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Justiça versus poder: ilusões sobre a natureza humana revelada

Agenda 25/08/2021 às 19:37

A recondução de Augusto Aras nos leva a refletir sobre um nó herdado do século XX. A crise institucional e a desarmonia entre os Poderes da República colocam as garantias constitucionais em risco, priorizando interesses políticos e de grupos sem representação sobre os interesses públicos.

O título acima foi retirado de uma publicação que reproduz o debate entre Michel Foucault e Noam Chomsky sobre o que a interlocução entre os temas da justiça e do poder revelam da natureza humana.

Para os que hoje estão mais velhos, poderia parecer que esse debate seria mais próprio no Século XX, em cujo final efetivamente se realizou, e com ele deveria ter sido – se não encerrado, pois novas formas de exercer a justiça e o poder surgem ainda – ao menos concluído como concepção, pois ambos os conferencistas tinham domínio sobre a complexidade do tema para explorar todas as suas variáveis.

Essa suposição não é válida para o Brasil, onde a marca da inconclusão é perene.

Ontem, 24 de Agosto, data cujo simbolismo guarda ainda uma força difusora, por marcar a morte violenta do nosso único presidente da República perecido na marcha de um golpe de Estado, em 1954, Augusto Aras foi reconduzido, mediante autorização do Senado, para mais um mandato como Procurador Geral da República.

A análise desse episódio está bem resumida na reportagem que segue no link assinalado, uma publicação do jornal espanhol El País 1.

Quando Getúlio Vargas foi levado ao suicídio no Palácio do Catete, ele vergava – já no fim de seu mandato – diante de um golpe de Estado em marcha, promovido por uma aliança que se vinha formando, de forma mais ostensiva, desde que seu governo havia criado a Petrobrás e o BNDE, considerados meios socializantes de controle da economia.

Formou-se então uma aliança improvável entre

A respeito do medo e da ambiguidade do STF , ver o livro “A Justiça a Serviço do Crime”, de Arruda Campos, mais especificamente a transcrição do voto do ministro Nelson Hungria sobre os golpes militares. Logo ele que, nos Comentários ao Código Penal, via impudicícia quando o beijo baixava pelo pescoço até o colo...

A morte de Getúlio Vargas provocou uma violenta e devastadora reação popular que varou o país, cujo efeito retardado foi o contragolpe do general Henrique Lott (depois de humilhado por Carlos Luz, então investido como ministro da Justiça), que levou à fuga de Lacerda e do próprio Luz em um navio da Marinha de Guerra e ao impedimento in concreto de Café Filho, pelo que o vice-presidente do Senado, o catarinense Nereu Ramos, assumiu a presidência da República e concluiu o mandato.

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Assim sendo, a improvável aliança (que o êmulo de Lacerda que foi Jarbas Passarinho, grande reincidente na sua ‘cultura de almanaque’, chamava de “estranho contubérnio”) entre militares salvacionistas da lei e da ordem , políticos conspiradores , imprensa distorciva e Judiciário dilacerado , incapaz de sustentar o ordenamento jurídico de forma compreensível pela população, reinstalou em nosso país o espírito confabulatório que, de tempos em tempos, triunfa sobre o regime democrático desde o pós-guerra.

A recondução de Augusto Aras nos leva a refletir sobre esse quadro que de novo se apresenta, em que a “Justiça versus Poder” se revela como um nó herdado do Século XX.

Dez anos depois da morte de Getúlio, iniciou o período de uma ditadura que durou 21 anos (prometia ser “redentora”, mas acabou aceitando ser reconhecida como “regime de exceção”, na suposição um tanto obtusa de que esse arranjo de palavras escamoteava a tirania), da qual saímos mais perdidos quanto aos objetivos republicanos do que estávamos antes do golpe.

A prova disso, em suas confusas ordenações que antes se prestam ao riso do mundo, porque extensas e descoordenadas, e porque servem a todos os embaraços institucionais que temos vivido desde então, se encontra na Constituição de 1988.

Uma mistura delirante da descrição bíblica do início dos tempos, mas embaralhando o “verbo ” com o “caos ”.

No caudal de suas disposições, ela é reescrita por cada intérprete à sua maneira, mas todos convergem para a mesma encruzilhada mítica que não leva a lugar algum, onde estão cravados os totens do “Estado democrático de Direito”, da “harmonia entre os Poderes” e da “supremacia da lei”.

Além, é claro, do “devido processo legal” em que, a cada vez, as regras de procedimento são reescritas mediante a profanação do princípio de Bartolo rebus sic stantibus .

Que o diga o texto do artigo 142, que vem sendo invocado para a sustentação de um novo golpe:

Título V - Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas

Capítulo II - Das Forças Armadas

Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem .

Há um excelente trabalho publicado sobre o debate surgido na Constituinte a respeito desse artigo específico 2.

Embora a autora, identificada no site Migalhas, conclua que o “Poder Moderador” foi então descartado, não há sombra de dúvida de que as palavras utilizadas nos discursos de José Genoino, Fernando Henrique e pelo introdutor da fórmula, Bernardo Cabral, são uma fonte interminável de confusão e risco institucional.

Se o artigo diz que as Forças Armadas estão sob a autoridade suprema do Presidente da República, como elas poderiam seguir ordens de iniciativa de outros poderes constitucionais para manter a lei e a ordem?

Só um demente introduziria em uma constituição uma fórmula desse quilate, pela potencialidade de distorção que, irremediavelmente, contém.

Pois essa regra constitucional repousa em nossa Carta pronta para ser invocada pelo outro demente que vier a despertá-la como quem desperta um vampiro.

Nossa história ainda registrará com maior ênfase os malefícios que Bernardo Cabral causou ao nosso país ao privilegiar uma Constituição de redação bacharelesca , possivelmente sem par no mundo, pois cada uma de suas regras parece uma armadilha para surpreender espíritos de boa fé.

Fernando Henrique Cardoso também carrega a sua culpa pois, ao invés de apoiar Genoino e retirar a fórmula ambígua, redigida por Cabral, fez apenas um discurso para ‘comprovar’ que nenhuma interpretação equivocada ficaria autorizada.

Má fé? Ilusão? Idealismo? Não, apenas vaidade retórica pelos aplausos fugidios.

Essas contradições retiraram desse e de outros episódios que transcorrem no âmbito do Judiciário aquele entendimento que poderia ser chamado de inteligibilidade ínsita , decorrente da enteléquia concebida por Aristóteles, que ainda se mantém como o alicerce para todo e qualquer sentido que possa ser corporificado como uma autêntica ratio legis .

O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, por exemplo, contém dois dispositivos que têm feição de instituto e complementam a ordem constitucional.

O primeiro deles é a reclamação , destinada a assegurar a eficácia das deliberações da Corte Suprema, em caso de descumprimento (RISTF, art. 156 e seguintes).

O segundo é o inquérito , para promover o exercício do poder de polícia em relação a crimes que visem a destituir a autoridade do Tribunal ou de seus componentes e serviços (RISTF, art. 42 e 43).

A reclamação vem sendo utilizada de maneira excessiva desde a última década do século passado. Isso é significativo, pois – pelo grande volume – levaria alguém que procura decifrar o ordenamento jurídico em nosso país a subentender que o exercício da jurisdição aqui é temerário, precário e admite toda a sorte de recalcitrâncias.

Na verdade, não é isso.

O que ocorre é a instabilidade jurisdicional que a própria Corte Suprema patrocina , deixando de filtrar e atualizar suas súmulas e produzindo jurisprudência absurdamente contraditória, obscura, imprecisa e – escandalosamente – subversora do ordenamento jurídico.

Veja-se a questão das terras indígenas e sua demarcação; veja-se ainda a confusão sobre benefícios fiscais na Zona Franca de Manaus ou as contramarchas danosas sobre índices vários de correção de fundos, como o FGTS, ou de benefícios, como os previdenciários.

Veja-se, por fim, os penduricalhos remuneratórios no serviço público, as acumulações acima do teto constitucional de ganhos para a universalidade dos agentes estatais – tudo determinado por medidas provisórias ou por “interpretações” contra legem , humilhando nossa população.

Mesmo as súmulas vinculantes, que foram apresentadas como a solução definitiva para harmonizar as instâncias iniciais com os julgamentos cujo entendimento foi pacificado pelo STF, sofreram um revés que as desfigurou.

Primeiro, porque seguido são mal redigidas. Algumas, como a sempre lembrada “sumula das algemas”, se esmeram em ser confusas. Essa mesma SV 11/2008, expressão da ‘doutrina’ do ministro Marco Aurélio Mello (que, aliás, repete nela sua prosódia arrevesada), é uma bula, um manual de uso, nunca um enunciado canônico.

Segundo, para uma conclusão breve, mas já suficiente, porque o Supremo pratica a inversão aleatória de sua jurisprudência.

Um julgamento ainda recente mostra isto.

Os presidentes da Câmara Rodrigo Maia e do Senado Davi Alcolumbre desejavam renovar seus mandatos, dentro da mesma legislatura, para a Câmara e o Senado, embora o art. 57, § 4º, da CF, vede expressamente a reeleição.

A corrente majoritária do Supremo manteve o texto da Carta, mas a minoritária, capitaneada pelo Ministro Gilmar Mendes, tendo sido impedida de cumprir os compromissos políticos que assumira , fez ameaças publicas ao presidente da corte , Ministro Luiz Fux, afirmando que então “seu mandato terminou ”, embora ele o tivesse recém iniciado...

O segredo de polichinelo é o de que o Supremo Tribunal Federal não mantém jurisprudência coerente.

Ela surge e se modifica conforme circunstâncias aleatórias, de ocasião.

Assim ocorreu no julgamento do agravo no famoso processo do “Mensalão”, revertendo as principais condenações, e nas anulações e suspeições acolhidas na “Operação Lava Jato”, com base em ‘provas’ que o próprio Supremo considera historicamente imprestáveis e ilegais.

Já o inquérito previsto no RI visa a afastar elementos de coação que possam perturbar os julgamentos do STF.

Além das providências de polícia, autorizadas nos artigos 42 e 43 do RISTF, já citados, outras podem ser tomadas conforme o tribunal “julgar cabíveis ”, conforme está nos artigos 46 e 47 do Regimento, caso o Procurador Geral da República não aja.

Haveria, portanto, em tese, a autorização para que o STF tomasse providências de ofício para preservar a liberdade e independência do exercício de sua jurisdição , caso atacadas ou ameaçadas, se as medidas próprias ao poder de polícia se mostrassem insuficientes, ou se outras autoridades, provocadas ou requisitadas, não agissem.

Poderia ser questionado se esse ‘poder agregado’ teria base constitucional.

Tal dúvida é superada pelo princípio da extensão , uma vez que – de outra forma, mais contida – o tribunal não poderia aplicar o direito à espécie , cessando seu poder de iniciativa, assim como a amplitude da sua competência, condizente com a extraordinaria cognitio , para dar eficácia e executoriedade a seus julgados, se dependesse completamente do endosso de outras autoridades públicas, que viessem a se mostrar omissas a respeito, ou resistissem por ter seu interesse contrariado.

Essas são as considerações teóricas aplicáveis. Porém, há considerações históricas consideráveis a valorizar.

O “inquérito do fim do mundo”, como ficou cognominado, foi aberto pelo Ministro Dias Toffoli para reprimir as denúncias feitas contra ele próprio de receber propinas , valer-se do cargo para obter vantagens de empreiteiras e administrar um conta bancária para arrecadar fundos em nome de terceiro, no caso, sua mulher.

As primeiras medidas tomadas pelo relator Alexandre de Moraes foram no sentido de estabelecer censura sobre os meios de massa.

Depois, conforme foram variando protestos públicos ou ataques partidários, o objeto do inquérito mudou, e hoje tem como alvo grupos que hostilizam o tribunal.

Dado esse histórico do “inquérito do fim do mundo”, pedir o impeachment do ministro Alexandre de Moraes não é nenhuma blasfêmia nem, em si mesma, uma iniciativa a ser “denunciada”. Isto porque a hipótese está expressamente prevista na Lei dos Crimes de Responsabilidade (Lei 1079/1950).

Independente de quem peça tal impeachment, tem o direito de fazê-lo e de ter os fatos de enquadramento da sua iniciativa examinados tecnicamente pelo Senado, com base no que a lei prevê. E, convenhamos, desvios de finalidade, erros, abusos, extrapolação de competência, atentados à ordem constitucional... não faltam, nem são difíceis de demonstrar.

Todavia, no estremecimento entre os golpistas e o establishment, a opinião pública é conduzida a concluir que um dos lados tem razão, enquanto ambos, numa dança macabra à roda do fogo, tentam se “harmonizar ” sobre quem jogarão às chamas ...


Conclusão

Na luta entre o establishment e o golpismo não há interesse popular em jogo, ou qualquer objetivo republicano a preservar.

O “povo” é convocado como a velha massa de manobra sempre o foi.

São núcleos, ainda quando numerosos, que recebem ou buscam patrocínio. Seu novo diapasão é a idolatria ou as guerras santas capturando fiéis e perseguindo infiéis, tudo difundido pelos meios eletrônicos. Tal é o fenômeno dos apoiadores .

Onde chegaremos?

A lugar nenhum? Esta seria a melhor hipótese.

Perderíamos mais tempo em nossa “Vida e Morte Severina” na interminável procissão institucional por uma salvação impossível, mas sempre haveria um ‘depois’ para o término do atual mandato da presidência da República, que ainda se estenderá por quase um ano e meio, da mais abjeta espera – sempre pelo dano mais perverso, que ainda não veio.

A hipótese pior é a de que nos sintamos sufocados pelas três imensas sombras que hoje se projetam sobre nós, a da pandemia, que é enfrentada ao modo de um pandemônio; a da crise climática, que será duradoura, profunda e negligenciada e a da ruptura institucional, que é iminente, tanto quanto adiada para “a data mais propícia” seguinte.

O erro brutal do Senado em aprovar Augusto Aras foi como acender o rastilho que leva um barril de pólvora, acreditando que ele possa se apagar acidentalmente no seu percurso, ou que venha a ser cortado por um benfeitor da pátria ou que dê tempo para novos arranjos de cúpula que venham a esvaziar o barril...

Cada um de nós hoje é um encanecido Miguel de Unamuno recusando, ao custo de um confinamento até que a morte se imponha, a repetir-lhe o sinistro coro de saudação “Viva la Muerte”.


Notas

1 Senado releva blindagem de Aras a Bolsonaro e premia com mais dois anos na PGR seu apoio à classe política. https://brasil.elpais.com/brasil/2021-08-25/senado-releva-blindagem-de-aras-a-bolsonaro-e-premia-com-mais-dois-anos-na-pgr-seu-apoio-a-classe-politica.html

2 Documentos da Assembleia Constituinte revelam que deputados discutiram e descartaram papel moderador Forças Armadas, por Adriana Cecílio. https://www.migalhas.com.br/depeso/328382/documentos-da-assembleia-constituinte-revelam-que-deputados-discutiram-e-descartaram-papel-moderador-forcas-armadas

Sobre o autor
Luiz Fernando Cabeda

Desembargador do TRT da 12ª Região, inativo. Fez estágio na Escola Nacional da Magistratura da França, Seção Internacional. Autor de "A Justiça Agoniza" e "A Resistência da Verdade Jurídica".

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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