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A ATIPICIDADE DO ESTELIONATO JUDICIÁRIO

Agenda 31/08/2021 às 17:23

O ARTIGO DISCUTE O TEMA SOB O ENFOQUE DA JURISPRUDÊNCIA DO STJ E DA DOUTRINA.

A ATIPICIDADE DO ESTELIONATO JUDICIÁRIO

Rogério Tadeu Romano

Por maioria de votos, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça afastou uma proposta de revisão da jurisprudência pacífica da corte segundo a qual é atípica a conduta do chamado estelionato judiciário (ou judicial).

Essa prática consiste no uso de documentos particulares com informações inconsistentes, não condizentes com a realidade. A figura do estelionato judiciário não existe no ordenamento jurídico, mas foi assim chamada pela praxe jurídica.

Por reconhecer a atipicidade da conduta, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por maioria de votos, trancou a ação penal contra uma mulher que teria apresentado endereço falso com o objetivo de iniciar processo na Justiça Federal do Paraná sobre uma mesma questão que já havia sido julgada de forma definitiva no Distrito Federal.

A ação penal proposta pelo Ministério Público Federal imputou à mulher os crimes de falsidade ideológica e uso de documento falso. Em primeiro grau, o juízo afastou a alegação de atipicidade da conduta e considerou que haveria motivos para a instauração do processo contra a denunciada.

O julgamento se deu no HC 664.970.

Para o ministro Rogerio Schietti, as situações de ocorrência de estelionato judiciário podem ser dividas em dois grupos. No primeiro, estão condutas em que manobras processuais violam o dever das partes dispostos no Código de Processo Civil, em comportamentos antiéticos que merecem reproche.

Nessa hipótese, os atos são combatidos por multa de litigância de má-fé prevista no CPC e são inclusive puníveis pela OAB. Mas não há crime.

No segundo grupo estão as condutas que, além de ferir esses deveres das partes, também atingem bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal. É quando há a indução do juízo em erro para obtenção de vantagens, gerando lesão à administração da Justiça e tentativa de lesão ao erário, já que busca obter benefício que já foi negado.

O STJ tem posição cediça na matéria:

PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. INADEQUAÇÃO. TENTATIVA DE ESTELIONATO JUDICIAL. ABSOLVIÇÃO. ATIPICIDADE RECONHECIDA. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO.

1. Esta Corte e o Supremo Tribunal Federal pacificaram orientação no sentido de que não cabe habeas corpus substitutivo do recurso legalmente previsto para a hipótese, impondo-se o não conhecimento da impetração, salvo quando constatada a existência de flagrante ilegalidade no ato judicial impugnado.

2. O habeas corpus não se presta para a apreciação de alegações que buscam a absolvição do paciente, em virtude da necessidade de revolvimento do conjunto fático-probatório, o que é inviável na via eleita.

3. O estelionato judicial consiste no uso do processo judicial para auferir lucros ou vantagens indevidas, mediante fraude, ardil ou engodo, ludibriando a Justiça, com ciência da inidoneidade da demanda. Percebe-se que a leitura das elementares do art. 171, caput, do Código Penal deve estar em consonância com a garantia constitucional da inafastabilidade jurisdicional (CF, art. 5º, XXXV), do que decorre o entendimento segundo o qual o direito de ação é subjetivo público e abstrato, em relação ao direito material.

Desse modo, verifica-se atipicidade penal da conduta de invocar causa de pedir remota inexistente para alcançar consequências jurídicas pretendidas, mesmo que a parte ou seu procurador tenham ciência da ilegitimidade da demanda.

4. A conduta constitui infração civil aos deveres processuais das partes, nos termos do art. 77, II, do Código de Processo Civil, e pode sujeitar a parte ao pagamento de multa e indenizar a parte contrária pelos danos processuais, consoante arts. 79, 80 e 81 do Código de Processo Civil ilícito processual. Outrossim, conforme art. 34, XIV, da Lei n. 8.906/1994, verifica-se infração profissional do advogado deturpar a situação fática com o objetivo de iludir o juízo. Conclui-se, pois, que a conduta descrita não configura infração penal, mas meramente civil e administrativa, sujeita à punição correlata.

5. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida, de ofício, para absolver a paciente quanto ao delito de estelionato tentado (Ação Penal n. 023634-39.2011.8.26.0196).

(HC 435.818/SP, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 03/05/2018, DJe 11/05/2018)

PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO VISANDO RECONHECIMENTO DE LITISPENDÊNCIA E DE INÉPCIA DA DENÚNCIA. POSSIBILIDADE DE TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL POR ATIPICIDADE. ADVOGADO. ESTELIONATO EM JUÍZO. FALTA DE JUSTA CAUSA. ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL E DOUTRINÁRIO. CONCESSÃO DA ORDEM EX OFFICIO. RECURSO PREJUDICADO.

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1. Em que pese a pretensão recursal visar o reconhecimento de litispendência e inépcia da denúncia, há, na espécie, possibilidade de trancamento da ação penal, mas por outro motivo não alegado na impetração.

2. Não configura "estelionato judicial" a conduta de fazer afirmações possivelmente falsas, com base em documentos também tidos por adulterados, em ação judicial, porque a Constituição da República assegura à parte o acesso ao Poder Judiciário. O processo tem natureza dialética, possibilitando o exercício do contraditório e a interposição dos recursos cabíveis, não se podendo falar, no caso, em "indução em erro" do magistrado. Eventual ilicitude de documentos que embasaram o pedido judicial são crimes autônomos, que não se confundem com a imputação de "estelionato judicial".

3. A deslealdade processual é combatida por meio do Código de Processo Civil, que prevê a condenação do litigante de má-fé ao pagamento de multa, e ainda passível de punição disciplinar no âmbito do Estatuto da Advocacia.

4. Ordem concedida, ex officio, para reconhecer a atipicidade do delito de estelionato, trancando, por conseguinte, a ação penal, por falta de justa causa, sem prejuízo da apuração de outros crimes porventura existentes.

5. Recurso ordinário prejudicado.

(RHC 88.623/PB, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 13/03/2018, DJe 26/03/2018).

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça considera atípica a figura do "estelionato judiciário", consistente no uso de documentos particulares, como presunção e declaração de hipossuficiência, com informações inconsistentes, não condizentes com a realidade.

Esta Corte Superior considerou atípica a menção a endereço incorreto em procuração nestes julgados: HC n. 379.353/SP, Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, DJe 15/2/2017; RHC n. 70.596/MS, Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, DJe 9/9/2016; e RHC n. 49.437/SP, Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, DJe 4/3/2015.

Nestes outros, o STJ considerou atípica a declaração de hipossuficiência: HC n. 218.570/SP, Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, DJe 5/3/2012; HC n. 105.592/RJ, Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, DJe 19/4/2010; e REsp n. 1.100.837/SC, Ministro Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, DJe 13/10/2009.

A deslealdade processual é combatida por meio do Código de Processo Civil, que prevê a condenação do litigante de má-fé ao pagamento de multa, e ainda passível de punição disciplinar no âmbito do Estatuto da Advocacia.

O "estelionato judicial", na lição de Guilherme de Souza Nucci (Tratado jurisprudencial e doutrinário do Direito Penal, v. II, Parte Especial, RT, São Paulo: 2011, p. 659) , "é uma expressão criada para designar particular situação, envolvendo o uso do processo para auferir lucros ou vantagens indevidas, mediante fraude, ardil ou engodo. O agente procura a via processual para conseguir alguma vantagem, ludibriando a Justiça. Pode apresentar documentos falsos ou testemunhas mentirosas; é viável que se mancomune com a parte contrária; busca corromper autoridades, etc."

Os autores que defendem a existência do referido estelionato entendem que o tipo penal capitulado no artigo 171 do Código Penal não exclui da incidência da norma as hipóteses em que a fraude é aplicada por meio do processo judicial, não sendo possível, dessarte, falar-se atipicidade, ainda mais quando perfectibilizados todos os elementos da norma incriminadora. Ao ensejo, confira-se a lição de Luiz Regis Prado:

Tem sido admitida pela doutrina estrangeira a possibilidade do estelionato processual, sobretudo no processo civil, quando uma parte, com sua conduta fraudulenta ou enganosa, realizada com ânimo de lucro, induz o juiz em erro e, este último, como consequência, profere sentença injusta que causa prejuízo patrimonial à parte contrária ou a terceiro. Aqui, o enganado é o juiz, que se vê utilizado para a consecução de um resultado ilícito (caso de autoria mediata), e o prejudicado é a parte contrária ou terceiro. Entende-se, pois, que as afirmações conscientemente falsas das partes são ilícitas e constituem uma fraude suscetível de realizar a figura do delito de estelionato, quando preenchidos todos os seus requisitos legais. ( Curso de Direito Penal Brasileiro . 7. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, vol. 2, p. 442-443).

Nilo Batista , em artigo de título "Estelionato Judiciário", rebate os principais argumentos contrários à tipicidade do estelionato praticado por meio do judiciário. Com efeito, esclarece que não há se falar em 1) inidoneidade presuntiva do juiz para ser enganado , pois este, como ser humano que é, está apto a errar bem como a ser induzido em erro. Ademais, acaso verdadeira essa afirmação, não se poderia falar em crime de falso testemunho, por exemplo. Acrescenta, ainda, que, não obstante 2) a sentença ser uma resultante multifária das alegações e das provas , deve ser avaliada a causalidade entre o erro e a disposição, o que possibilitaria, a seu ver, a responsabilização daquele que se valeu da fraude. Por fim, aduz que não se pode entender que 3) a limitada incriminação da fraude processual significa vontade de não incriminar outras possíveis fraudes, principalmente quando for possível a tipificação em tipo concorrente principal, como por exemplo, o estelionato. (Revista dos Tribunais, vol. 638, dez⁄1988, p. 255).

Ainda ensinou Guilherme de Souza Nucci:

Entretanto, embora se tenha utilizado da terminologia jurídica, denominando tal hipótese de estelionato , em verdade, o fato é atípico. Inexiste previsão legal para a punição pelo delito do art. 171 do Código Penal, caso o agente se valha do processo para buscar alguma vantagem indevida. Em primeiro lugar, há o direito de ação, indistintamente assegurado. Em segundo, cabe ao juiz acolher ou rejeitar demandas temerárias. Em terceiro, há figuras típicas específicas para cada infração cometida no processo. Se houver falso testemunho, aplica-se o disposto no art. 342 do CP. Havendo oferecimento de documento falso, invoca-se o preceituado nos arts. 297 e 304 do CP. Existindo corrupção, aplica-se o art. 317 e 333 do CP. E assim por diante. No processo, há produção de provas e condução pelo juiz, de forma que, se prejuízo houver, advirá da sentença e não da atitude de qualquer das partes. Pode-se até falar em erro judiciário, porém não em estelionato judiciário.

(...)

Processar a parte (ou o advogado), afirmando-se a ocorrência de estelionato judiciário, pode ser um meio indevido de coibir o direito de ação ou afetar a imunidade judiciária. Essas questões devem ser resolvidas no âmbito do processo, como litigância de má-fé e suas específicas penalidades. ( ob. cit. , p. 659).

No mesmo sentido, mostra-se a lição de Heleno Fragoso ( Lições de Direito Penal. Parte Especial . 11. ed. rev. e atual. por Fernando Fragoso, Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 276), verbis :

Não há estelionato judiciário ou processual (induzimento em erro do juiz para, através da sentença, obter vantagem patrimonial em prejuízo de outro litigante). É inconcebível o estelionato (ou tentativa de estelionato) na afirmação mendaz feita ao julgador ou com prova falsa a ele apresentada por litigante improbo. Compete ao juiz, na aplicação do direito, interpretar a lei, o contrato ou a sentença invocados pelo litigante em prol de sua causa, fixando-lhes o alcance e a significação. A alteração da verdade e o induzimento em erro acaso praticados poderão constituir falsidade documental ou fraude processual (art. 347 do CP). Em sentido contrário, pronunciam-se autores importantes, perante sistemas que desconhecem a incriminação autônoma da fraude processual. Cf. Schönke-Schröder, § 263, v. 7).

Não vejo, portanto, como se admitir, ainda que em tese, o crime de estelionato, porque não é típica a conduta de quem procura o Poder Judiciário, ainda que de forma descabida, haja vista a não caracterização automática, nessa conduta, do "artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento. 

Por essas razões encontradas na jurisprudência do guardião da lei federal e ainda da doutrina a ilação que se tem é de que é atípica a conduta naquilo que na linguagem forense se chama de “estelionato judiciário”.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

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