiciado e testemunha[1].

Exibindo página 2 de 2
Agenda 24/07/2021 às 19:08

[1] Cumpre ressaltar, em tempo, que Paulo Rangel define testemunha como sendo o indivíduo chamado a depor, demonstrando que sua experiência pessoal o colocou em contato com a existência, natureza e as características de um fato, pois face em estar em frente ao objeto (testis), guardou na mente, sua imagem.

Já para Tourinho Filho nos ensinou que a prova testemunhal, particularmente no Processo Penal, é de valor extraordinário, pois dificilmente, e só em excepcionais hipóteses provam-se as infrações criminosas com outros elementos de prova e, quanto ao valor, como qualquer outro meio de prova, a prova testemunhal é relativa.

O artigo 202 do CPP expõe que toda pessoa poderá ser testemunha, salvo exceções constantes no CPP.

A palavra acusado no mundo jurídico serve para indicar a pessoa contra a qual há um processo. Se contra a pessoa há apenas um inquérito policial, dizemos que a pessoa é indiciada. Na dúvida, diga apenas suspeito, que é um termo genérico. Confundir alguém acusado com alguém indiciado é a mesma coisa de confundir alguém pré-candidato com alguém candidato durante uma eleição: a maioria dos pré-candidatos não vira candidato (e muito menos se elege).

Indiciado é o termo utilizado para o indivíduo que foi objeto de investigação em um inquérito policial e, ao final da investigação, o Delegado entende ter sido o autor do crime apurado. Quando se fala em denunciado já se ultrapassou a fase da investigação policial e o Ministério Público ofereceu denúncia por entender haver prova da materialidade e indícios suficientes de autoria.

O acusado (réu) é aquele que efetivamente responde a uma ação penal. Isso ocorre após o recebimento da denúncia oferecida pelo Ministério Público e dura até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Após o trânsito em julgado da sentença condenatória, a situação muda para condenado, visto não haver mais dúvidas quanto a prática do crime e a autoria delitiva, restando apenas o cumprimento da sanção imposta.

[2] O interrogatório é o momento em que o acusado é ouvido pelo Juiz no decorrer do processo. É assim e sempre o foi, porém foi valorizado e realizado de diversas formas no decorrer de sua história, em dois sistemas, o inquisitivo e o acusatório. No Sistema Inquisitivo, no qual havia uma concentração de todos os atos do processo (apurar, acusar, defender e julgar) nas mãos de um único órgão, o interrogatório era tratado como mais um meio de prova. A principal diferença é que no sistema inquisitivo o réu não era parte, mas sim um objeto do processo, e no sistema acusatório este passa a ser parte do processo. Vale ressaltar, que no sistema inquisitivo o interrogatório só poderia ser encarado como um meio de prova, pois o principal objetivo no Estado, nesta época, era punir o acusado, ou seja, se valer de seu jus puniendi.

[3] O sistema de direito brasileiro não autoriza a inversão de ônus da prova em prejuízo do agente acusado no processo penal, permanecendo válida a regra basilar que compete à acusação, pública ou privada, provar, observado o devido processo legal, a prática do fato punível que se lhe imputa. A doutrina majoritária entende que: "Cabe provar a quem tem interesse em afirmar. A quem apresenta uma pretensão cumpre provar os fatos constitutivos; a quem fornece a exceção cumpre provar os fatos extintivos ou as condições impeditivas ou modificativas. A prova da alegação (onus probandi) incumbe a quem a fizer (CPP, artigo 156, caput). Exemplo: caberá ao Ministério Público provar a existência do fato criminoso, da sua realização pelo acusado e também a prova dos elementos subjetivos do crime (dolo ou culpa); em contrapartida, cabe ao acusado provar as causas excludentes da antijuridicidade, da culpabilidade e da punibilidade, bem como circunstâncias atenuantes da pena ou concessão de benefícios legais.

[4] A delação premiada (mais precisamente a colaboração premiada, porque nem sempre envolve delatar alguém) é um mecanismo judicial pelo qual um acusado colabora com as investigações, revelando detalhes do crime, como os nomes de coparticipantes, localização da vítima (se houver) ou detalhes que ajudam a recuperar os bens que foram perdidos por conta do crime. Em troca, o acusado pode receber alguns benefícios, como: redução de um terço a dois terços do tempo da pena; cumprimento da pena em regime semiaberto, no lugar do regime fechado; a depender do caso, extinção da pena; e até mesmo perdão judicial (que nunca foi concedido no Brasil até hoje).

[5] Habeas corpus preventivo: quando ainda existe apenas uma ameaça ao direito. Nesse caso, qualquer pessoa física que se achar ameaçada de sofrer lesão a seu direito de locomoção tem direito de fazer um pedido de habeas corpus. Essa pessoa é chamada de “paciente” no processo. Tratando-se de habeas corpus preventivo, se concedido, será expedido um salvo-conduto, assinado pela autoridade competente. Salvo-conduto, do latim salvus (salvo) conductus (conduzido), dá a precisa ideia de uma pessoa conduzida a salvo. Daí a expressão salvo-conduto para exprimir o documento emitido pela autoridade que conheceu do habeas corpus preventivo, visando a conceder livre trânsito ao seu portador, de molde a impedir-lhe a prisão ou detenção pelo mesmo motivo que ensejou o pedido de habeas corpus.

[6] O postulado da reserva constitucional de jurisdição importa em submeter, à esfera única de decisão dos magistrados, a prática de determinados atos cuja realização, por efeito de explícita determinação constante do próprio texto da Carta Política, somente pode emanar do juiz, e não de terceiros, inclusive daqueles a quem se haja eventualmente atribuído o exercício de "poderes de investigação próprios das autoridades judiciais".

A cláusula constitucional da reserva de jurisdição - que incide sobre determinadas matérias, como a busca domiciliar (CF, art. 5º, XI), a interceptação telefônica (CF, art. 5º, XII) e a decretação da prisão de qualquer pessoa, ressalvada a hipótese de flagrância (CF, art. 5º, LXI) - traduz a noção de que, nesses temas específicos, assiste ao Poder Judiciário, não apenas o direito de proferir a última palavra, mas, sobretudo, a prerrogativa de dizer, desde logo, a primeira palavra, excluindo-se, desse modo, por força e autoridade do que dispõe a própria Constituição, a possibilidade do exercício de iguais atribuições, por parte de quaisquer outros órgãos ou autoridades do Estado.

[7] Não se pode confundir recolhimento domiciliar com prisão domiciliar, aquela é somente cabível como substitutivo da prisão preventiva e sob determinadas condições e circunstâncias pessoais do agente, segundo o art. 318, CPP. Pacelli de Oliveira14 entende que por se tratar de medida limitativa de locomoção, ainda que somente em período noturno e nas folgas de trabalho, o tempo de cumprimento deve ser levado à conta da detração da pena. Antes da nova lei, uma medida cautelar inominada, que os

juízes utilizavam para suspender o exercício de função pública ou de atividade de natureza econômicas e financeira com a finalidade de impedir novos delitos. Atualmente, faz parte do inciso VI do art. 319 do Código de Processo Penal.  A decretação de tais medidas atípicas deve se dar em contextos excepcionais, haja vista que a restrição de direitos só deve ser admitida em casos de extrema necessidade e na medida correta, na forma do princípio da não-culpabilidade e, não se poderá conceder a título de cautelar inominada mais do que se alcançaria no processo principal. Não se pode utilizar o poder geral de cautela em relação às modalidades de prisão provisória, uma vez que o princípio da reserva legal implica a necessidade de previsão legal da prisão e para ser preso há de se apontar a existência de um crime, crime esse insculpido na lei, conforme se depreende do art. 5º, incisos XXXIX e LXI da Constituição Federal combinado com art. 283 do Código de Processo Penal e art. 1º do Código Penal.

[8] Para a interpretação, ensina que todas as frações do sistema - cada norma isolada, portanto - guardam conexão entre si. Assim, em suas bem escolhidas palavras, "interpretar o Direito é, sempre e sempre, realizar a sistematização daquilo que aparece como fragmentário". O princípio da legalidade, por exemplo, só pode ser aplicado à luz de outros princípios também essenciais ao sistema, como o da moralidade, da eficiência, da legitimidade. E, ainda, na esteira das lições de Gadamer, um dos muitos nomes retomados, a interpretação do texto jurídico deve ser condicionada pela aplicação, e de maneira que ocorra uma "superação da vontade do legislador por aquela que se poderia denominar vontade axiológica do sistema, reconhecida somente após a interação dialética entre ordenamento e intérprete". Para o caminho, pois, defende que o princípio hierárquico deve preponderar sobre o critério da especialidade, sempre, escalonando-se princípios, regras e valores. E que todo intérprete de norma jurídica é, sem exclusão, um intérprete da Constituição.

[9] Entre as medidas cautelares pessoais não prisionais, os juízes criminais podem determinar a retenção do passaporte do acusado — ou de outro documento de viagem —, como forma de assegurar a proibição de saída do País. Tal medida, prevista expressamente no art. 320 do CPP desde 2011, serve para restringir os movimentos migratórios de pessoas sujeitas à jurisdição criminal brasileira, sejam elas nacionais ou estrangeiras, quando há fundadas razões para crer em sua fuga: Art. 320.  A proibição de ausentar-se do País será comunicada pelo juiz às autoridades encarregadas de fiscalizar as saídas do território nacional, intimando-se o indiciado ou acusado para entregar o passaporte, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas. A jurisprudência dos Tribunais Superiores é pacífica no sentido de que a imposição de condições para a concessão do benefício da liberdade provisória ou para a revogação de prisão preventiva não ofende os princípios da presunção de inocência e da reserva legal. Entretanto, deve existir razoabilidade nas restrições ao direito de ir e vir do réu em processo penal, com a devida fundamentação que justifique a necessidade da cautela, à luz do disposto no art. 93, inciso IX, da Constituição Federal brasileira de 1988.  

[10] Trata-se de uma permissão concedida ao Estado-juiz para que possa conceder, além das medidas cautelares típicas (tais como o arresto ou sequestro), medidas cautelares atípicas, ou seja, medidas não descritas pela norma jurídica. O poder geral de cautela do juiz é nada mais que a própria aplicação dos princípios fundamentais. Nesse sentido, Câmara (2008): Admitir a existência de casos para os quais não houvesse nenhuma medida cautelar capaz de evitar um dano irreparável, ou de difícil reparação, para a efetividade do processo seria admitir a existência de casos para os quais não existiria nenhum meio de prestação da tutela jurisdicional adequada, o que contrariaria a garantia constitucional (a qual, relembre-se, está posta entre as garantias fundamentais do nosso sistema político e jurídico).

[11] O princípio da Presunção de Inocência é no Brasil um dos princípios basilares do Direito, responsável por tutelar a liberdade dos indivíduos, sendo previsto pelo art. 5º, LVII da Constituição de 1988, que enuncia: “ninguém será considerado culpado até trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Já no século XVIII, Cesare Beccaria postulava que a liberdade de um homem só lhe podia ser retirada após a comprovação de violações pactuadas. Com o florescer do respeito à liberdade, a dignidade da pessoa humana e a valorização dos direitos individuais e sociais, a presunção de inocência passou a ser acolhida em praticamente todo o mundo civilizado, seja nas convenções internacionais seja nos ordenamentos dos países. Cada um ao seu modo, e na forma de seu sistema jurídico, tem previsto que o estado natural das pessoas é o da liberdade e que uma pena de constrição dessa liberdade somente seria imposta após observados todos os direitos e garantias constitucionais, principalmente a observância da presunção de inocência. O que se diferencia mundo a fora é o momento de alcance desse princípio. Na maioria dos países, a culpabilidade é reconhecida em dois graus de jurisdição. Porém, este não foi o entendimento adotado pelo nosso constituinte quando da CRFB/1988. A presunção de inocência, em nosso ordenamento, ficou atrelada a ocorrência do trânsito em julgado da ação, ou seja, todo cidadão será presumido inocente, não cabendo a execução da pena até que todos os recursos possíveis para a situação sejam julgados.

[12] A lógica do razoável, mediante a ponderação de princípios e valores, como padrão não só para aferição da constitucionalidade das leis, mas também para a aceitação da decisão judicial, é conceito presente na atualidade do debate jurídico. Por meio da lógica do razoável, e da argumentação, mostrando exaustivamente as virtudes da solução adotada, busca-se a decisão mais adequada, uma decisão justificável, ainda que não absolutamente demonstrável como a única possível. É a lógica do preferível. Se não existem pessoas como Hércules, capazes de encontrar a única solução correta, os aplicadores do direito devem ao menos tentar achar a melhor solução entre as várias que se apresentam e têm a obrigação de expor, da maneira mais completa possível, as razões que os levaram a tal preferência por uma escolha em detrimento de outra.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

[13] Sob outro enfoque, a condução coercitiva há muito vem ganhando espaço no meio jurídico, fora das hipóteses acima apontadas, ou seja, sem prévia intimação, como eficiente mecanismo de persecução penal. Na verdade, trata-se de uma excelente ferramenta para as investigações, principalmente para as mais vultosas, referentes a associações e organizações criminosas, em relação às quais a obtenção de provas geralmente é mais trabalhosa, devido às suas ramificações e o modo de agir dos criminosos, os quais, invariavelmente, contam com a colaboração de vários agentes, estrutura, organização e logística previamente pensadas para dificultar, senão anular as chances de êxito de qualquer trabalho investigativo. Nesse sentido, aliás, há julgados tanto do Supremo Tribunal Federal (HC 107644/SP) quanto do TJGO (Agravo Regimental em Medida Cautelar nº 161912-29.2013.8.09.0000, Rel. Des. João Waldeck Felix de Sousa, Corte Especial, julgado em 14/01/2015, DJ 1725 de 10/02/2015), admitindo a condução coercitiva.

[14] Já em 1960, Serrano Alves escrevia uma monografia com o título “O Direito de Calar” (Rio de Janeiro: Editora Freitas Bastos, 1960), cuja dedicatória era “aos que ainda insistem na violação de uma das mais belas conquistas do homem: o direito de não se incriminar”. Na sua introdução, o autor afirma: “Este livro é uma calorosa mensagem de esperança dirigida aos mártires da truculência policial e do exagerado arbítrio judicial.”

[15] A acareação é um procedimento previsto tanto no Código de Processo Civil quanto no Código de Processo Penal, cuja finalidade é a apuração da verdade, por meio do confronto entre partes, testemunhas ou outros participantes de processo judicial, que prestaram informações prévias divergentes. Um possível indicativo da importância da acareação como meio de prova consiste na análise do direito comparado. Com efeito, o instituto está positivado nos Códigos de Processo Penal de Portugal (art. 146), da Itália (arts. 211 e 212), da Argentina (arts. 276 a 278), do Paraguai (arts. 95 e 233) e na Ley de Enjuiciamiento Criminal Espanhola (arts. 451 a 455), apenas para ficar em alguns poucos exemplos. No Brasil, o instituto vem positivado nas regras dos arts. 230 e 231, do CPP e nos arts. 365 a 367, do CPP Militar. No âmbito da persecução penal e da fase de realização da diligência, a regra do art. 230, do CPP, prevê a admissibilidade da acareação tanto no curso do processo como em sede de inquérito policial. Tem-se admitido, também, a realização de acareações em Comissões Parlamentares de Inquérito.

[16] Provas ilícitas são aquelas, cuja maneira de obtenção da prova infringe as normas de direito material e constitucional, portanto elas não são aceitas no processo. Provas das quais são obtidas violando alguns princípios constitucionais ou direitos materiais, são essas consideradas provas ilícitas. A concepção ampla de prova ilícita é o resultado das definições de vários autores processuais, em que, em cada conceito, é estabelecido seu próprio parâmetro sobre o que seria ilícito. Já a concepção restrita, limita o conceito de prova ilícita, em que é aquela obtida com violação de normas de direitos fundamentais. Vale citar Grinover, Fernandes e Gomes Filho (1997), os quais acrescentam que uma prova pode ser ao mesmo tempo ilícita e ilegítima, haja vista que se a prova é ilícita esta será também processualmente ilegítima e, por isso, não será empregada no processo. Entretanto, o inverso não seria correto, já que para a prova ser considera ilícita, ela tem que violar, necessariamente, uma norma de direito constitucional, relacionada à proteção de liberdades públicas, ou uma norma legal que implique em uma violação material.

[17] Aliás, a doutrina dos frutos da árvore envenenada deita origem na jurisprudência da Suprema Corte dos EUA (fruits of the poisonous tree) e deriva da imagem metafórica de uma árvore contaminada por veneno, a primeira prova ilicitamente obtida, quaisquer frutos colhidos de tal árvore, as provas decorrentes da primeira, estarão igualmente contaminados e devem ser rejeitados. No Brasil, existe muitos precedentes do STF acatando a mesma tese. Por exemplo: Habeas Corpus n. 73.351-SP, Tribunal Pleno, Relator o Ministro Ilmar Galvão, julgamento em 09.05.96, RTJ 168/543; Habeas Corpus n. 72.588-PB, Tribunal Pleno, Relator o Ministro Maurício Corrêa, julgamento em 12.06.96, RTJ 174/491; e Habeas Corpus n. 80.949-RJ, 1ª Turma, Relator o Ministro Sepúlveda Pertence, julgamento em 30.10.2001, RTJ 180/1001. Como afirmado na ementa do segundo dos três acórdãos referidos, “as provas obtidas por meios ilícitos contaminam as que são exclusivamente delas decorrentes; tornam-se inadmissíveis no processo e não podem ensejar a investigação criminal e, com muito mais razão, a denúncia, a instrução e o julgamento (...)”.

[18] Trata-se, na verdade, de uma contravenção penal, prevista no art. 58 do Decreto Lei nº 3688/41 (Lei das Contravenções Penais). A razão oficial para proibir o jogo do bicho e os jogos de azar em geral pode ser encontrada nos considerando de outro Decreto-Lei. O de 9.215/1946, que revogou a revogação do mencionado artigo 50, considerando, entre outras coisas, que “a repressão aos jogos de azar é um imperativo da consciência universal” e que “a tradição moral jurídica e religiosa do povo brasileiro e contrária à prática e à exploração e jogos de azar”. O jogo do bicho é proibido pela lei brasileira número 3.688 e considerado contravenção juntamente com jogos de azar, atividade de cassino e exploração não autorizada de loteria. Desde o anúncio da proibição do bicho em 1941, os bicheiros, controladores dos pontos de aposta, se organizaram e formaram uma cúpula que se relaciona por meio de propina e financiamento de projetos e campanhas com o governo, justiça e polícia. Essa relação, que cresceu e se tornou cada vez mais comum, é o que permitiu que o jogo do bicho chegasse até os dias de hoje em pleno funcionamento. Por conta disso, hoje o bicho é considerado não só contravenção, mas crime de formação de quadrilha e corrupção. Na década de 70, o jogo do bicho no Rio de Janeiro estava organizado praticamente como uma empresa em expansão. E, tendo arrecadado grandes quantias de dinheiro, investiram, entre outras coisas, na compra de escolas de samba e no controle do carnaval, por meio da liga das escolas de samba. Além de um negócio lucrativo, o carnaval é utilizado para "lavar" o dinheiro ilegal conseguido com o jogo por meio de notas superfaturadas.

[19] O atentado violento ao pudor foi revogado pela Lei 12.015/09, portanto, pode-se dizer que o atentado violento ao pudor sofreu abolitio criminis. Não é correto afirmar que houve abolição do crime, pois a referida lei reuniu no mesmo tipo legal as descrições típicas previstas nos crimes de estupro e atentado violento ao pudor. Doravante, a prática, sob violência ou grave ameaça, de atos libidinosos diversos da conjunção carnal contra homem ou mulher, é considerada estupro. No Direito Penal brasileiro, atentado violento ao pudor, conhecido informalmente pela sigla AVP foi um tipo penal que vigorou entre 1940, data de criação do Código Penal Brasileiro, e agosto de 2009, quando a Lei 12.015/2009 o revogou. Diferenciava-se do estupro por envolver ato sexual diverso da cópula (também denominada conjunção carnal ou sexo vaginal) ou ainda, quando a vítima do ato sexual forçado era do sexo masculino. Havia diversas formas de atentado violento ao pudor, que compreendiam a prática de atos diversos da conjunção carnal, por exemplo, tocar as partes íntimas de uma pessoa, após havê-la subjugada de alguma forma - pelo emprego de arma ou outra violência. Neste caso, a violência é real (mediante intimidação capaz de anular a resistência normal da vítima); situação diferente da violência presumida - aquela em que a vítima era menor de 14 anos, ou deficiente física ou mental - onde a violência é presunção legal em virtude da menor ou nenhuma capacidade de se defender.

[20] Em que medida pode-se exigir do réu que forneça um álibi, ao passo que, em princípio, presumido inocente, tem o mais estrito direito ao silêncio?” Justamente esse tipo de questionamento é que se pretende discutir no presente trabalho, inclusive com os outros exemplos que serão trazidos adiante. Aury Lopes Jr., diga-se, de maneira pontualíssima, leciona que o "direito de silêncio é apenas uma manifestação de uma garantia muito maior, esculpida no princípio nemo tenetur se detegere, segundo a qual o sujeito passivo não pode sofrer nenhum prejuízo jurídico por omitir-se de colaborar em uma atividade probatória da acusação ou por exercer seu direito de silêncio quando interrogado".

[21] Para decretação da prisão preventiva, necessário se faz a presença de três requisitos: fumaça do cometimento do crime (a materialidade e indício de autoria) somado o perigo na liberdade do agente (um dos fundamentos trazidos na parte final no artigo 312 CPP) somado o cabimento (hipóteses descritas no artigo 313). No primeiro requisito, temos o que chamamos de pressupostos, a fumaça do cometimento do crime, o fumus commissi delicti. Precisa ser demonstrado que o crime ocorreu e que possui indícios que seja, o agente, o autor do crime. Quando a decisão é decretada após o recebimento da denúncia, caso não esteja sendo solicitado o trancamento da ação penal, será muito difícil "quebrar" esse requisito. Em outro artigo trataremos do habeas corpus para trancar ação penal. No que diz respeito ao segundo requisito, qual seja, a fundamentação, deverá ser demonstrado que a liberdade do agente colocará em risco a efetividade do processo. Há um perigo na liberdade do agente, há o periculum libertatis. Para fundamentar, deverá o magistrado trazer elementos concretos na fundamentação, presente nos autos, que façam demonstrar que a liberdade do agente trará prejuízo para o tramitar processual. O terceiro e último requisito é o previsto no artigo 313 do CPP, que são as hipóteses de cabimento da prisão preventiva. Caso não esteja enquadrado em nenhuma das hipóteses ali presentes, não há que se falar em prisão preventiva, mesmo que os outros dois requisitos estejam presentes.

[22] Em seu artigo 342, o Código Penal (CP) brasileiro prevê o crime de falso testemunho ou falsa perícia, que se configura no ato de mentir ou deixar de falar a verdade nas seguintes situações: em juízo, processo administrativo, inquérito policial ou em juízo arbitral.  As condutas, contra a administração da Justiça, somente podem ser cometidas por testemunha, perito, tradutor, contador ou intérprete. Atores essenciais da atividade judiciária, essas pessoas prestam informações que podem fundamentar decisões em processos. A realização de qualquer atividade prevista no artigo 342 do CP configura a consumação do crime, mesmo que o ato não produza consequências. O crime prevê pena de reclusão, de 2 a 4 anos, e multa. A punição aumenta, de um sexto a um terço, no caso de o crime ter sido praticado mediante suborno ou com o fim de obter prova destinada a produzir efeito em processo penal, ou em processo civil em que for parte entidade da administração pública direta ou indireta. No caso de a pessoa se retratar ou declarar a verdade, o crime deixa de existir. A retratação, no entanto, deve ocorrer antes de a sentença ser prolatada. O Projeto de Lei 3778/20 amplia o espectro do crime de falso testemunho ou falsa perícia previsto no Código Penal. Entre outros pontos, o texto propõe que o tipo objetivo passe a prever o “não comparecimento à oitiva” ao lado das condutas de “fazer afirmação falsa, negar ou calar a verdade”.

Fonte: Agência Câmara de Notícias

[23] A origem do princípio nemo tenetur se detegere data do Ius Commune europeu e chega até sua final consolidação na common law inglesa através do privilege against self-incrimination e sua transferência para as colônias norte-americanas. O princípio nemo tenetur se detegere refere-se ao direito possuído por todo acusado de não cooperar com a persecução penal contra ele instaurada, abstendo-se de fornecer meios de prova que possam contribuir para a sua incriminação. Tal princípio é originário do Ius Commune europeu e encontra seu equivalente no Sistema Jurídico da Common Law, através do privilege against self-incrimination. Trata-se de uma conquista da defesa técnica, pois restou consagrado, tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos da América após o esforço incansável dos advogados, que repudiavam a prática arbitrária do juramento ex officio bem como a presunção de que o silêncio do acusado produzia prova de sua culpabilidade. Também é corolário do abandono do sistema inquisitório e adoção do modelo acusatório. Acima de tudo, o princípio faz parte da humanização do direito penal e do processo penal, antes centrado no indivíduo como objeto e meio de prova, o que permitia a prática da tortura e penas cruéis. A máxima latina nemo tenetur prodere se ipsum, conexa à nemo tenetur se detegere, não possui suas origens no direito romano, mas sim no Ius Commune europeu. O direito da Europa Medieval – Ius Commune – era um direito culto, formado por dois direitos: i) o direito civil, originário das compilações do Corpus Iuris Civile de Justiniano; ii) o direito canônico, cujos ditames estavam nas coleções que viriam a formar o Corpus Iuris Canonici, A princípio, o direito canônico se destinava à administração interna da Igreja Católica Apostólica Romana. Entretanto, gradualmente, sua jurisdição estendeu-se para atingir: i) objetivamente, qualquer matéria concernente à fé; e ii) subjetivamente, qualquer leigo que possuísse relação com a Igreja.3 Sobre o ius commune, ensina Melodie H. Eichbauer.

[24] O objeto da confissão é o fato criminoso e não sua capitulação jurídica. “A confissão recai sobre fatos, pois apenas dos fatos o réu se defende”. Sobre o fundamento histórico da confissão, Aury LOPES JR ensina que “No fundo, a questão situava-se (e situa-se, ainda) no campo da culpa judaico-cristã, em que o réu deve confessar a arrepender-se, para assim buscar a remissão de seus pecados (inclusive com a atenuação da pena, art. 65, III, “d”, do Código Penal). Também é a confissão, para o juiz, a possibilidade de punir sem culpa. É a possibilidade de fazer o mal através da pena, sem culpa, pois o herege confessou seus pecados”.

A questão mais relevante diz respeito à confissão obtida na fase policial e, posteriormente, retratada em juízo. Seguindo a linha de pensamento desenvolvida, somente a confissão feita em juízo poderia ser utilizada no julgamento (junto com as demais provas, é claro). Assim, quando houver confissão na fase pré-processual e retratação na fase processual, não existiu confissão alguma a ser valorada na sentença. Advertimos, contudo, que ainda predomina o entendimento na jurisprudência que o juiz pode formar seu convencimento a partir da confissão feita na fase policial, o que nos parece um absurdo. (...) Assim, pode-se concluir que a confissão tem como características principais, além da pessoalidade e da espontaneidade, a divisibilidade e a retratabilidade.

[25] O direito ao silêncio como o conhecemos é oriundo do Ius Commune europeu, estando contido em seu popular manual, o Speculum Iudiciale. Outros diplomas canonistas asseguravam a proteção ao penalmente imputado, processo que sofreu verdadeiro retrocesso com a realização do IV Concílio de Latrão pela Igreja Católica Apostólica Romana, o qual instauraria o processo inquisitório do medievo. Somente com o advento do Iluminismo temos o retorno do reconhecimento das garantias ao imputado, em se tratando da Europa Continental. Entretanto, é no Direito Inglês que o princípio, através do privilege against selfincrimination encontra sua proteção, a qual é uma conquista da defesa técnica, fruto da irresignação com as cortes eclesiásticas de Star Chamber e High Comission. O direito norte-americano estenderia a proteção dada pelo privilege disciplinando-o constitucionalmente em 1791.

[26] Para o jurista Lenio Streck, há sim uma politização das ações do Supremo Tribunal Federal (STF). No entanto, avalia o especialista, essa não é uma particularidade da Suprema Corte brasileira. O problema seria a adoção em reviravoltas de medidas com consequências para a política. “Toda Suprema Corte do mundo tem viés político. Questão é que o órgão não pode surpreender a comunidade política nem se sobrepor a ela. Aos olhos da população e da política, as decisões dos últimos dias parecem um atravessamento do STF pelas consequências que a medida tem.”

[27] O delito de infração de medida sanitária preventiva, previsto no artigo 268 do Código Penal, adquire realce no atual contexto pandêmico causado pelo novo coronavírus (Covid-19) porque ele é expressamente previsto por diversos atos normativos como uma das consequências do descumprimento de deveres individuais relacionados ao isolamento social, exames e tratamentos médicos específicos, testes laboratoriais e, inclusive, o uso obrigatório de máscaras de proteção facial.

[28] Como o primeiro conceito foi trazido recentemente para o Brasil, a sua tradução se deu ao pé da letra, resultando em "além da dúvida razoável". Quanto à palavra "standard", que seria tradução da palavra padrão e que guarda pouca relação com o tema a seguir abordado, esclareça-se que será utilizada a própria palavra em inglês, ante a inexistência de tradução com significado idôneo.

Quanto ao significado de standard, a doutoranda e Juíza de Direito do Paraná, Simone Trento defende que seria a intensidade de prova a ser alcançada para que o juiz possa proferir uma decisão fundada em certo fato jurídico. Este standard indica um ponto mínimo que deve ser alcançado para que se chegue à constatação dos fatos objetos da prova.

beyond a reasonable doubt, de acordo com os autores americanos James Q. Whitman Milley W. Shealey Junior seria um conceito que a própria Suprema Corte Americana falhou em definir com precisão.

Whitman inicia seu artigo afirmando que nos Estados Unidos, pelo menos na teoria, ninguém poderá ser condenado por um crime sem absoluta certeza sobre sua culpa. Explica que se o réu não confessar, todos os elementos essenciais da culpa deverão ser comprovados ao Júri e provados beyond a reasonable doubt. Quanto à expressão, esclarece que não está expressa na Constituição, bem como que passou a ser aplicada nos Estados Unidos a partir de 1798, tendo sido reconhecida pela Suprema Corte americana como standard do direito constitucional somente em 1970. A partir deste momento, a Corte teria passado a insistir na fundamental importância da aplicação deste princípio.

De acordo com Whitman, a história da regra da dúvida razoável seria a luta entre os ingleses e os desafios cristãos ocidentais universais. Os cristãos também eram jurados e, portanto, se submetiam aos atos de julgamento. Durante a Idade Média inglesa, os jurados não eram obrigados a ditar o veredicto de "culpado" e, portanto, não colocavam as suas almas em risco, no entanto, no período moderno, o medo da condenação surgiu e esta situação mudou. Os jurados tinham muito receio de condenar alguém quando houvesse a mínima possibilidade de inocência.

[29] Na obra de Deltan Martinazzo Dallagnol, onde o referido autor abordou o standard como uma alternativa aos conceitos inadequados de verdade e certeza, na indicação de um nível de convicção suficiente para uma condenação criminal. No quinto capítulo, abordou-se as diferenças e similitudes entre o princípio in dubio pro reo e o standard beyond a reasonable doubt, inferindo-se que, diferentemente do in dubio pro reo, o standard americano admitiria uma condenação, mesmo quando houvesse dúvida e desde que esta dúvida fosse ínfima, imaginária, não razoável. Por último, colacionou-se alguns julgados brasileiros, demonstrando a aplicação do padrão americano no Brasil. Exemplificou-se a aplicação do referido standard em diversos julgados, inclusive no "Mensalão" e na "Lava-jato".

[30] Bottino (2009) registrou: “No julgamento do caso Twining v. State, 211 U.S. 78 (1908), ocorrido em 09/11/1908, a Suprema Corte dos EUA decidira que as primeiras oito emendas à Constituição – dentre elas a que garantia o direito de não se autoincriminar, a 5ª emenda – restringiam apenas o poder estatal da união (governo federal) e não se aplicavam às jurisdições dos Estados. A decisão da Suprema Corte naquele caso estabeleceu a existência de dois tipos de cidadania diferentes nos EUA: uma nacional e outra estadual. Assim, se um determinado direito, privilégio ou imunidade, embora fundamental, não decorre das características do federalismo e não está especificamente previsto na Constituição como oponível aos Estados não pode ser alegado em processos criminais desenvolvidos no âmbito da jurisdição local. Ainda segundo a Suprema Corte, embora a 14ª emenda tenha incorporado à jurisdição federal e à estadual a cláusula do devido processo legal – com intuito de restringir o uso do poder estatal e evitar ações arbitrárias que pudessem atingira liberdade e os bens dos indivíduos – não chega ao ponto de impor o respeito, por parte da justiça dos estados, da garantia de vedação de autoincriminação quando esse direito não tiver sido incorporado pela legislação dos estados. O fato de a garantia de vedação de autoincriminação constituir um direito referido em separado pela Constituição, na 5ªemenda, conduz à conclusão de que se trata de um direito destacado do devido processo legal. Portanto, na opinião da Suprema Corte, a garantia de vedação de autoincriminação não faz parte da common law existente desde antes da independência das colônias dos EUA e, por fim, não pode ser apontada como um elemento indissociável do devido processo legal, com o significado que a 14ª emenda lhe conferiu. Com base nesses argumentos a Suprema Corte decidiu seguir o stare decisis (o entendimento que vinha sendo fixado desde então para situações semelhantes) e não modificar o resultado do julgamento em que Albert C. Twining – diretor e um banco acusado da prática do crime de exibição de documentos falsos ao fiscal do banco central dos EUA com o intuito de prejudicar a avaliação da saúde financeira da instituição – alegava ter tido seu direito violado em razão da instrução dada aos jurados de que eles poderiam considerar a recusa do acusado em testemunhar como uma evidência de que o mesmo praticara o crime que lhe era imputado. A jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos da América indica que, embora sejam produções legislativas dos séculos XVIII e XIX, a 5ªe 14ª emendas só foram transformadas em garantias efetivas na década de 60 do século XX, no bojo da campanha pela igualdade de direitos civis nos EUA, conhecido como civil rights movement, cujo período de maior efervescência ocorreu entre 1955 e 1965.Há momentos marcantes desse processo de expansão dos direitos dos cidadãos e de efetivação material das garantias constitucionais, como a decisão da Suprema Corte no caso Brown v. Board of Education, 347 U.S. 483 (1954); a campanha de boicote às empresas de ônibus de Alabama nos quais os negros deveriam sentar-se separados dos brancos (1955); a “integração” de uma escola em Little Rock, no Arkansas, com a presença do exército (1957); dentre vários outros que culminaram, em 1963, com a presença de duzentas mil pessoas na “Marcha sobre Washington” reunidas para ouvir o famoso discurso “I have a dream” de Martim Luther King. Portanto, apesar das centenárias previsões constitucionais acerca do direito de não se autoincriminar, será somente no contexto social dos anos 60 do século XX que a garantia revelar-se-ia deforma efetiva, como no famoso julgado da Suprema Corte dos Estados Unidos Miranda v. Arizona, 384 U.S. 436 (1966)”.

[31] Foi um caso da Suprema Corte dos EUA que sustentava que os suspeitos de crimes tinham direito a um advogado durante os interrogatórios policiais sob a Sexta Emenda. O caso foi decidido um ano depois que o tribunal decidiu em Gideon versus Wainwright que os réus criminais indigentes têm o direito de receber um advogado no julgamento.

[32] A Suprema Corte Americana em um caso histórico denominado Miranda vs Arizona (384 U. S. 436), por cinco votos a quatro decidiu que “antes de qualquer questionamento, uma pessoa deve ser informada que ela tem o direito de permanecer calada, e que qualquer depoimento que fizer poderá ser usado como prova contra si mesma.”

[33] No Brasil, os direitos e garantias individuais foram introduzidos desde a Constituição Imperial de 1824, cujo rol apresenta-se no Título 8º: “Das Disposições Geraes, e Garantias dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brazileiros” em seu artigo 179, sob a forma de trinta e cinco incisos (BRASIL, 1824). Dentre eles encontramos, por exemplo, a liberdade de locomoção, a inviolabilidade do domicílio, a possibilidade de prisão somente em flagrante delito ou por ordem da autoridade competente, e a igualdade perante a lei.

[34] Para António Pedro Barbas Homem, a “verdade brilha e guia a nossa liberdade e a nossa vontade”, ao passo que a mentira, ao contrário, “conduz-nos à escuridão e ao vazio”. De acordo com esse autor, “o problema da verdade antecede o da justiça”, daí concluir-se que “uma decisão não pode ser justa se não for verdadeira”. Por estas razões, esse jurista chegou à conclusão de que, diferentemente do silêncio e de ficar calada, uma pessoa acusada de praticar um crime, não pode, diante de um juiz, mentir, “pois tal significava aceitarmos a mentira como critério de organização da sociedade”. Na doutrina portuguesa, Manuel Lopes Maria Gonçalves salienta, a esse respeito, que a questão não tem grandes repercussões práticas, na medida em que, em qualquer caso, será inexigível do acusado o dever de verdade.

[35] Não se pode concordar com a assertiva de que o princípio do nemo tenetur se detegere assegure o direito à mentira. [...] A questão assemelha-se à fuga do preso. Pelo simples fato de a fuga não ser considerada crime, daí não se pode concluir que o preso tenha direito à fuga. Tivesse ele direito à fuga, estar-se-ia afirmando que a fuga seria um ato lícito, o que não é correto, na medida em que a própria Lei de Execuções Penais estabelece como falta grave a fuga do condenado (LEP, art.50, inciso II). Na verdade, por não existir o crime de perjúrio no ordenamento pátrio, pode-se dizer que o comportamento de dizer a verdade não é exigível do acusado, sendo a mentira tolerada, porque dela não pode resultar nenhum prejuízo ao acusado. Logo, como o dever de dizer a verdade não é dotado de coercibilidade, já que não há sanção contra a mentira no Brasil, quando o acusado inventa um álibi que não condiz com a verdade, simplesmente para criar uma dúvida na convicção do órgão julgador, conclui-se que essa mentira há de ser tolerada por força do nemo tenetur se detegere. Não é unânime, para a doutrina brasileira, a possibilidade de o acusado mentir em processo criminal. Enquanto de um lado há quem defenda a conduta como um direito decorrente da extensão dos princípios da ampla defesa e não incriminação, outros doutrinadores apontam para a existência apenas de uma tolerância à mentira, posto que não há uma tipificação para a conduta, conforme esclarece Palis (2016).

[36] Cumpre esclarecer ainda que o entendimento de que o réu poderá mentir em juízo, reconhecido inclusive pelo STF, diz respeito apenas aos questionamentos acerca dos fatos a si imputados, pois sabe-se, também, que a autodefesa não é um direito absoluto. Isto porque, por exemplo, se o réu, no interrogatório, imputar falsamente o crime a pessoa inocente, deverá responder pelo delito de denunciação caluniosa, tipificado no art. 399 do Código Penal.

[37] Seja como for, o que se pretende esclarecer de maneira muito breve, é que a intenção da redação de referida norma foi, precisamente, justa e razoável, na medida em que pensada para impedir a prisão do indivíduo, sem a sólida certeza de sua condenação - o que, de certa forma, poderia levar o Estado a incorrer em tremenda injustiça, caso, após o término do processo, se concluísse pela inocência do acusado. Decisão do Supremo Tribunal Federal acerca do tema, em julgamento do Habeas Corpus 126.292/SP, de relatoria do Exmo. min. Teori Zavascki. Na ocasião, por 6 votos a 5, o Plenário do STF firmou o entendimento de que, confirmadas as condenações criminais pelas decisões de segundo grau (isto é, aquelas proferidas pelos Tribunais, onde questões de fato e de direito, analisadas pelo juiz de primeiro grau, já foram revistas por um colegiado) poder-se-á, desde logo, executar a pena de prisão, não sendo necessário, portanto, aguardar a interposição e tramitação dos recursos destinados aos Tribunais Superiores. Encontra-se aqui, porém, um pequeno problema de compatibilização com a norma fundamental disposta no art. 5.º, LVII da CF, acima referida. Ora, pois, veja-se que, enquanto o constituinte estabeleceu a impossibilidade de condenação antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória (que só ocorreria após tramitação dos últimos recursos perante a Instância Especial), o Supremo decidiu por caminho absolutamente oposto, viabilizando, logo após as decisões de segunda instância, a prisão do acusado - e formando, portanto, o que se poderia chamar de execução provisória de pena. In: GENOSO, Gianfrancesco. O STF e a presunção de inocência: princípio em extinção? Disponível em:https://www.migalhas.com.br/depeso/280768/o-stf-e-a-presuncao-de-inocencia--principio-em-extincao Acesso em 19.6.2021.

[38] Por fim, juntamente com os direitos fundamentais existe uma segunda dimensão, representada pelos deveres fundamentais, isto é, o dever do homem de respeitar determinados valores relevantes para a vida em comunidade, questão analisada por Gregórios Robles, in litteris: “A dignidade do ser humano não consiste em cada um exigir seus direitos e que tudo lhe pareça pouco para afirmar a sua personalidade, mas, sobretudo, consiste em cada um assumir seus deveres como pessoa e como cidadão e exigir de si mesmo seu cumprimento permanente. Os direitos devem ser os canais institucionais que permitam a realização dos deveres”.

[39] Carter v. Kentucky foi um caso em que a Suprema Corte dos EUA considerou que os juízes de julgamento em processos criminais devem, mediante solicitação adequada do réu, informar o júri sobre seu direito contra a autoincriminação e que sua execução não pode ser usada contra ele. Na manhã de sexta-feira, 22 de dezembro de 1978, enquanto ainda estava escuro, a policial Deborah Ellison do Departamento de Polícia de Hopkinsville em Hopkinsville, Kentucky, notou algo estranho no beco entre a loja de ferragens Young e a loja de móveis Edna. Depois de iluminar o beco com seu holofote, ela viu dois homens que imediatamente fugiram do local. Depois de dirigir pelo beco, ela encontrou um buraco na lateral da loja de ferragens. Sabendo que ele estava na área, ela chamou o oficial Leroy Davis pelo rádio, razoavelmente suspeitando, com base na totalidade das circunstâncias, que estavam envolvidos em atividade criminosa, porque: 1) Estavam em um beco no escuro; 2) Eles fugiram imediatamente; e 3) houve uma vaga para a loja na área em que estavam. O policial Ellison inspecionou o beco. Ao mesmo tempo, o oficial Davis viu os dois homens correrem em direções diferentes e, após uma perseguição, parou um, cujo nome era Lonnie Joe Carter. Carter deixou cair uma bolsa de ginástica e um rádio sintonizado em uma banda do Police. Quando foi pego, ele estava de luvas, mas sem jaqueta. O policial Ellison encontrou duas jaquetas masculinas, bem como algumas mercadorias roubadas no beco perto do buraco na parede. Depois de ser levado a ela, o oficial Ellison observou ao oficial Davis que Carter "tinha altura e peso semelhantes a um dos homens no beco, e que ele usava roupas semelhantes." Ela não poderia dar uma identificação mais positiva, no entanto, porque o beco estava escuro. Carter foi levado para a sede da Polícia. O conselho de Carter solicitou no julgamento que o júri recebesse a seguinte instrução: "O [réu] não é obrigado a testemunhar e o fato de que ele não o faz não pode ser usado como uma inferência de culpa e não deve prejudicá-lo de nenhuma forma." O juiz, entretanto, recusou o pedido, e o Júri o considerou culpado de roubo de terceiro grau, recomendando a sentença de dois anos de prisão. Em seguida, ocorreu a fase reincidente do julgamento, na qual a promotoria apresentou evidências de condenações por crimes anteriores. A defesa não apresentou provas, e o júri o considerou culpado como um agressor persistente, condenando-o a vinte anos de prisão. Carter apelou. A Suprema Corte do Estado de Kentucky argumentou duas coisas: 1) Não há jurisprudência no âmbito da jurisdição apoiando a ideia de que as Quinta e Décima Quarta Emenda processual devido processo direitos incluídos o direito de ter o Júri ser informado do privilégio contra a autoincriminação; e 2) O juiz teria que comentar sobre a falha do réu em testemunhar, violando o Estatuto Revisado de Kentucky 421.225.  Como o estatuto conforme interpretado não violou a Constituição conforme interpretado, o Estatuto deve controlar os procedimentos dentro do tribunal. Assim, a Suprema Corte afirmou a decisão em Green v. Commonweath, afirmando a condenação do tribunal de primeira instância. Carter apelou.

Sobre a autora
Gisele Leite

Gisele Leite, professora universitária há quatro décadas. Mestre e Doutora em Direito. Mestre em Filosofia. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Possui 29 obras jurídicas publicadas. Articulista e colunista dos sites e das revistas jurídicas como Jurid, Portal Investidura, Lex Magister, Revista Síntese, Revista Jures, JusBrasil e Jus.com.br, Editora Plenum e Ucho.Info.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!