3. O mandado de segurança coletivo como um remédio constitucional.
Seguindo a discussão que aqui buscamos levantar, o seguindo ponto por meio do qual devemos perpassar: a qualidade do mandado de segurança enquanto um remédio constitucional de implementação dos direitos fundamentais.
Como é sabido, não basta meramente declarar um direito, é indispensável também protegê-los daqueles que possam violá-lo, citando Paulo Bonavides, “de nada valeriam os direitos ou as declarações de direito se não houvesse, pois, as garantias constitucionais para fazer reais e efetivos tais direitos”[28]. Qualquer Carta Constitucional que espere ser minimamente eficaz terá, ínsita a si, além de normas declaratórias, também normas assecuratórias, que denominamos comumente de garantias constitucionais[29].
É no meio dessas garantias constitucionais que encontramos os remédios constitucionais. São eles instrumentos de ordem processual que se voltam a amparar os direitos fundamentais, permitindo que seus titulares acionem o Poder Judiciário a fim de fazer cessar situações de flagrante ilegalidade e abuso que ofendam, ou ameacem ofender, tais direitos[30]. Tratam-se, pois, de uma parte integrante e indispensável do direito (e garantia) a tutela judicial efetiva – plasmada no art. 5º, inciso XXXV, CR –, servindo como meio de operacionalizá-la e materializando-a no plano fático.
É nesse sentido que devemos visualizar e discutir o mandado de segurança coletivo. Ele é um remédio constitucional de natureza coletiva, cuja finalidade é justamente a amparar os direitos fundamentais transindividuais consagrados na Constituição. Segundo Sérgio Shimura, “o mandado de segurança encerra verdadeiro instrumento de liberdade civil e política, contra atos ou omissões de autoridade ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público”[31]. Natureza jurídica esta que não pode ser olvidada.
Nesse sentido, comenta Cassio Sacerpinella Bueno Sobe a interpretação do art. 5º, inciso LXX, da Constituição da República:
O dispositivo constitucional [o art. 5º, LXX] sempre mereceu ser entendido no contexto inaugurado pela Constituição Federal de 1988 de asseguramento expresso e amplo do exercício também coletivo, isto é, não individual dos direitos e garantias “clássicos”, bem assim dos novos direitos e garantias que, gradativamente, foram sendo reconhecidos e incorporados ao patrimônio jurídico dos indivíduos, como, por exemplo, os direitos sociais[32].
Ora, como se pode extrapolar do já exposto, os remédios constitucionais não são um fim em si mesmo, pelo contrário, sua existência se justifica para assegurar a efetividade e exigibilidade dos direitos fundamentais. Lógica essa que deve ser carregada na interpretação desses institutos. Se são eles efetivos instrumentos de amparo aos direitos constitucionais, sua eventual limitação também implica, como consequência, em uma redução da tutela jurídica de tais direitos. Há de se reconhecer um sumo vínculo entre os fins da própria ordem jurídica (a saber, a defesa dos direitos fundamentais[33]) e os remédios constitucionais, ferramentas de promoção de tal objetivo.
Dessa sorte, o enfrentamento de qualquer questão que toque a utilização e o cabimento do mandamus coletivo (enquanto remédio constitucional) deve ser examinado sob o prisma da efetividade da Constituição e dos direitos fundamentais[34]. Dessa forma, seguindo as lições de Paulo Bonavides [35], o intérprete há de lançar mão da chamada “Nova Hermética”. Ou seja, não pode ele limitar-se a uma mera operação de subsunção do fato a norma, mas deve assumir uma posição criativa, acrescentando a norma constitucional, na busca de dar-lhe a máxima eficiência e concretude, inspirado naqueles valores juridicamente positivados que balizam o texto constitucional (art. 1º à 3º).
Dito isso, na análise do art. 5º, inciso LXX, da Constituição devemos tomar como base as finalidades precípuas do Estado brasileiro (quais sejam, a procura por uma sociedade, justa, livre, solidária, que promovo o bem de todos, sem discriminações), o que impele a consecução da tutela máxima dos direitos coletivos em sentido amplo. Nesse sentido, parece incoerente querer-lhe aplicar uma interpretação restritiva, sendo muito mais adequado conceder-lhes uma interpretação ampliativa, no intuito de alargar o âmbito de proteção jurisdicional dos direitos transindividuais.
Sobre o assunto bem comenta Eduardo Sodré:
Tratando-se de ação constitucional, como visto, a interpretação do mandado de segurança deve ser ampliativa, viabilizando-se ao máximo a sua utilização. Nesta linha de raciocínio, afirmar Cassio Scarpinella Bueno que “o reconhecimento de quem pode ser impetrante do mandato de segurança deve acompanhar, assim, a interpretação (necessariamente ampla) de todos aqueles que podem invocar as garantias do art. 5º da Constiuição. Dessa forma, a capacidade para figurar no polo ativo da relação processual, além de alcançar todas as pessoas físicas e jurídicas, engloba os órgãos públicos despersonalizados e as universalidades reconhecidas por lei [36]. (g/n).
Destarte, devemos entender as prescrições do art. 5º, inciso LXX, como uma garantia mínimo. Significa dizer, o constituinte originário positivou os traços mais básicos, essências, do mandado de segurança coletivo, não impedindo assim que possamos ampliar a partir dessa baliza inicial. A adição ao rol de legitimados do writ coletivo vem como uma evolução natural de um Estado de Direito preocupado em garantir a melhor tutela possível aos direitos transindividuais, principalmente em tempos cada vez mais complexos, com desafios e problemas que, de mais a mais, transbordam os limites individuais e afligem a sociedade, se não o globo terrestre, como um todo.
4. A conotação público-social do processo coletivo
Por derradeiro, seguindo ao ponto final do debate aqui suscitado, devemos chamar atenção: a inerente conotação público-social do processo coletivo.
Já mencionamos anteriormente que a legitimidade ativa é averiguada a partir da existência de uma “pertinência subjetiva" entre a parte e o bem jurídico demandando no processo. Dito isso, aquilo que buscamos explorar no presente tópico é justamente a presença dessa vinculação subjetiva entre os entes públicos (os Municípios, os Estados e o Distrito Federal), o Ministério Público e a Defensoria Pública, com os processos coletivos em geral. Vinculação que concederia a esses a possibilidade de atuarem, em regra, no polo ativo de quaisquer ações coletivas, incluindo o mandamus coletivo.
A demonstração de nossa tese passa, primeiramente, pelo destrinchar das funções precípuas do Poder Público. Nesse sentido, não parece haver dúvida de que a finalidade principal do Estado (pelo menos de um Estado Republicano e de Direto) é a procura pela melhor tutela do interesse público. E, por “intendesse público” podemos entender o interesse de todos os indivíduos enquanto membros da sociedade, nos estribando nas lições de Celso Antônio Bandeira de Mello, [37]. Embora, inúmeros outros autores também interpretem expressão como um sinônimo de “bem comum” [38].
Tomando a definição que se desejar, é certo que o Poder Público se coloca como promotor do bem da sociedade, dos interesses da coletividade. Ocorrendo que tais interesses, muitas vezes, são plasmadas no próprio texto constitucional. Afinal é natural da Constituição que carregue em si aquelas preocupações e objetivos que, devida a sua tamanha importância a sociedade, devem ser o objeto das funções do Estado (fazendo jus a sua missão transformadora da realidade fática, segundo a clássica teoria de Konrad Hesse[39]). O texto constitucional é, portanto, ponto de partida essencial na busca daqueles interesses que podem integrar essa classe especial do “interesse público”.
Nessa toada, deve-se notar um fenômeno que por vezes se sucede de sobreposição da ideia de interesse público com os interesses transindividuais [40]. Têm-se casos em que a defesa de direitos coletivos em sentido amplo é posta como parte integrante do das funções e atividades principais do Estado. Por exemplo, vide o art. 23 da Constituição, que, versando sobre a competência material comum, traz em seu bojo bens jurídicos de ordem coletiva cuja tutela impõe a todos os entes federativos. Nele, observa-se, particularmente, a obrigação de proteger o patrimônio histórico-cultural (inciso III e IV), preservar o meio ambiente (inciso VI e VII), promover o acesso à cultura, à educação e à ciência (inciso V), zelar pelo patrimônio público (inciso I), entre outros.
Por essa razão, tende-se a se dizer que os direitos transindividuais – e o processo coletivo, por consequência – são direitos de interesse público[41] ou, ao menos, de elevada importância público-social. Essa é uma característica que deriva, ao nosso ver, não só de uma sobreposição no campo constitucional do interesse público com os interesses transindividuais, mas dos atributos naturais desses últimos. Principalmente quando mencionamos os direitos difusos, tratamos de valores e bens que importam a toda sociedade e cuja lesão atinge a todos, causando prejuízos indiscriminados e, por vezes, de tal monta, que não permitem ao Poder Público manter-se inerte.
Com efeito, há uma forte militância doutrinária em favor de se reconhecer os processos coletivos como demandas dotadas, ao menos em parte, de interesse público. Como escreve Fernando da Fonseca Garjadoni: “Quando se pensa nos direitos e interesses supraindividuais conotados como públicos-sociais, o que se quer sustentar é a existência de interesse público primário nas demandas que busquem sua tutela[42]”. Dessa forma, há de se admitir que haverá uma certa pertinência entre o objeto das demandas coletivas e os entes públicos, o Ministério Público e a Defensoria pública, aproximando-os do processo.
Fredier Dider Jr. e Hermes Zaneti Jr. defendem, inclusive, que os processos coletivos servem a o que chamam de um “lítigação de interesse público”, justamente por suas peculiaridade que extrapolam interesses meramente individuais:
Os processos coletivos servem à “litigação de interesse público” (LIP); ou seja, servem às demandas judiciais que envolvam, para além dos interesses meramente individuais, aqueles referentes à preservação da harmonia e à realização dos objetivos constitucionais da sociedade e comunidade. Interesses de uma parcela da comunidade constitucionalmente reconhecida, a exemplo, dos consumidores, do meio ambiente, do patrimônio artístico, histórico e cultural, saúde, educação, bem como na defesa dos interesses dos necessitados e dos interesses minoritários nas demandas individuais clássicas (não os dos habituais polos dessas demandas credor/devedor), como os das crianças e adolescentes, das pessoas institucionalizadas em hospital e presídios, dos negros, dos índios, das mulheres, podem ser passíveis de serem veiculados como situação jurídicas coletivas merecedoras de tutela através de ações coletivas que permitam a tutela molecular de todo o corpo[43].
Aqui está o principal argumento em favor do manejo do mandamus coletivo por órgãos da administração pública como os PROCONS ou o CONAMA. Segundo Patrícia Pizzol, “os entes políticos deveriam ser os maiores interessados na proteção dos direitos ou interesses metaindividuais, enquanto ‘gestores da coisa pública e do bem-estar social’”. A partir desse fato não seria estranho que entes da administração direta e indireta também pudessem se utilizar do writ coletivo. Mesmo que em primeira vista tal assertiva aparentasse um contrassenso (pois o mandado de segurança se volta justamente contra abusos e ilícitos do próprio Poder Público) podem sim existir situações em que um ente público veja necessário defender os interesses difusos e coletivos de ingerências de outro ente de mesma natureza.
A título de exemplo, citamos a APL n. 1000388-32.2020.8.26.0244 do Tribunal de Justiça de São Paulo[44]. O caso tratava do Município de Ilha Cumprida, uma pequena cidade ilhada na costa paulista, com não mais de 10.965 habitantes, cuja única conexão com o continente se dava através de uma ponte que a ligava com o Município de Iguape, do qual a sua população dependia para acessar serviços públicos básicos. Com o advento da pandemia da COVID-19, o Município de Iguape estabeleceu um bloqueio sanitário dificultando ao acesso dos munícipes da cidade ilhada. Assim, o Município de Ilha Comprida viu-se forçado a impetrar mandado de segurança coletivo em favor de seus próprios cidadãos, buscando garantir o acesso destes aqueles serviços públicos[45].
Assim, parece-nos inegável a existência de uma efetiva « pertinência subjetiva » dos entes públicos e seus órgãos para atuar ativamente na tutela judicial dos direitos transindividuais. Lógica que se aplica inteiramente ao Ministério Público (defensor da ordem jurídica, democrática e dos interesses sociais e individuais indisponíveis) e a Defensoria Pública (promotora dos direitos humanos e dos direitos individuais e coletivos dos necessitados). Demonstra-se também patente a legitimidade da própria Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para impetrar o mandado de segurança coletivo em defesa de direitos difusos e coletivos que não somente aqueles titularizados por seus membros. Possibilidade que advém das próprias missões institucionais da OAB, positivadas no art. 44 da Lei n. 8.906/94, dentre as quais destaca-se seu dever de defender o Estado Democrático de Direito, os direitos humanos e a justiça social.
O que impele ver a todos como legitimados a impetração do mandamus coletivo sempre que ocorrer a lesão de um direito coletivo em sentido amplo, não havendo justificativa plausível para, em nível processual, negar seu explícito interesse subjetivo e sua indiscutível obrigação legal de atuar processualmente.