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O princípio da solidariedade

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Agenda 25/12/2006 às 00:00

Em franco debate acadêmico a relevância da atuação humana pautada na solidariedade como forma garantista da vida em coletividade no mundo moderno e meio de concretização da felicidade através de ações em prol dos menos favorecidos.

Sumário: 1. Do valor solidariedade. 1.1. Introdução. 1.2. Noções históricas sobre solidariedade. 1.2.1. Na Antigüidade Clássica. 1.2.1.1. A teoria individualista de Protágoras. 1.2.1.2. As teorias generalistas de Platão e Aristóteles. 1.2.2. Na Idade Média, Moderna e Contemporânea. 1.2.2.1. Do Estado liberal como fomentador de graves injustiças sociais. 1.2.2.2. Das vozes isoladas pela dignidade da natureza humana. 1.2.2.3. Do Período Pós-Revolução Industrial. 1.2.2.4. Dos conceitos sociológicos de solidariedade mecânica e orgânica de Durkheim. 1.3. Elementos sociológicos formadores do conceito de solidariedade. 1.3.1. Do elemento extrínseco: A vida em sociedade como necessidade humana. 1.3.2. Dos elementos intrínsecos. 1.3.2.1. Do respeito a terceiros e do senso de justiça de Platão. 1.3.2.2. Do amor-próprio de Aristóteles. 1.3.2.3. Da semelhança entre as criaturas humanas segundo Hume. 1.4. Dos conceitos possíveis de solidariedade. 2. Do princípio da solidariedade. 2.1. Conceito de princípio. 2.2. Princípios jurídicos fundamentais. 2.3. Princípio e norma jurídica. 2.3.1. Normas jurídicas. 2.3.2. Princípios jurídicos. 2.3.3. Funções dos princípios jurídicos. 2.3.4. Relação entre princípios e normas jurídicas. 2.4. Da natureza jurídica do valor solidariedade. 2.5. Da aplicação do princípio da solidariedade. 2.5.1. No direito previdenciário. 2.5.2. No direito tributário. 2.5.3. No direito administrativo. 3. Conclusão.


1. Do valor solidariedade

1.1. Introdução

Em franco debate acadêmico a relevância da atuação humana pautada na solidariedade como forma garantista da vida em coletividade no mundo moderno e meio de concretização da felicidade através de ações em prol dos menos favorecidos. Historicamente, pode-se afirmar que dito conceito assumiu relevância jurídica ainda no séc. XVIII, quando da fundamentação e conformação do conceito de Estado formulado por Jean Jacques Rousseau em seu Contrato Social. Desde então, o valor solidariedade, que originariamente pertencia ao campo da moralidade e da ética, passou a freqüentar com destaque crescente os debates jurídicos das sociedades ocidentais, notadamente a partir da segunda metade do século XX em razão da "reaproximação entre ética e direito"1.

Assim, este ensaio tem por objeto o exame da solidariedade sob a ótica jurídica, buscando identificar suas relações com os direitos fundamentais consagrados pela Constituição Federal de 1988. Cumpre observar que para o presente estudo atinja seu propósito, será imprescindível realizar breve incursão teórica, de cunho jurídico-principiológico, sobre o valor solidariedade, a fim de se alcançar os necessários subsídios à formulação de resposta à seguinte questão, por ser imprescindível ao aprofundamento do tema na seara jurídica: a solidariedade, valor de indiscutível carga ética, portanto, por excelência afeito aos campos da filosofia e da sociologia, transforma-se, quando analisado sob viés jurídico, em norma integrante da ordem jurídica pátria da espécie "princípio"?

A resposta à dita indagação, se afirmativa, constituir-se-á em solo fértil para o aprofundamento em caráter científico dos estudos sobre solidariedade na seara jurídica. Afinal, como bem pontuado por Pedro Buck Avelino, "não se pode estudar este princípio sem saber a sua coloração ou seu preciso conteúdo"2.

Na eventual conclusão em sentido negativo, também mostrar-se-á relevante na medida em que lançará argumentos fundados no exame jurídico ao debate instalado sobre a solidariedade, os quais auxiliarão indubitavelmente a fixação do real alcance do Direito nos assuntos que gravitam em torno da solidariedade.

Assim, feitas estas considerações, passa-se ao exame principiológico do valor ético solidariedade.

1.2. Noções históricas sobre a solidariedade

1.2.1. Na Antigüidade Clássica
1.2.1.1. A teoria individualista de Protágoras

A doutrina3 aponta a Antigüidade Clássica como o momento em que são encontrados os primeiros escritos acerca do valor solidariedade. E eles se deram como forma de se contrapor à teoria individualista do sofista Protágoras que afirmava:

O homem é medida de todas as coisas, das que são o que são, e das que não são o que não são.4

A famosa frase protagórica traduziu com precisão o pensamento de seu autor, indicando que o homem, ser pensante, bastava por si só, constituindo o viver em sociedade, não uma necessidade, mas uma simplória opção humana.

É nas lições de Sócrates, Platão e Aristóteles que se localizam argumentos filosóficos contrários ao individualismo. Nesse desiderato, Pedro Buck Avelino chama a atenção para o fato de que as maléficas conseqüências do individualismo são claramente expostas "no diálogo Górgias, de Platão, em que Callicles, político ateniense, em conversa travada com Sócrates, expressa o seu "peculiar" ponto de vista, de que poder/força é direito: ‘Minha crença é que o direito natural consiste em que o homem mais capaz e mais inteligente comande os seus inferiores e obtenha a maior parte dos bens’ (Trad. livre)." 5

O político ateniense continua seu raciocínio individualista aduzindo que:

Convenções [leis escritas], ao contrário, são feitas, na minha opinião, pelos mais fracos, os quais formam a maioria da humanidade. Eles as estabelecem e dividem louvor e culpa com um olho neles mesmos e em seus próprios interesses, e numa empreitada com vistas a amedrontar aqueles que são mais fortes e capazes de obter as melhores partes dizem que ambição é baixa e errada, e que fazer mal consiste em tentar obter vantagem sobre outros; sendo eles mesmos inferiores, eles ficam contentes, sem sombra de dúvida, se conseguem se postar em pé de igualdade com os seus [naturalmente] superiores.

Isto explica o porquê de, segundo uma convenção [leis escritas], obter vantagem sobre a maioria é dito como errado e baixo, e os homens o chamam de crime; a natureza, ao contrário, ela mesma demonstra que é certo que os melhores homens prevaleçam sobre os piores e mais fracos. A verdade desta constatação pode ser vista numa variedade de exemplos, presentes tanto no mundo animal e nas complexas comunidades e raças humanas; direito consiste no superior comandar o inferior e ter a melhor parte. (trad.livre)6

Assim, pela doutrina individualista, o direito natural consistiria em construção normativa onde o modelo natural de subjugação do mais fraco pelo mais forte se fizesse presente nas relações humanas.

1.2.1.2. As teorias generalistas de Platão e Aristóteles

Contudo, a superação desse conceito equivocado de direito vem na utópica obra A República, quando Platão, afirmando sua predisposição para a generalidade em detrimento da individualidade, reproduz diálogo travado entre Sócrates e Glauco:

Sócrates: Poderás dizer-me se nas outras repúblicas os magistrados tratam a seus companheiros como amigos, a outros como estranhos?

Glauco: Nada de mais freqüente.

Sócrates: Assim, pensam e dizem que os interesses de uns lhes importam e de outros não?

Glauco: Certamente.

Sócrates: Entre nossos guardiões, porém, haverá um sequer capaz de dizer ou pensar que algum dos que velam, como ele, pelo bem-estar público lhe é indiferente ou estranho?

Glauco: De nenhum modo. Porque cada qual verá nos outros um irmão ou irmã, pai ou mãe, filho ou filha, algum propínquo, em suma, em linha ascendente ou descendente.

Sócrates: Muito bem; porém, há mais coisas a responder-me. Contentar-te-ás em ordenar que só da boca se tratem como parentes? Ou exigirás também que os atos correspondam às palavras e que os cidadãos tenham para com os pais todo o respeito e atenções e submissão pela lei prescrita aos filhos em relação aos progenitores? Não lhes dirá que, se faltarem a estes deveres, pecam contra a justiça e piedade e incorrem, por isso mesmo, na ira dos deuses e dos homens? Farão, acaso, todos os cidadãos ressoar aos ouvidos dos filhos outras máximas diferentes destas com referência à conduta que devem ter para com aqueles a quem se lhes faça considerar como pais ou parentes?

Glauco: Sem dúvida que não: seria irrisório que tivessem constantemente na boca, os nomes que exprimem parentesco sem cumprir os respectivos deveres.

Sócrates: Assim, em nossa república, mais do que em todas as outras, como a pouco dizíamos, quando ocorrer algo de bom ou de mau a um cidadão, todos dirão a um tempo: meus negócios vão bem ou meus negócios vão mal.

Glauco: É verdade.

Sócrates: Não acrescentamos que, em virtude desta persuasão e deste modo de falar, haverá entre eles comunhão de alegrias e dores?

Glauco: E com razão o dissemos.

Sócrates: Nossos cidadãos participarão, pois, em comum dos interesses de cada indivíduo particular, interesses que considerarão como seus próprios, e, em virtude desta união, todos participarão das mesmas alegrias e das mesmas dores.7

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Percebe-se que Platão indicava o caminho da solidariedade como forma de assegurar uma convivência social justa e harmoniosa. Seus pensamentos de generalidade são influenciados pelas tendências de Esparta8 e Creta, cidades-estado que defendiam a ideologia da generalidade, ao contrário de Atenas que consagrava a individualidade9.

Na mesma senda generalista, Aristóteles contrapôs-se ao individualismo, ponderando, em A Política, que "o homem é um animal cívico, mais social do que as abelhas e outros animais que vivem juntos" 10 . Segundo a teoria aristotélica, o Estado seria o primeiro objeto a que se propôs a natureza, uma vez que o todo existe necessariamente antes da parte.

Afirma Aristóteles:

As sociedades domésticas e os indivíduos não são senão as partes integrantes da cidade, todas subordinadas ao corpo inteiro, todas distintas por seus poderes e funções, e todas inúteis quando desarticuladas, semelhantes às mãos e aos pés que, uma vez separados do corpo, só conservam o nome e a aparência, sem a realidade, como uma mão de pedra. O mesmo ocorre com os membros da cidade: nenhum pode bastar-se a si mesmo. Aquele que não precisa dos outros homens, ou não pode resolver-se a ficar com eles, ou é um deus, ou um bruto. Assim, a inclinação natural leva os homens a este gênero de sociedade. (grifos aqui inseridos)11

Cumpre ressaltar que Aristóteles distingüe-se de Platão em seus fundamentos contra o individualismo. Este preza o todo, sem qualquer motivação diversa a não ser considerá-lo como uma necessidade básica, natural. Aquele, entretanto, não se descura do indivíduo, enxergando na vida em sociedade algo mais do que mera imposição natural. Aristóteles agrega uma finalidade à vida em coletividade ao enxergar na convivência coletiva uma forma de cada integrante do grupo social poder viver melhor.

1.2.2. Na Idade Média, Moderna e Contemporânea

Com a chegada da Idade Média no século IV, em 396 d.C.12, sobreveio um longo período de distanciamento dos pensamentos filosóficos centrados na existência do homem. Nesse interregno, que perduraria cerca de dez séculos, o poder do senhor feudal era absoluto na relação servo-senhor, na qual o único direito do servo era o de servir ao seu senhor. Esta realidade histórica agregada à intensa influência da Igreja no poder temporal, fez com que a escassa filosofia da época adotasse forte matiz dogmático-religioso. É a instalação das idéias teocentristas em prejuízo dos valores individuais, implicando pouco desenvolvimento de idéias em torno da solidariedade.

Como resultado da ascensão da burguesia ao poder e conseqüente influência de seu modo de pensar o mundo, dissociado do teocentrismo, o exaurimento do modelo feudal representou o reencontro do homem com a filosofia e com a ciência, desencadeando o surgimento de novos movimentos como o Renascimento13 e o Iluminismo14. No primeiro período, os pensadores, cientistas e artistas redescobrem a beleza do pensamento grego focada no Antropocentrismo, iniciando um período de afastamento da Igreja que iria se consolidar no Iluminismo. Já neste período, denominado também de Século das Luzes, o homem elege a razão como ferramenta para se chegar à verdade, passando a se utilizar do método científico para solucionar seus problemas.

Retorna-se, de um certo modo, ao conceito individualista protagórico no qual o homem é a medida do mundo, sendo pertinente reproduzir a afirmação de Leonardo da Vinci:

O homem é o modelo do mundo.15

Com Hobbes (1588/1679), Locke (1632/1704) e Rousseau (1712/1778) surge a teoria contratualista, na qual o Estado é considerado mera ficção humana viabilizadora da vida em coletividade. É de John Locke o pensamento de que:

Sendo o homem, conforme já foi dito, por natureza, livre, igual e independente, ninguém poderá ter tais características desrespeitadas e ser submetido ao poder político de outrem sem que concorde com isso, consentimento este que será realizado mediante a concordância com outros homens de se unirem em uma comunidade, para conforto, segurança e paz mútua, num gozo seguro de suas propriedades, e uma segurança maior contra aqueles que não disponham desta mesma propriedade. (trad. livre)16

De se perceber que Locke apresenta uma visão diferente da de Aristóteles quanto ao conceito de Estado. Enquanto este o enxergava como uma criação natural, anterior ao próprio homem, aquele filósofo moderno o entendia como mera ficção humana viabilizadora a vida em coletividade.

1.2.2.1. Do Estado liberal como fomentador de graves injustiças sociais

Surge o Estado liberal-capitalista, que a despeito de ter proporcionado inegáveis benefícios a humanidade, também se revelou fonte criadora de egoísmo e miséria humana inimagináveis.

Pontua Dalmo de Abreu Dallari:

O Estado liberal, com um mínimo de interferência na vida social, trouxe, de início, alguns inegáveis benefícios: houve um progresso econômico acentuado, criando-se as condições para a revolução industrial: o indivíduo foi valorizado, despertando-se a consciência para a importância da liberdade humana; desenvolveram-se as técnicas de poder, surgindo e impondo-se a idéia do poder legal em lugar do poder pessoal. (grifos do original)17

Assim, a partir do Séc. XVIII, face ao advento da Revolução Industrial, a Europa e os Estados Unidos passam a sofrer transformações sociais importantes. A classe dos capitalistas, formada por investidores do ramo industrial, que se encontrava em franca expansão, ao mesmo tempo em que assegurava sua hegemonia econômica, passa também a influenciar as relações do poder político. Disso resultou a exacerbada atividade exploratória da força de trabalho operária pelos capitalistas, implicando, como já referido, o aumento da miséria humana em níveis inimagináveis. Observa-se fenômeno de concentração da riqueza nos mais "hábeis, mais audaciosos ou menos escrupulosos"18. Ao lado disso, a concepção individualista de liberdade impediu o Estado de proteger os menos afortunados, motivo pelo qual o crescimento da injustiça social nesse período foi uma constante, pois ao assegurar precipuamente o direito de ser livre, paradoxalmente, o Estado negava tal poder à grande maioria das pessoas.

É de Dallari a precisa assertiva de que:

Na verdade, sob o pretexto de valorização do indivíduo e proteção da liberdade, o que se assegurou foi uma situação de privilégio para os que eram economicamente fortes. E, como acontece sempre que os valores econômicos são colocados acima de todos os demais, homens medíocres, sem nenhuma formação humanística e apenas preocupados com o rápido aumento de suas riquezas, passaram a ter o domínio da Sociedade.19

1.2.2.2. Das vozes isoladas pela dignidade da natureza humana

Felizmente, esta ideologia predatória, ao longo da história da humanidade, sempre foi alvo de indignações filosóficas de pensadores que, a exemplo de Maquiavel, Shakespeare e Bacon, souberam identificar outros aspectos menos nobres da natureza humana em ação como a crueldade, misantropia, vilania e dissimulação, desenvolvendo alguns, raciocínios pela valorização das ações positivas do ser humano. Nessa senda, cabe citar o inglês Thomas More (1478-1535), que em sua obra A Utopia escrita em 1513 em latim20, consignou que:

Ela [a natureza] quer que o bem-estar seja igualmente dividido entre todos os membros do gênero humano, e, desse modo, adverte-nos que não devemos perseguir os nossos interesses à custa da infelicidade alheia.21

Dessas vozes isoladas, surgiram os estudos sociológicos da vida em coletividade postulando a importância e necessidade da faceta social do homem.

No Século XVIII, o filósofo escocês David Hume (1711/1776), na sua principal obra intitulada Tratado da Natureza Humana (1739-1740), à semelhança de Aristóteles, afirmou que:

Todas as criaturas humanas estão relacionadas conosco pela semelhança. Portanto, suas existências, seus interesses, suas paixões, suas dores e prazeres devem nos tocar vivamente, produzindo em nós uma emoção similar à original – pois uma idéia vivida se converte facilmente em uma impressão. Se isso é verdade em geral, quanto mais no que diz respeito à aflição e à tristeza, que exercem uma influência mais forte e duradoura que qualquer prazer ou satisfação.22

Muito embora o filósofo escocês não tenha expressamente referido o vocábulo solidariedade em seu escrito, é possível relacionar sua manifestação acima com a idéia atual de solidariedade, que na lição de Luis Renato Ferreira da Silva, mencionando entendimento de Christophe Jamin, pode ser vinculada "à noção de cooperação"23 entre as pessoas.

1.2.2.3. Período Pós-Revolução Industrial

A partir das nefastas conseqüências da exploração do mais forte pelo mais fraco decorrentes da Revolução Industrial, surgiram teorias socialistas como forma de contraposição às injustiças sociais e de assecuração de melhores condições de trabalho à classe operária. Observa-se, nesse período, uma produção intelectual intensa no sentido de dar suporte filosófico à irresignação dos trabalhadores quanto à exploração que sofriam em suas atividades profissionais.

Surge a constatação de que buscar defender interesses de forma associada, em grupo, é uma eficaz estratégia no atingimento dos objetivos individuais. Os sindicatos e outras formas associativistas entram em cena e desempenham relevante papel no restabelecimento da justiça social, corrigindo graves distorções proporcionadas pelo Estado liberal e pela Revolução Industrial.

A partir desse período, empiricamente, o homem comum descobre ser mais vantajoso viver em coletividade, pois a sinergia do somatório das vontades individuais contra as forças que lhe oprimem e exploram, afigura-se como instrumento poderoso em prol dos interesses do indivíduo. Sobressai dessa experiência histórica uma conclusão importante: enquanto o individualismo enfraquece o homem, a vida em sociedade o fortalece. Esta conclusão será tão intensamente defendida que mais tarde, Léon Duguit, irá postular que a sociedade humana é um fato primário e natural.

1.2.2.4. Dos conceitos sociológicos de solidariedade mecânica e orgânica de Durkheim

É dessa época, o importante estudo sociológico realizado pelo francês Émile Durkheim (1858/1917) intitulado A Divisão do Trabalho. Na aludida obra, autor defendeu a tese de que a sociedade era mantida coesa por duas forças de unidade. Uma, relativa aos pontos de vista semelhantes compartilhados por pessoas, como no caso dos valores e das crenças religiosas, que ele denominou de solidariedade mecânica. A outra, representada pela divisão do trabalho em profissões especializadas, ele chamou de solidariedade orgânica. O sociólogo francês acreditava que a divisão do trabalho pela especialização de tarefas servia para unir o grupo social em razão da interdependência criada entre as diferentes profissões.

Durkheim, à semelhança de Platão e Aristóteles, também pretendeu demonstrar que o "indivíduo há de se sacrificar, em certa parcela de sua liberalidade, em nome do todo. Há de agir em prol do Estado, da sociedade, do todo, pois é da sociedade que ele, homem, provém, e não o inverso"24.

Ainda, solidarizando-se à teoria de Durkheim, o jurista francês Léon Duguit (1859/1928), em seu Manual de Direito Constitucional assevera que "[o] homem natural, ilhado, nascido em condições de absoluta liberdade e independência quanto aos demais homens, e possuidor de direitos fundados nesta mesma liberdade, nesta mesma independência, é uma abstração sem realidade alguma (trad. livre)" 25 .

Adiante, na mesma obra, o jurista francês acrescenta:

Nosso ponto de partida é o fato incontestável de que o homem vive em sociedade, sempre viveu em sociedade e não pode viver mais que não em sociedade com seus semelhantes, e que a sociedade humana é um fato primário e natural, e em maneira alguma produto ou resultado da vontade humana. Todo homem, forma, pois, parte de um grupo humano; o tem formado e formará sempre, por sua própria natureza. (trad. livre)26

Essa incursão histórica serviu para demonstrar que a humanidade, desde a Antigüidade, sempre oscilou entre o individualismo e a necessidade de viver em sociedade. Note-se que em momento algum dessa jornada no tempo, verifica-se a utilização, pelos filósofos e pensadores, da expressão solidariedade. Não. Todavia, ela foi suficiente para demonstrar a existência de uma constante tensão entre indivíduo-sociedade, fazendo oscilar o pensamento humano entre os dois pólos, ora acreditando na suprema relevância do individualismo como pressuposto de liberdade e conseqüente satisfação pessoal, ora depositando seus melhores créditos na vida em sociedade por acreditar na sinergia decorrente da adesão da vontade individual à vontade do grupo social.

Ao que tudo indica, a solução dessa indecisão humana quanto à eleição do melhor critério para conduzir o ser humano a uma vida feliz, parece ter surgido, sobretudo, de aspectos concretos ligados à economia e não de outras ciências, como seria natural se conceber, como a filosofia ou sociologia.

1.3. Elementos sociológicos formadores do conceito de solidariedade

Concluída a necessária retrospectiva histórica, este estudo ainda carece de um conceito para o valor solidariedade. Assim, desenvolver-se-á raciocínio em busca dos elementos que compõem dito valor no meio social. Indubitavelmente, como bem pontuado por Pedro Buck Avelino, o valor solidariedade apresenta-se diametralmente oposto aos defendidos pela teoria individualista27. É até intuitivo concluir que a solidariedade suplanta os conceitos individualistas porque considera o semelhante como dado fundamental na solução dos problemas sociais. Ademais, o escorço histórico realizado permite concluir que a própria experiência humana faz o homem naturalmente se afastar do individualismo. Mas existem outros componentes, intrínsecos e extrínsecos ao indivíduo, do conceito solidariedade que merecem ser estudados como perceber-se-á em seguida e que serão buscados nas vertentes contrárias ao individualismo.

1.3.1. Do elemento extrínseco: A vida em sociedade como necessidade humana

Inegável, como já se afirmou, que a Revolução Industrial trouxe inúmeros benefícios à humanidade. Mas também é verdade que o crescimento econômico que ela proporcionou, representou melhoria de condições de vida a uma minoria pertencente ao topo da pirâmide social, face à concentração excessiva de riqueza nas classes financista e industrial em detrimento das demais.

Assim, a constatação, pelo homem explorado, de que toda sua força de trabalho, que representava sua única esperança de dias melhores, estava criando muita riqueza sim, mas que ela não importava em efetiva melhoria da sua condição de vida e de sua família, foi a motivação principal da busca da felicidade através da união com seus semelhantes. A vida em sociedade passou a ser vista como uma necessidade humana que perdura até os dias de hoje. Denomina-se elemento extrínseco porque é causa externa à vontade do indivíduo.

1.3.2. Dos elementos intrínsecos

Nesse diapasão, convém de início destacar que a denominação utilizada para classificar os elementos que serão estudados em seguida, decorre do relevante fato de que todos originam-se dentro do homem, mais especificamente, decorrem de sua vontade não sendo errado afirmar tratar-se de predisposição do espírito humano para agir em prol de seu semelhante.

1.3.2.1. Do respeito a terceiros e do senso de justiça de Platão

Platão refere em seu diálogo O Protágoras 28 o mito de Epimetheus e Prometheus, acerca da criação do homem. Na dicção de Pedro Buck Avelino:

Neste mito, Epimetheus fica responsável por "equipar" todas as criaturas criadas por Zeus com um número limitado de habilidades disponíveis. Em sua tarefa, Epimetheus, contudo, olvida-se do homem, esgotando as habilidades disponibilizadas por Zeus nos animais. Os homens, conseqüentemente, tornam-se presas fáceis. Prometheus, ciente do erro, busca corrigi-lo, roubando o fogo de Hephaestus e a arte de Athena, os quais são concedidos ao homem. Com a habilidade da arte, os homens tornam-se capazes de falar e de dar nomes aos objetos. Tais habilidades, porém não são suficientes para salvá-los.

Como recurso final, os homens reúnem-se em cidades. Contudo, por não possuírem habilidade política, passam a se ferir mutuamente, o que os afasta um dos outros.

"Zeus, então, temendo a total destruição de nossa raça, envia Hermes para ensinar aos homens as qualidades de respeitar terceiros e um senso de justiça, de forma a trazer ordem às cidades e criar um vínculo de amizade e união." (trad. livre)29

Vale destacar desse mito, que o conteúdo da habilidade política concedida por Zeus aos homens traz dois elementos intrínsecos importantes à formulação de um conceito possível de solidariedade: respeito pelo terceiro e um senso de justiça.

De fato, para que a vida coletiva possa vingar, é necessário que os integrantes do grupo social tenham fortemente arraigados em si a noção de que as relações sociais somente serão satisfatórias se o homem respeitar o outro com quem ele se relaciona. Respeitar para ser respeitado. E na visão de Platão, em A República, esse respeito seria o parental fora dos limites familiares30.

Também é fundamental o senso de justiça. A relação social harmoniosa depende do pressuposto intrínseco ao homem da compreensão do justo. E que todos se submetam incondicionalmente ao mesmo critério de justiça eleito pelo grupo social. Nessa medida, vale citar pensamento do filósofo norte-americano John Rawls no sentido de que "uma sociedade é uma associação mais ou menos auto-suficiente de pessoas que em suas relações mútuas reconhecem certas regras de conduta como obrigatórias e que, na maioria das vezes, agem de acordo com elas" 31 .

Nota-se que o alcance dos dois elementos intrínsecos acima examinados somente se faz pela educação do ser humano pautada em sólidos fundamentos filosóficos. Um sistema educacional desqualificado e superficial que não atenda a tais exigências da vida em sociedade leva o grupo social ao retorno ao individualismo inescrupuloso e predatório que somente trará vantagens aos mais preparados e hábeis.

1.3.2.3. Do amor-próprio de Aristóteles

Aristóteles já afirmara que amar alguém é amar-se a si mesmo e que o sentido o amor-próprio do filósofo grego "depende da satisfação dos amigos, na medida em que o amigo é um outro eu" 32 porque, segundo o pensador grego, "todos os sentimentos de amizade por terceiros são extensões dos sentimentos que o homem nutre por si mesmo (trad. livre) 33 .

1.3.2.4. Da semelhança entre as criaturas humanas segundo Hume

Nessa linha, David Hume, traz a explicação do porquê há satisfação em ajudar ao outro:

Temos uma idéia viva de tudo que tem relação conosco. Todas as criaturas humanas estão relacionadas conosco pela semelhança. Portanto, suas existências, seus interesses, suas paixões, suas dores e prazeres devem nos tocar vivamente, produzindo em nós uma emoção similar à original – pois uma idéia vivida se converte facilmente em uma impressão. Se isso é verdade em geral, quanto mais no que diz respeito à aflição e à tristeza, que exercem uma influência mais forte e duradoura que qualquer prazer ou satisfação.34

Nessa transcrição de Hume, vislumbra-se uma fator importante para a compreensão do fenômeno da solidariedade. O ser humano se preocupa com o outro porque enxerga no outro uma semelhança consigo mesmo. Mais adiante, o filósofo escocês vai dizer que esta identificação do indivíduo com o outro e de um natural impulso de benevolência nasce no sentimento de simpatia, entendida por Anthony Quinton, como "a inclinação natural de agradarmo-nos com a felicidade dos outros e sentirmos desconforto com seu sofrimento" 35.

1.4. Dos conceitos possíveis de solidariedade

Tomando em conta todas essas premissas acerca dos elementos formadores do valor solidariedade, Avelino conceituou solidariedade como:

Atuar humano, de origem no sentimento de semelhança, cuja finalidade objetiva é possibilitar a vida em sociedade, mediante respeito aos terceiros, tratando-os como se familiares o fossem; e cuja finalidade subjetiva é se auto-realizar, por meio da ajuda ao próximo.36

Luis Renato Ferreira da Silva37 relembra a existência das duas espécies de solidariedade (mecânica e orgânica), preconizadas na doutrina solidarista de Émile Durkheim e já examinadas neste ensaio, para considerar que, nas relações contratuais atuais, "dado o estado avançado de divisão do trabalho social nas sociedades modernas, só se pode estar a pensar na idéia de solidariedade orgânica" 38 , ou seja, aquela que mantém a sociedade coesa em função da dependência funcional de todos os órgãos (aqui entendidos como partes) do corpo social.

Em estudo voltado para área do direito previdenciário, Wladimir Novaes Martinez afirma que:

A solidariedade social é projeção do amor individual, exercitado entre parentes e estendido ao grupo social. O instinto animal de preservação da espécie, sofisticado e desenvolvido no seio da família, encontra na organização social ambas as possibilidades de manifestação.39

Oferecidos alguns conceitos do valor solidariedade, resta investigar se tal valor pode ser considerado um princípio em nossa ordem jurídica pátria. Este, portanto, o objetivo da segunda parte deste trabalho.

Com o intuito de facilitar o exame jurídico da solidariedade, realizar-se-á abordagem pautada no método dedutivo, partindo-se do exame de conceitos gerais para abordar progressivamente idéias e noções cada vez mais particularizadas até chegar-se à apropriação dos elementos teóricos necessários e suficientes ao exame, sob a ótica jurídico-principiológica, do conceito de solidariedade.

Sobre o autor
Cleber Demetrio Oliveira da Silva

Sócio da Cleber Demetrio Advogados Associados, da RZO Consultoria e Diretor Executivo do Instituto de Desenvolvimento Regional Integrado Consorciado (IDRICON21), Especialista em Direito Empresarial pela PUCRS, Especialista em Gestão de Operações Societárias e Planejamento Tributário pelo INEJE, Mestre em Direito do Estado pela PUCRS, Professor de Ciência Política no curso de graduação da Faculdade de Direito IDC, de Direito Administrativo em curso de pós-graduação do IDC e Professor de Direito Administrativo e Direito Tributário em cursos de pós-graduação do UNIRITTER da rede Laureate International Universities.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Cleber Demetrio Oliveira. O princípio da solidariedade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1272, 25 dez. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9315. Acesso em: 28 dez. 2024.

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