Introdução
O presente artigo tem como escopo apresentar uma possível resposta para o questionamento segundo o qual constitui o objeto deste trabalho.
Para isso, abordar-se-á no primeiro momento, o instituto da tutela provisória prevista no Livro V do atual Código de Processo Civil, a partir dos conceitos, requisitos doutrinários e os seus efeitos.
Em seguida, será apresentado um breve relato do julgado REsp nº 1712163 / SP contido no tema 990 do Superior Tribunal de Justiça, objeto de estudo do seguinte artigo.
Por fim, apresentam-se considerações com vistas a tentar solucionar a indagação em comento, a partir dos entendimentos desta discente e entendimentos dos Tribunais Superiores acerca do tema.
Tutela provisória
Segundo o artigo 294 do atual do Código de Processo Civil, “a tutela provisória pode fundamentar-se em urgência ou evidência”, ou seja, o magistrado antecipa a uma das partes um provimento judicial antes da prolação da decisão final, seja em virtude da urgência ou da plausibilidade do direito. O parágrafo único ainda acrescenta: “A tutela provisória de urgência, cautelar ou antecipada, pode ser concedida em caráter antecedente ou incidental”.
Segundo lições de Daniel Assumpção Neves, “a concessão da tutela provisória é fundada em juízo de probabilidade, ou seja, não há certeza da existência do direito da parte, mas uma aparência de que esse direito exista.
O Livro V, Título II, capítulo II do Código de Processo Civil dispõe sobre as tutelas de urgência. São normas aplicáveis tanto à tutela cautelar como a tutela antecipada.
Segundo Pontes de Miranda, “a tutela cautelar garante para satisfazer e a tutela antecipada satisfaz para garantir”. A tutela antecipada atende o direito, e, ao cumpri-lo, garante que o futuro resultado do processo seja útil para a parte ganhadora. Já a tutela cautelar garante o resultado final do processo, porém, essa garantia na verdade prepara e permite futura satisfação do direito.
Admitida a tutela provisória, a decisão torna-se estável caso a parte interessada não interponha recurso. Isso tem previsão no artigo 304 do Código de Processo Civil, que diz que, “A tutela antecipada, concedida nos termos do art. 303 , torna-se estável se da decisão que a conceder não for interposto o respectivo recurso”.
Assim, o meio que o réu tem para evitar a estabilização da antecipação da tutela é a inserção do recurso de agravo de instrumento, previsto no artigo 302, do Código de Processo Civil. A consequência da não inserção do agravo está prevista no parágrafo primeiro do artigo 304, do CPC: o processo será extinto. Além do mais, o parágrafo terceiro acrescenta que “A tutela antecipada conservará seus efeitos enquanto não revista, reformada ou invalidada por decisão de mérito”.
A alteração da tutela deferida pode ser requerida por meio de ação própria, no prazo de dois anos, contados da ciência da decisão que exigiu o processo (art. 304, §2º e §5º). O legislador vale-se aí da técnica de inversão da iniciativa para o debate, que se apoia na realização eventual do contraditório por iniciativa do interessado. Ao réu da ação antecedente, agora autor da ação exauriente, tocará em sendo o caso, a prova de fato impeditivo, modificativo ou extintivo.
Ao analisar a tutela antecipatória o STF atribuiu interpretação ampliativa ao art. 304 entendendo que outras formas de impugnação, como a contestação, servem para impedir que a tutela se torne estável. O STJ ainda acrescentou que não é razoável entender que, mesmo o réu tendo oferecido contestação ou algum tipo de manifestação exigindo o prosseguimento do feito, ainda que não tenha recorrido da decisão concessiva da tutela, a estabilização ocorreria de qualquer forma.
REsp n. 1712163 / SP
O relatório inicia contando um pouco do ocorrido. Ondina ajuizou uma ação cominatória, com o pedido de tutela antecipada, contra AMIL e ITAUSEG, aduzindo que as mesmas se recusaram a autorizar o custeio do medicamento “Harvoni” de que ela necessitava para o tratamento de cirrose hepática, derivada do vírus hepatite C. Ela pediu a condenação dessas seguradoras de saúde para o custeio das suas despesas necessárias para a importação do medicamento.
O pedido foi julgado procedente nos termos da petição inicial. Ondina e as seguradoras de saúde recorreram mediante apelação e sendo negado pelo Tribunal de origem.
Manifestaram sobre a lide recursal, na qualidade de amicus curiae, a União, a Federação Nacional de Saúde Suplementar, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), a Defensoria Pública da União (DPU), o Ministério Público Federal e o Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS).
“A UNIÃO se manifestou defendendo que inexiste obrigatoriedade na cobertura de medicamento importado, sem registro na ANVISA, em virtude das regras concernentes à vigilância sanitária e da vedação prevista no art. 12 da Lei nº 6.360/76 (e-STJ, fls. 709/723).” Destacou, a necessidade do prévio registro pela ANVISA para que uma empresa possa comercializar qualquer item fármaco, fabricado nacionalmente ou importado, que tenha finalidade profilática, curativa, paliativa ou para fins de diagnóstico.
A ANS se manifestou, relacionando parecer da área técnica sobre o assunto, no sentido de que a Lei nº 9.656/98 desobriga as operadoras de fornecer medicamento importado não nacionalizado.
A FENASAÚDE opinou pelo provimento do recurso especial manejado pela AMIL, manejando a tese de que as operadoras de planos de saúde não podem ser obrigadas a financiar tratamento por medicamentos importados, não registrados pela ANVISA.
Destacou, a relevância da manutenção de um quadro regulatório que gere equilíbrio entre os sistemas público e privado de saúde, sob pena de migração de beneficiários para o sistema público, o que levaria a onerar ainda mais o Sistema Único de Saúde (SUS). Citou a Lei nº 12.401/2011, que introduziu na Lei nº 8.080/1990 o art. 19-T, que transpôs para o próprio SUS a restrição prevista na Lei nº 9.656/98.
A DPU, em virtude do confronto aparente entre, de um lado, os valores da dignidade da pessoa, da proteção à saúde e da defesa do consumidor e, do outro, os da livre iniciativa e da segurança sanitária, deveria ser solucionado em benefício da pessoa, garantindo-lhe o acesso ao único recurso capaz de manter-lhe a integridade.
Por sua vez, o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL se manifestou pelo desprovimento de ambos os recursos especiais, fixando-se a tese de que as operadoras de planos de saúde estão obrigadas a fornecer medicamento importado, sem registro na ANVISA, em situações excepcionais.
O IESS se manifestou pela aprovação da tese jurídica de que as operadoras de plano de saúde não estão obrigadas a fornecer cobertura financeira à aquisição de medicamentos importados, não registrados na ANVISA (e-STJ, fls. 871/934).
O EXMO. SENHOR MINISTRO MOURA RIBEIRO (Relator):
O relator inicia comentando um pouco sobre o caso e diz que atualmente, é pacífico no STF que o direito à saúde é prerrogativa constitucional indisponível, garantido mediante a efetivação de políticas públicas, estabelecendo ao Estado a responsabilidade de criar condições objetivas que propiciem o efetivo acesso a tal serviço. Igualmente, esta Corte, por meio das decisões que proferiu, tem compelido o Estado a fornecer os medicamentos de que necessite pessoas carentes, idosos e tantas outras nas mais variadas situações.
De acordo com o que foi definido pela Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, órgão encarregado pela renovação do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, que estabelece a referência básica para cobertura assistencial mínima nos planos privados de assistência à saúde, contratados a partir de 1º de janeiro de 1999, medicamento importado não nacionalizado é aquele produzido fora do território nacional e sem registro vigente na ANVISA.
A Lei nº 6.360/1976 estabelece que estão sujeitos às normas de vigilância sanitária os medicamentos, as drogas, os insumos farmacêuticos e correlatos (art. 1º) e que nenhum dos produtos de que trata esta Lei, inclusive os importados, poderá ser industrializado, exposto à venda ou entregue ao consumo antes de registrado no Ministério da Saúde (art. 12).
Além disso, o art. 16 desta lei prevê as condições específicas que devem ser verdadeiramente atendidas para o registro de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos, dentre eles, que o produto, através de comprovação científica e de análise, seja legitimado como seguro e eficaz para o uso a que se propõe, e possua a identidade, atividade, qualidade, pureza e inocuidade necessárias (inciso II).
Além do mais, a importação de medicamentos, sem antecipado registro, constitui violação de natureza sanitária, nos termos dos arts. 10, IV, da Lei nº 6.4377/77, e 12 e 66, ambos da Lei nº 6.360/76.
Logo, não é possível o Judiciário determinar às operadoras de plano de saúde que efetivem ato tipificado como infração de natureza sanitária, pois isso provocaria evidente vulneração do princípio da legalidade previsto constitucionalmente. Nesse particular, esta Corte de Justiça tem reiteradamente declarado a validade da norma do art. 273 do Código Penal, a qual criminaliza a importação de medicamento, sem o devido registro na ANVISA.
Vale destacar, como destacado pela UNIÃO, que a obrigatoriedade do registro é essencial à garantia à saúde pública, tendo em conta que tal medida é fundamental para atestar a segurança e a eficácia do medicamento, dever este que recai sobre o Estado.
Em resumo, é exigência legal ao fornecimento de medicamento a prévia existência de registro pela ANVISA ou autorização dela.
Nessas condições, o magistrado propõe a consolidação da seguinte tese: As operadoras de plano de saúde não estão obrigadas a fornecer medicamento não registrado pela ANVISA.
No caso dos autos, verifica-se que a tutela antecipada foi deferida aos 16/9/2015 (e-STJ, fls. 111/113). Todavia, em consulta ao site da ANVISA na internet, verificou que o fármaco em questão (Harvoni – Sofosbuvir 400 mg e Ledispavir 90 mg) foi registrado na agência reguladora sob o nº 109290002, aos 4/12/2017, com vencimento para 12/2022 (https://consultas.anvisa.gov.br/#/medicamentos/25351201322201691/).
Assim, o registro e a legalidade da nacionalização do medicamento ocorreu após a antecipação de tutela, e também depois da própria interposição do recurso especial aos 12/7/2016 (e-STJ, fl. 412).
Nesse contexto, devem ser modulados os efeitos do presente acórdão para reconhecer o dever de cobertura a partir do efetivo registro do medicamento Harvoni, pela ANVISA, limitando-se o direito de reembolso aos valores despendidos tão somente após 4/12/2017.
Resposta da questão
A resposta ao questionamento objeto deste trabalho é polêmica, visto que não se vislumbra dispositivos legais para o seu deslinde, de modo a evocar entendimentos jurisprudenciais os quais, por meio da analogia podem ser usados.
Inicialmente, esta discente entende que os custos da medicação não devem ser pagos pelo litigante, ainda que haja desestabilização da tutela provisória através da sua revogação, em homenagem ao princípio da boa-fé e a natureza do bem jurídico tutelado que no presente caso o direito à saúde, art. 6º da Constituição Federal inexoravelmente direito fundamental à vida.
Com efeito, não é necessária a discussão de culpa da parte ou se esta praticou a má-fé, para que haja a indenização, basta a exigência do dano. Essa responsabilidade é objetiva, bastando que o prejudicado comprove o nexo de causalidade entre o fato e o prejuízo ocorrido, independente da demonstração de dolo ou culpa da parte que requereu a tutela provisória, de que o direito seria definitivo à autora, porquanto tratou-se de uma decisão judicial hígida, mediante a concessão da tutela provisória.
Caso fique provado que o autor da ação agiu de forma maldosa e perigosa, ele deverá, além de indenizar o réu, responder por condenações processuais previstas nos arts. 79, 80 e 81 do CPC.
Conforme explica a doutrina:
“(...) o requerente da tutela provisória assume o risco de ressarcir, ao adversário, todos os prejuízos produzidos pela concessão e a execução da providência urgente, quando essa vier a ser extinta por um ato ou omissão imputável ao autor da medida ou por se constatar que ele não tem o direito antes reputado plausível. E, para tanto, é irrelevante que o requerente da medida tenha agido de boa ou má-fé, com ou sem dolo ou culpa. Aliás, se tiver havido litigância de má-fé responderá também, cumulativamente, pelas penalidades imputáveis a tal conduta (conforme explicita a parte inicial do art. 302 do CPC/2015).” (WAMBIER, Luis Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil: cognição jurisdicional (processo comum de conhecimento e tutela provisória), volume 2. 16ª ed. São Paulo: RT, 2016, p. 880)
Por outro lado, é pacífica na jurisprudência, por analogia, que os valores dos benefícios previdenciários recebidos por força de tutela antecipada e posteriormente revogada devem ser devolvidos tendo em vista a ausência da boa-fé objetiva e a vedação do enriquecimento sem causa.
Nesse sentido, a obrigação de custear os valores correspondentes aqueles conferidos na tutela antecipada e posteriormente revogada é consequência natural da sua revogação recursal ou improcedência do pedido.
Os danos causados a partir da tutela antecipada, são disciplinados pelo sistema processual vigente dispensando-se a exigência de culpa ou má-fé da parte. Cuida-se da responsabilidade processual objetiva, bastando a existência do dano decorrente da pretensão deduzida em juízo, na forma dos artigos 297, parágrafo único, 302 e 520, I e II.
Para se buscar a reparação pelos danos causados em razão do cumprimento de tutela provisória posteriormente revogada, não é necessário que exista um capítulo autônomo na sentença do processo principal condenado o favorecido da tutela a ressarcir a parte contrária.
Para que o plano de saúde solicite o ressarcimento pelos dispêndios decorrentes da tutela provisória revoada não é necessário que na sentença tenha havido a expressa punição do autor.
Visto que, a obrigação de indenizar a parte contrária pelos prejuízos decorrentes do deferimento da tutela provisória posteriormente revogada é decorrência da força de lei da sentença de improcedência ou da sentença que eliminou o processo sem resolução do mérito.
Desta forma, é dispensável manifestação judicial a respeito, devendo o correspondente valor ser extinto nos próprios autos em que a medida deve ter sido concedida, sempre que possível, conforme determina o parágrafo único do art. 302 do Código de Processo Civil.
A respeito do tema, Wambier e Talamini declaram:
“desnecessário qualquer requerimento do réu da demanda de tutela provisória para obter tal condenação em seu favor - e a imposição da responsabilidade em exame também independe de expressa determinação do juiz. Para que se estabeleça o dever de indenizar, basta não haver mais recurso contra a decisão (de primeiro ou segundo grau, interlocutória ou final) que casse, reforme ou revogue a tutela provisória, implícita ou explicitamente. A condenação do requerente ao pagamento dessa indenização é um efeito anexo, automático, da própria decisão que implique a cessação de eficácia da medida” (Ob. cit., p. 880).
Por conseguinte, existe sim título executivo judicial que permite o cumprimento de resolução. Esse título é a própria decisão que antecipou a tutela, simultaneamente com a sentença de extinção do feito sem resolução de mérito que a revogou, logo, possível extrair não só a obrigação de ressarcir o dano causado à parte é, nos termos dos dispositivos legais analisados, arts. 302 e 309 do Código de Processo Civil, como também os próprios valores desembolsados pelo plano de saúde com o cumprimento da tutela provisória deferida.
Considerações finais
A realização do presente artigo, além de constituir objeto de avaliação, revela-se fonte de pesquisa para o entendimento da obrigação do litigante nos casos de revogação da tutela antecipada. Porquanto, há escassez de referências que tratam do tema.
REFERÊNCIAS
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Neves, Daniel Amorim Assumpção. Manual de processo civil - volume único / Daniel Amorim Assumpção Neves - 11. ed - Salvador: Ed. JusPodivm, 2019.
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WAMBIER, Luis Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil: cognição jurisdicional.
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Constituição Federal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
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Código de Processo Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13105.htm
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Tema 990. Disponível em: http://www.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&sg_classe=REsp&num_processo_classe=1726563