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Um passado insepulto

Agenda 17/09/2021 às 18:12

O ARTIGO DISCUTE SOBRE FATO CONCRETO À LUZ DA TEORIA DO ABUSO DE PODER PARA A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO E DA CONVENÇÃO DE DIREITOS HUMANOS DA OEA.

Lembrou o Estadão, em seu site, em 17 de setembro de 2021, que há exatos 50 anos, em 17 de setembro de 1971, Carlos Lamarca era metralhado sob a sombra de uma baraúna, no sertão da Bahia. A história do capitão do Exército que desertou para participar da luta armada contra a ditadura ainda provoca desconforto. As Forças Armadas não aceitam a anistia concedida em 2007.

Conforme noticiou a EBC, em seu site, no dia 13 de maio de 2015, em decisão de primeira instância o juiz substituto da 21ª Vara Federal do Rio, Guilherme Corrêa de Araújo, cancelou portarias de 2007 do Ministério da Justiça que concederam indenização à família do guerrilheiro. A Comissão de Anistia concedeu indenização de R$ 100 mil para Maria e os dois filhos de Lamarca, totalizando R$ 300 mil. "A anistia a Carlos Lamarca, seus dois filhos e sua esposa constitui-se em ato oficial do Estado brasileiro, após rigoroso processo administrativo que também levou em conta decisões judiciais, está integralmente amparada pelo art. 8º do ADCT da Constituição da Republica de 1988 e pela sua regulamentação na Lei n. 10.559/02", argumenta o texto do MJ.

A decisão judicial lembrada também questiona portaria do Ministério da Justiça que reconheceu o direito às promoções na carreira militar, concedendo à viúva de Lamarca pensão com proventos de general de brigada e determina "ressarcimento ao erário federal dos valores comprovadamente desembolsados, corrigidos monetariamente e acrescidos de juros de mora de 1% ao mês a contar da citação".

Segundo o site migalhas, Lamarca já havia sido considerado anistiado pela Comissão de Mortos e Desaparecidos e pelo STJ. O presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, considerou que um ciclo estáva fechado. "Será a finalização da discussão em torno do nome dele. É o reconhecimento que faltava. Dentro das condições possíveis, acredito que a família foi contemplada", afirmou Abrão. A viúva de Lamarca recebia a pensão com os proventos de coronel. Agora, serão referentes a general de brigada.

Dois votos foram contrários à concessão dessa indenização à família do guerrilheiro.

O procurador Paulo Gonet Branco considerou que os casos não se adequavam à lei porque eles foram mortos em local aberto e não dentro de dependências policiais.

O general Gomes afirmou que a guerrilha incitava um "estado de guerra" e que, nessas condições, "a ordem é destruir, matar", pois os militares "são profissionais da violência legal".

Para o Clube Militar o que ocorreu é que o ex-capitão cometeu deserção e furto de armamento. Não foi afastado das fileiras do Exército por perseguição política, mas por crimes julgados pela Justiça Militar”. Data vênia, esse não é argumento para negar a indenização pleiteada.

"Não se julgou Lamarca. Não se estabeleceu se se era herói ou traidor. Os fatos por ele praticados e as posições de liderança que ocupou no movimento de guerrilha, naquele período de exceção, foram absolutamente indiferentes para a comissão", afirmou Reale Jr.

Os argumentos favoráveis à indenização foram no sentido de que ele foi morto em cerco em que o Estado tinha o controle da situação e, portanto, poderiam ter sido presos.

Essa é a razão jurídica para a indenização.

Lamarca, já doente, foi morto quando deveria ter sido preso.

Segundo Tarso Genro, ministro da Justiça, à época em que a anistia foi concedida, “o assassinato de Lamarca foi feito fora das regras da própria ditadura. Portanto, ele tem de ser anistiado. Sofreu a punição máxima, assassinato a sangue frio”, disse. “Com essa formulação, queríamos criar uma concepção dialógica dentro da transição, para que ocorressem duas coisas: as pessoas que sofreram as agruras da perseguição fossem assistidas e as pessoas que se comportam fora da legalidade do próprio regime fossem responsabilizadas”.

Isso significa abuso de direito da parte do Estado.

Como bem salientou Aguiar Dias(Da Responsabilidade Civil, volume II, 5ª edição, pág. 236), a doutrina do abuso de direito deve ter cabida em face do desvio ou excesso no chamado poder de polícia, que comporta para a Administração a faculdade de estabelecer injunções, proibições, autorizações, recusas e exceções.

A razoabilidade, na valoração dos motivos e na escolha do objeto, é, em última análise, o caminho seguro para se ter certeza de que se garantiu a legitimidade da ação administrativa.

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A solução dada pela Administração na caçada feita a Lamarca, há cinquenta anos, foi deveras inadequada. Era caso de prisão e não de execução.

O ato foi, sem dúvida, arbitrário, daí porque cabe a indenização da parte do Estado brasileiro à família.

Objetiva-se, no Estado Democrático de Direito, uma justiça informada nos princípios da equidade.

Bem acentuou o Ministro José Augusto Delgado(Recurso Especial 379.414/PR, Relator Ministro José Augusto Delgado, DJ de 17 de fevereiro de 2003), que o dano, caso seja provado, atinge o mais consagrado direito da cidadania: o de respeito, pelo Estado, à vida e à dignidade humana.

Sendo assim, a violação aos direitos humanos ou direitos fundamentais da pessoa humana, como é a proteção de sua dignidade lesada pela tortura e prisão por delito de opinião durante o Regime Militar de exceção, enseja ação de reparação ex delicto imprescritível, que ostenta amparo constitucional no artigo 8º, § 3º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Se o Brasil ratificou a Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos e a introduziu no país com, no mínimo, hierarquia supralegal, "todo o sistema judicial, desde o magistrado de primeiro grau até os membros da Suprema Corte, deve se conformar à ideia de que o controle de constitucionalidade implica também um controle de convencionalidade, os quais hão de ser exercidos de forma intercomplementar".

É salutar lembrar as observações de Cançado Trindade:

“A disposição do artigo 59 da Constituição Brasileira vigente, de 1988, segundo a qual os direitos e garantias nesta expressa não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais em que o Brasil é parte, representa, a meu ver, um grande avanço para a proteção dos direitos humanos em nosso país. Por meio deste dispositivo constitucional, os direitos consagrados em tratados de direitos humanos em que o Brasil seja parte incorporam-se ipso jure ao elenco dos direitos constitucionalmente consagrados. Ademais, por força do artigo 5º (1) da Constituição, têm aplicação imediata. A intangibilidade dos direitos e garantias individuais é determinada pela própria Constituição Federal, que inclusive proíbe expressamente até mesmo qualquer emenda tendente a aboli-los (artigo 60 (4) (IV). A especificidade e o caráter especial dos tratados de direitos humanos encontram-se, assim, devidamente reconhecidos pela Constituição Brasileira vigente. Se, para os tratados internacionais cm geral, tem-se exigido a intermediação pelo Poder Legislativo de ato com força de lei de modo a outorgar a suas disposições vigência ou obrigatoriedade no plano do ordenamento jurídico interno, distintamente, no tocante aos tratados de direitos humanos em que o Brasil é parte, os direitos fundamentais neles garantidos passam, consoante os parágrafos 2 e 1 do artigo 5º da Constituição Brasileira de 1988, pela primeira vez entre nós a integrar o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados e direta e imediatamente exigíveis no plano de nosso ordenamento jurídico interno. Por conseguinte, mostra-se inteiramente infundada, no tocante em particular aos tratados de direitos humanos, a tese clássica — ainda seguida em nossa prática constitucional — da paridade entre os tratados internacionais e a legislação infraconstitucional. Foi esta a motivação que me levou a propor à Assembleia Nacional Constituinte, na condição de então Consultor jurídico do Itamaraty, na audiência pública de 29 de abril de 1987 da Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais, a inserção em nossa Constituição Federal — como veio a ocorrer no ano seguinte — da cláusula que hoje é o artigo 5º (2). Minha esperança, na época, era no sentido de que esta disposição constitucional fosse consagrada concomitantemente com a pronta adesão do Brasil aos dois Pactos de Direitos Humanos das Nações Unidas e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o que só se concretizou em 1992. E esta a interpretação correta do artigo 52 (2) da Constituição Brasileira vigente, que abre um campo amplo e fértil para avanços nesta área, ainda lamentavelmente e em grande parte desperdiçado. Com efeito, não é razoável dar aos tratados de proteção de direitos do ser humano (a começar pelo direito fundamental à vida) o mesmo tratamento dispensado, por exemplo, a um acordo comercial de exportação de laranjas ou sapatos, ou a um acordo de isenção de vistos para turistas estrangeiros. A hierarquia de valores, deve corresponder uma hierarquia de normas, nos planos tanto nacional quanto internacional, a ser interpretadas e aplicadas mediante critérios apropriados. Os tratados de direitos humanos têm um caráter especial, e devem ser tidos como tais. Se maiores avanços não se têm logrado até o presente neste domínio de proteção, não tem sido em razão de obstáculos jurídicos — que na verdade não existem —, mas antes da falta de compreensão da matéria e da vontade de dar real efetividade àqueles tratados no plano do direito interno, (Apud MENDES, 2011, p. 749).”

Aplica-se para o caso a Convenção de Direitos Humanos que foi subscrita pelo governo brasileiro.

Esse o contexto pelo qual deve ser visto o caso que envolve a indenização do Estado brasileiro pela morte de Carlos Lamarca em 1971.

Desde 2015, a reparação financeira à família Lamarca está suspensa por decisão do primeiro grau da Justiça Federal do Rio, com determinação para o ressarcimento dos valores recebidos. Duas ações semelhantes, que depois passaram a tramitar unidas, questionam os benefícios. Uma é assinada pelos clubes Militar, da Aeronáutica e Naval, que defendem interesses de militares da reserva. A outra foi movida pelo advogado João Henrique Freitas, hoje chefe da Assessoria Especial de Jair Bolsonaro e presidente da Comissão da Anistia.

O caso é, pois, emblemático e bem retrata, diante de um período sombrio por que passamos, algo similar ao dos acontecimentos aqui narrados de cinquenta anos atrás, a polarização por que passou e ainda passa o país onde “o passado permanece incerto” e que “as feridas do passado, quando coçadas, fazem a pele esvair em sangue e dor”.

 

 

 

 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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