UMA AFRONTA AO SISTEMA ACUSATÓRIO
Rogério Tadeu Romano
Segundo o Blog do BG(Coluna Maquiavel – Veja) o ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), arquivou nesta segunda-feira, dia 23 de agosto de 2021, uma representação feita por senadores contra o procurador-geral da República, Augusto Aras, por suposto crime de prevaricação. Os senadores Fabiano Contarato (Rede-ES) e Randolfe Rodrigues (Rede-AP) acusaram Aras de omissão em relação ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Segundo Moraes, não há justa causa para a abertura de inquérito, pois membros do Ministério Público gozam de independência funcional. O ministro determinou o arquivamento do caso.
Na decisão, o ministro Moraes afirma que, excepcionalmente, é possível responsabilizar penal, civil e administrativamente membros do Ministério Público que cometam abuso de poder ou desvio de finalidade no exercício de suas funções. “Não é, entretanto, a hipótese dos autos, onde não estão presentes as elementares do tipo penal previsto no artigo 319 do Código Penal (prevaricação), pois não apresentados indícios suficientes para a demonstração concreta do interesse ou sentimento pessoal que teria movido o agente público, no caso o Procurador Geral da República”, escreveu o ministro.
Houve mal o ministro relator afrontando, mais uma vez, o sistema acusatório.
Ao Parquet, no sistema acusatório, acolhido pela Constituição-cidadã de 1988, cabe de forma privativa exercer o poder-dever de solicitar o arquivamento de uma investigação e, se sendo o caso, não oferecer denúncia, como titular da ação penal pública.
Ora, bem ensinou Fernando da Costa Tourinho Filho(Processo Penal, volume I, 6ª edição, pág. 243) que o pedido de arquivamento, nos crimes de ação penal pública, fica afeto ao órgão do Ministério Público. Somente este é que poderá requerer ao Juiz seja arquivado o inquérito, e, caso o magistrado acolha as razões invocadas por ele, determina-lo-á. Do contrário, agirá de conformidade com o artigo 28 do CPP.
A opinio delicti cabe ao titular da ação penal e não àquele que se limita, simplesmente a investigar o fato infringente da norma e quem tenha sido o seu autor.
O exercício da ação penal pública cabe ao Ministério Público. Se este concluir pela não-propositura da ação penal, não mais fará senão manifestar a vontade do Estado, de que é órgão, no sentido de não haver pretensão punitiva a ser deduzida. O mais que o juiz poderá fazer será exercer aquela função anormal, a que se referiu Frederico Marques, fiscalizando o princípio da obrigatoriedade da ação penal, evitando, assim, o arbítrio do órgão do Ministério Público. Ora, se o juiz submeteu o caso à apreciação do Chefe do Ministério Público e este entendeu que o Promotor estava com a razão, cessou o arbítrio, arquiva-se então o inquérito.
Assim o Ministério Público tem “o poder de ação”, e o juiz o “poder jurisdicional”.
Como bem disse ainda Fernando Tourinho Filho(obra citada, pág. 352), de notar-se que o titular da ação penal pública é o Estado, e o órgão incumbido de promover a ação penal é o Ministério Público. A este cumpre verificar se é caso de promove-la. Do contrário, estaria o Juiz(aí, sim) invadindo seara alheia, pois exerceria, de maneira obliqua o poder de ação. Mesmo na França, onde a ação penal é sempre pública, o procurador da República pode, quando julga infundada a noticia criminis, deixar de iniciar a ação penal.
Lembro que, no passado, o Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de anular um processo sob o seguinte motivo: o promotor requereu o arquivamento de inquérito que versava sobre crime contra a saúde pública. O juiz determinou o arquivamento, mas, nos termos do artigo 7º da Lei nº 1.521, recorreu ex officio. O Tribunal deu provimento ao recurso e determinou que fosse oferecida a denúncia. O promotor ofereceu-a. Afinal, em recurso, foi o réu condenado. Apreciando habeas corpus impetrado, o STF anulou o processo, sustentando, com acerto, que a iniciativa da ação penal cabia, com exclusividade, ao Ministério Público. O Tribunal não podia obriga-lo a oferece-la.
A opinio delicti é do Parquet e não do magistrado. Não cabe a ele dizer, sem maiores fundamentos, exercendo um juízo de valor, dizer se é ou não caso de investigação. Essa tarefa é do Ministério Público.
Sua atuação deveria ser encaminhar ao Conselho Superior do Ministério Público, na pessoa do vice-presidente daquele órgão, as peças do pedido para que este pudesse, se assim entendesse, solicitar a análise da conduta do procurador-geral da República junto ao colegiado.
São os caminhos que podem ser tomados com relação a essa atuação: uma investigação a partir do Conselho Superior do Ministério Público Federal, que poderia estar focada na prevaricação.
Se o Conselho Superior do Ministério Público Federal pode o mais, que é acionar perante o STF o procurador-geral da República, pode o menos, que é apurar, investigar aquele por possíveis delitos penais.
A duas, poder-se-ia tomar providências com fulcro no artigo 40 da Lei 1.079/50 com relação a crime de responsabilidade.
O artigo 51 da lei complementar 75/1993, lei orgânica do MPU, diz que “a ação penal pública contra o procurador-geral da República, quando no exercício do cargo, caberá ao subprocurador-geral da República que for designado pelo Conselho Superior do Ministério Público.”
Ali se diz:
Art. 51. A ação penal pública contra o Procurador-Geral da República, quando no exercício do cargo, caberá ao Subprocurador-Geral da República que for designado pelo Conselho Superior do Ministério Público Federal.
A ação seria julgada no Supremo Tribunal Federal que tem competência originária para tal.
Tudo isso em nome do princípio republicano, que exige a responsabilização do agente público pelos atos por eles praticados.
Afronta o ministro Moraes, mais uma vez, o sistema acusatório, invadindo atividade própria do Parquet.
Agiu como um juiz inquisidor. Assim agindo perde a sua imparcialidade.
Foge o sistema acusatório, adotado pela Constituição-Cidadã de 1988, do sistema inquisitório, caracterizado pela inexistência de contraditório e de ampla defesa, com a concentração das funções de acusar, defender e julgar na figura única do juiz, e pelo procedimento escrito e sigiloso com o início da persecução, produção da prova e prolação da decisão pelo juiz.
O modelo inquisitório vigorou durante os períodos do século XVII e XVIII, nas legislações europeias. Aliás, aqui, a repressão criminal era um primordial interesse público, sendo de interesse estatal.
No processo penal, a evolução histórica deu-se nesse sentido: o que se tinha outrora era o juiz-inquisidor. Paulatinamente, se foi liberando o juiz da função de acusar e, consequentemente, da colheita preliminar da prova, para chegar a condição de terceiro imparcial.
O Código de Processo Penal de 1941, nascido sob a égide de um Estado autoritário, e que teve como fonte o Código Rocco, centralizou no juiz a possibilidade de produção da prova, sem a necessidade de provocação das partes, iniciando a ação penal e adotando providências de ofício, sem iniciativa dos demais sujeitos processuais, inclusive na fase de investigação.
Isso porque o juiz que investiga não pode julgar, lembrando que a fase preliminar de investigação não é contraditória.
A imparcialidade do julgador é uma garantia constitucional implícita. Se a Constituição de 1988 não enunciou de forma explícita o direito a um juiz imparcial, temos que o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966(artigo 14, I), assim como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, adotada no âmbito da Organização dos Estados Americanos, em São José da Costa Rica, em 22 de dezembro de 1969, garantem o direito a um juiz ou tribunal imparcial, como se lê do artigo 8.1, que integra o nosso ordenamento jurídico, uma vez que foi promulgado internamente por meio do Decreto n. 592, de 6 de julho de 1992, o que ainda ocorreu com a Convenção Americana dos Direitos Humanos, cuja promulgação se deu por meio do Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992.
Há uma incompatibilidade lógica entre tais funções cumuladas, a de investigar e de julgar. Não há dúvida que assim agindo o juiz, quando, na fase processual, já está contaminado pela parcialidade.
A imparcialidade do juiz o levará a formar sua convicção apenas na fase do contraditório, como se vê da exegese do artigo 155 do Código de Processo Penal, diante da chamada persuasão racional.
Para o caso somente o órgão acusador, Conselho Superior do Ministério Público, pelo voto de seus componente poderia, se assim entendesse, arquivar a representação, e, aí sim, submetê-la a homologação pelo ministro relator do STF para o caso.