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O licenciamento ambiental municipal.

Considerações acerca da repartição de competências entre os entes federativos

Agenda 17/12/2006 às 00:00

1.Introdução e conceitos fundamentais

O licenciamento ambiental é uma forma de intervenção estatal na atividade privada, através do exercício do poder de polícia. É procedimento administrativo vinculado [01], através do qual são verificadas as condições para o desenvolvimento e a operação de empreendimentos passíveis de causarem danos ambientais.

De fato, é dever constitucional do Estado, em todas as suas esferas (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) proteger o meio-ambiente, de acordo com o inciso VI do art. 23 da Constituição Federal (CF). Trata-se, nas palavras de Hely Lopes Meirelles, de competência executiva (administrativa), comum entre todas as entidades estatais [02].

Nem podia ser diferente, visto que a Constituição Federal de 1988 foi a primeira a relacionar o meio ambiente em capítulo próprio, além de atribuir a todos, tanto particulares como o Poder Público, em todas as suas esferas, a responsabilidade pela sua defesa e preservação, ao dispor no seu art. 225 que "todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações".

Neste sentido, e mesmo antes da promulgação da CF em 1988, o licenciamento ambiental já era um dos instrumentos de que dispunha o Poder Público para fazer cumprir os princípios da Política Nacional do Meio Ambiente, de acordo com o art. 9º, inciso IV, da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981.

A instrumentalidade deste instituto é evidente: através dele, o Poder Público estabelece condições e limites para o exercício de determinadas atividades, permitindo somente aquelas que tenham impacto ambiental reduzido ou dentro de padrões admitidos. Neste caso, e considerando que praticamente qualquer atividade econômica terá algum efeito deletério sobre o meio-ambiente, apontam-se ações com vistas a mitigar os efeitos negativos do empreendimento poluidor, compatibilizando a proteção ao meio ambiente com o desenvolvimento econômico.

A importância do licenciamento ambiental frente a outros procedimentos administrativos na esfera do direito ambiental é o fato de ser a materialização mais clara do princípio da precaução. Este princípio é o principal orientador das políticas ambientais e também a base para a estruturação do próprio direito ambiental [03].

O licenciamento ambiental, como já afirmado, é forma de exteriorização ou exercício do poder de polícia. Assim, como qualquer manifestação deste poder administrativo, é controle prévio à atividade privada; é ação que se antecipa à produção do dano ambiental.


2.O Poder de Polícia Administrativa

O poder de polícia, conceito jurídico expresso no art. 78 do Código Tributário (Lei Federal nº 5.172, de 25 de outubro de 1966), visa condicionar o exercício de direitos por parte dos particulares ao bem-estar coletivo. Como bem afirmou MEIRELLES, "a cada restrição de direito individual – expressa ou implícita em norma legal – corresponde equivalente poder de polícia administrativa à Administração Pública, para torná-la efetiva e fazê-la obedecida" [04].

Além da polícia administrativa geral, que cuida genericamente da segurança, salubridade e da moralidade pública, modernamente se distinguem também os poderes de polícia administrativa especiais [05] que, de acordo com DI PIETRO, dividem-se em vários ramos: polícia de segurança, das florestas, das águas, de trânsito, sanitária, etc. [06]

Com efeito, o poder de polícia ambiental foi definido por MACHADO como "a atividade da Administração Pública que limita ou disciplina direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou a abstenção de fato em razão de interesse público concernente à saúde da população, à conservação dos ecossistemas, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício da atividade econômica ou de outras atividades dependentes de concessão, autorização/permissão ou licença do Poder Público de cujas atividades possam decorrer poluição ou agressão à natureza" [07].

É importante ressaltar que o poder de polícia é inerente a toda a Administração Pública, difundindo-se por todas as esferas administrativas, tanto da União, como dos Estados, do Distrito Federal, e também dos Municípios. No âmbito destes últimos, o poder de polícia incide sobre todos os assuntos de interesse local [08].


3.O Poder de Polícia Municipal e o Licenciamento Ambiental

Ainda que o Município detenha competência legislativa apenas para complementar ou suplementar a legislação federal e estadual, no que couber (art. 24, inciso VI, c/c art. 30, incisos I e II, todos da CF), sua competência executiva, ou administrativa, em matéria de proteção ao meio ambiente e combate a poluição, é plena, por força do art. 23, VI, da CF.

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A competência executiva, ou administrativa, delimita a atuação do Poder Público na execução dos atos e das medidas para o cumprimento das leis. Consubstancia-se no poder de fiscalizar, estabelecer regulamentos e padrões e zelar pelo seu cumprimento [09]. Quer dizer, é a competência executiva constitucional do art. 23, VI, que legitima o exercício do poder de polícia ambiental do Município.

É conseqüência natural do retrocitado dispositivo constitucional, portanto, a competência do município para realizar o licenciamento ambiental, como exercício do poder de polícia que detém sobre todos os assuntos locais, a partir da promulgação da Constituição Federal.

Não obstante, alguns pretenderam rechaçar a possibilidade do exercício deste poder, constitucionalmente assegurado, pelo Município, com base na já citada Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente. É que seu art. 10, trata do licenciamento ambiental, fala em "prévio licenciamento por órgão estadual competente, integrante do SISNAMA" (grifamos).

De fato, esta aparente omissão legislativa é facilmente explicada. É que, na época da promulgação da retrocitada lei, no já longínquo ano de 1981, a posição majoritária da doutrina e da jurisprudência era de que o Município não se constituía como entidade estatal integrante da federação e, como tal, não detinha competência para proceder ao licenciamento ambiental, que era realizada pelo órgão estadual, na forma prevista pelo art. 10 da Lei nº 6.938/81.

Entretanto, com o advento da Constituição Federal de 1988, esta situação ficou esclarecida de uma vez por todas. Nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello: "A Constituição de 1988 modifica profundamente a posição dos Municípios na Federação, porque os considera componentes da estrutura federativa. (...) Nos termos, pois, da Constituição, o Município brasileiro é entidade estatal integrante da Federação, como entidade político-administativa, dotada de autonomia política, administrativa e financeira." [10].

A partir da promulgação da CF/1988, apenas aqueles diplomas legais pré-existentes que se conformavam com as normas contidas no diploma constitucional foram recepcionados pela nova ordem jurídica. Quer dizer, somente as normas compatíveis com a CF foram por ela recepcionadas, sendo consideradas válidas e surtindo seus devidos efeitos; todas as demais são consideradas inconstitucionais e, portanto, ficaram eivadas de eficácia prática ou jurídica.

Entendemos, assim, que a Lei nº 6.938/81 não foi totalmente recepcionada pelo ordenamento jurídico vigente desde a promulgação da Constituição Federal.

Isto porque, como já expusemos, compete ao Município legislar sobre "assuntos de interesse local", de acordo com o art. 30, inciso I, e também proteger o meio ambiente, juntamente com as demais esferas governamentais, segundo o art. 23, inciso VI e art. 225, todos da CF/1988.

Ora, é princípio do direito "in eo quod plus est semper inest et minus" [11], ou seja, aquele que pode o mais, pode o menos. Se é facultado ao Município legislar sobre assuntos locais, pode também exercer a fiscalização naquele âmbito.

No mesmo sentido é o entendimento do mestre ambientalista Edis Milaré:

"A seguir, a Constituição de 1988, recepcionando a Lei nº 6.938/81, deixou claro que os diversos entes da Federação devem partilhar as responsabilidades sobre a condução das questões ambientais, tanto no que tange à competência legislativa, quanto no que diz respeito à competência dita implementadora ou de execução.

Assim, integrando o licenciamento o âmbito da competência de implementação, os três níveis de governo estão habilitados a licenciar empreendimentos com impactos ambientais, cabendo, portanto, a cada um dos entes integrantes do Sistema Nacional de Meio Ambiente promover a adequação de sua estrutura administrativa com o objetivo de cumprir essa função, que decorre, insista-se, diretamente da Constituição." [12]

Neste contexto, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) editou a Resolução nº 237, em 19 de dezembro de 1997, publicada no D.O.U. de 22 de dezembro, que em seu art. 6º explicita o preceito constitucional supracitado, ao estabelecer que "compete ao órgão ambiental municipal, ouvidos os órgãos competentes da União, dos Estados e do Distrito Federal, quando couber, o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades de impacto ambiental local e daquelas que lhe forem delegadas pelo Estado por instrumento legal ou convênio".

Agiu o CONAMA em perfeita consonância com suas atribuições, ao aclarar a questão da competência municipal para o licenciamento ambiental. Porém, ressalte-se que a Resolução nº 237/1997 nada cria de novo, meramente explicitando regras de competência que advieram da Constituição Federal de 1988, ainda que não fossem aplicadas em sua plenitude.

Com o advento da Resolução nº 237/1997, entretanto, surgiram críticas no sentido de que um mero ato administrativo do CONAMA não seria o instrumento adequado para dar ao Município tal competência, por conflitar, supostamente, com a Lei nº 6.938/81. E, neste caso, alegam os defensores desta tese, aplicar-se-ia a regra geral de que o diploma normativo superior (lei) derrogaria o diploma normativo inferior (resolução).

Ocorre que esta interpretação, conforme já exposto, não é a mais correta, e enormes prejuízos traz à nação, por gerar uma séria insegurança jurídica, especialmente porque, em muitos casos, os órgãos ambientais estaduais nela buscam guarida, efetivamente impedindo o licenciamento ambiental por parte dos municípios, num processo de deslegitimação dos órgãos ambientais locais. Para os empreendedores, a situação muitas vezes é crítica, visto que pela falta de coordenação e entendimento entre os órgãos ambientais municipais, estaduais e federais, se vêem obrigados a buscar o licenciamento ambiental concomitantemente em todos estes órgãos. É evidente que a excessiva burocratização que se lhes impõe tende a dificultar a viabilização de tais projetos, o que leva ao desaquecimento da economia, à informalidade e à ilegalidade.

Em alguns casos, os órgãos estaduais vêm realizando convênios com os órgãos municipais como forma de legitimar sua competência, o que é elogiável. Entretanto, sequer isto seria necessário, porque sua competência para a matéria decorre diretamente de preceito constitucional.

De fato, a jurisprudência acerca do tema, apesar de parca, já se inclina neste sentido, conforme se verifica pela seguinte decisão unânime do Tribunal Regional Federal da 4ª Região:

"Não se vislumbra inconstitucionalidade impingida na Resolução 237 do CONAMA, tendo-se em vista que foi expedida em harmonia com a Constituição da República e com a legislação federal, sendo, portanto, meio legislativo idôneo para esmiuçar e regulamentar o comando legal que, por sua natureza geral, não se ocupa de questões específicas e particulares." [13]


4.Conclusões e considerações finais

Por todo o exposto, entendemos que, por força do disposto na Constituição Federal de 1988, que recepcionou a Lei nº 6.938/81, a Resolução nº 237 do CONAMA não tem qualquer eiva de constitucionalidade, meramente explicitando as regras preceituadas pela carta máxima.

Assim, em que pese entendimentos em contrário, tem o Município plena legitimidade para realizar o licenciamento ambiental em relação àquelas atividades que tenham impacto local, desde que conte com a estrutura administrativa adequada, inclusive com a implementação do Conselho Municipal do Meio Ambiente e corpo técnico capacitado, além da existência de legislação municipal pertinente que legitime sua atuação. Neste sentido, o Estado e a União têm competência plena para licenciar apenas aqueles empreendimentos cujo impacto ultrapasse o âmbito local ou regional, respectivamente, e competência suplementar, no caso de não existir a estrutura municipal adequada, tanto legal e administrativa como também operacionalmente, para promover o licenciamento ambiental, nos casos de empreendimentos com impacto local.

Ressalte-se que é o Município a instância mais adequada, na vastíssima maioria dos casos, para realizar o licenciamento ambiental, visto que todo impacto ambiental é, antes de tudo, local, atingindo outras instâncias, como a regional ou nacional, apenas em casos especiais.

O poder de polícia ambiental por parte do Município nada mais é do que a materialização do corolário ambientalista "pensar globalmente, agir localmente" [14]. Cabe agora a cada um dos Municípios brasileiros colocá-lo em prática, adequando sua estrutura de forma a garantir um meio-ambiente equilibrado para a atual e as futuras gerações, até porque disso depende a existência da própria raça humana.


Notas

01 Não obstante parte minoritária da doutrina defenda que o licenciamento ambiental é ato administrativo discricionário, entendemos que se trata de ato administrativo vinculado. É que o Poder Público não pode negar a concessão da licença ambiental quando o requerente satisfaz todos os requisitos previstos em lei.

02 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 409

03 COLOMBO, Silvana Brendler. O principio da precaução no Direito Ambiental. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 488, 7 nov. 2004. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/5879. Acesso em: 19 nov. 2006.

04 MEIRELLES, Hely Lopes. Op. cit., p. 336.

05 MEIRELLES, Hely Lopes. Op. cit., p. 334-335.

06 DI PIETRO, Maria Zanella. Direito Administrativo. 6ª ed. São Paulo: Atlas, 1996. p. 92-94.

07 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. p. 253.

08 MEIRELLES, Hely Lopes. Loc. cit.

09 VIANA, Eder Cristiano et al. Análise técnico-jurídica do licenciamento ambiental e sua interface com a certificação ambiental. Rev. Árvore., Viçosa, v. 27, n. 4, 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext& pid=S0100-67622003000400019&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 19 Nov 2006.

10 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito constitucional Positivo. 16ª ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 620-621.

11 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 15ª ed. Rio de Janiro: Forense, 1995, p. 245.

12 MIRALÉ, Edis. Direito do Ambiente – doutrina – jurisprudência – glossário. 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 492.

13 Apelação Cível nº 2002.72.08.003119-8, de Santa Catarina, julgado pela Quarta Turma do TRF 4ª Região aos 27/07/2005, por unanimidade. Relator: Valdemar Capeletti.

14 "Penser globalement, agir localement" é frase atribuída ao escritor e ganhador do prêmio Pulitzer, agrônomo, biólogo e ambientalista franco-americano, René Jules Dubos (1901-1982), por ocasião de sua atuação como conselheiro na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio-Ambiente, em 1972. Entretanto, a organização Friends of the Earth, em manifestação à imprensa no ano de 2000, afirma que a frase "Think globally, act locally" foi cunhada por seu fundador, David Brower, e adotada como slogan da organização (<http://www.foe.co.uk/resource/press_releases/20001107132336.html>).

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DALLAGNOL, Paulo Renato. O licenciamento ambiental municipal.: Considerações acerca da repartição de competências entre os entes federativos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1264, 17 dez. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9292. Acesso em: 22 dez. 2024.

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