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Direito ao esquecimento e solidão digital

Agenda 24/09/2021 às 13:12

Qual o limite entre o Direito ao Esquecimento e a Solidão Digital?

O Direito ao Esquecimento vive um curioso debate entre estabelecer os limites do que queremos que as pessoas saibam de nós, o que temos o dever legal de falar sobre nós e a nossa presença digital nesse mundo cada dia mais confuso.

Tudo Te É Falso e Inútil é o título da obra de Iberê Camargo, conjunto de quadros que foram pintados pela artista em 1992 e cuja paleta de cores pressupõe tristeza e melancolia e no primeiro quadro da série, nota-se um indivíduo sentado observando um dorso nu feminino e entre as duas figuras, está uma bicicleta, esse destaque feito Por Emerson Wendt e Fernanda Sartor Meinero, em seu artigo “Tudo te é falso e inútil: O amor e a solidão desde o contexto cultural virtual, artigo publicado na obra Perspectivas Contemporâneas do Ciberespaço” dá o tom do que queremos abordar neste artigo.

No caso da obra de Iberê, os quadros podem ser colocados como a representação simbólica das relações afetivas no nosso tempo, a qual os indivíduos estão situados numa sociedade de consumo e cujas relações são líquidas. A proximidade das figuras humanas, que não se tocam, faz alusão ou pelo menos uma prospecção, ao ambiente cibernético, ao desejo latente dos corpos nus que não concretizam o ato. Além disso, o título do conjunto das obras nos remete à incessante busca pela mercadoria felicidade.

Como e onde está a felicidade nos tempos digitais? De que maneira essa magnitude de tempo dedicada a internet ajuda ou atrapalha na nossa felicidade?

As relações interpessoais foram comprovadamente alteradas, veja por exemplo o local neste momento em que você está lendo esse artigo, no celular, em um tablet ou no seu laptop, o fato é que você recebeu esse conteúdo em um meio físico digital, por meio de um sinal de internet.

Ao mesmo tempo é evidente a aproximação virtual entre os indivíduos que também reduziu as distâncias e favoreceu a comunicação. Como destaca Castells (2008), na era da “rede das redes”. Essa comunicação aproxima culturas e até mesmo as cria dentro do ambiente virtual. As comunidades virtuais, por assim entendidas, podem avizinhar indivíduos de crenças diferentes, raças e nacionalidades, mas que em uma rede de relacionamento encontram aspectos em comum a ponto de aculturarem-se.

E quando abordamos o Direito ao Esquecimento, lembramos essas novas formas de se relacionar e a tênue linha em que é ou não é privado em tempos dos mais diversos conteúdos, sejam eles fotos, textos ou vídeos mais do que compartilhados. Dentro deste contexto surgem novas formas de se relacionar afetivamente que são frutos, segundo Bauman (2004), do amor visto a partir do padrão dos bens de consumo, ou seja, que eles servem enquanto trouxerem satisfação, podendo ser substituídos por outros que prometam ainda mais satisfação. Para ele a liquidez das relações e a velocidade com que elas acontecem dentro do ambiente virtual desencadeiam aspectos importantes, tanto de uma perspectiva do direito quanto social.

Essas novas relações geram novos desafios em meio ao multiculturalismo visto de um ponto cibernético, naquilo que os algoritmos permitem em suas modulações na busca pela retenção da audiência, alimentando a lógica e interação que representam mais dados e dados são dinheiro. O fato é como as alterações profundas nas relações afetivas, dentro do contexto da internet, podem também resultar no que poderia parecer improvável, na solidão, sim, solidão, esta representada pela noite obscurecida e gélida na obra referenciada de Iberê Camargo.

Esse contexto foi reforçado pelos fundamentos e garantias instituídos no Marco Civil da Internet no Brasil através da Lei 12.965/14. Estabelece a norma, em seu segundo artigo, que a disciplina de “uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão”, bem como a “pluralidade e a diversidade” e, também, a finalidade social da rede.

O fato é que a Internet, no seu contexto de auto-organização e estruturação atual (WENDT), baseada na interação através de aplicativos, favorece a comunicação através de comunidades virtuais, não no sentido de grupos específicos, mas de aproximações geradas/consequentes do mesmo pensar/manifestar, do mesmo agir, do mesmo gostar/odiar, ou seja, dos mesmos interesses e/ou oportunidades.

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Algoritmos e grupos vão ajustando a nossa rede de forma cada vez mais homogênea, ainda que por vezes aquele amigo antigo do colégio que você não via a anos pede pra ser adicionado e em poucos dias, acompanhando a publicações, você entende melhor as razões desse longo afastamento.

No fundo as redes sociais fazem isso, somos íntimos de quem não conhecemos bem e a cada dia mais distante dos próximos fisicamente.

O conceito de “comunidade virtual” foi cunhado pela primeira vez por Howard Rheingold em 1993, definindo-a como uma agregação cultural formada pelo encontro sistemático de um grupo de pessoas no ciberespaço, tendo como características a coparticipação, o compartilhamento de valores, interesses, metas e etc, tudo numa mecânica que nos faz parecer íntimos.

Essa publicidade em maior ou menor grau, sempre dependendo dos filtros que colocamos em nossas publicações, cria uma intimidade aparente e quando compartilhada nas redes sociais, ganha ares de conteúdo público disponível para os robôs de capturas que alimentam bancos de dados e que são revendidos para inúmeras empresas, tornando muitas vezes nossas vidas em um inferno de ligações e e-mails que não param, ofertando produtos e serviços que não queremos.

Entre as principais características dessa nova comunicação esta a anonimidade, geradora de muita tensão em nossas relações, em que pese a previsão constitucional de vedação ao anonimato (art. 5º, IV), mas principalmente se vista do ponto de vista do usuário que, frente ao uso de aplicativos na Web, tende a crer que está anônimo, porém, ao navegar pela rede, deixa dados que podem identificá-lo. Ainda, na chamada Deep Web, o “lado escuro” da internet e onde as características citadas são ainda mais claras, tem-se como evidentes a produção de interação, comunicação e busca de conexões baseadas por interesses afetivos, culturais, sociais, políticos, econômicos e afins. Percebe-se, ademais, relativamente à anonimidade e correspondente interatividade na internet, que o processo de formação do laço de afinidade social sofre uma inversão, onde os interesses comuns são tidos como determinantes iniciais da interação e também sexo, idade, raça, aparência física não são automaticamente discerníveis, palpáveis, sendo que as interações não se dão diretamente entre “indivíduos”, mas entre imagens, projeções desencarnadas de um corpo físico, tidas como ideais a partir da ótica do visualizador, que evidentemente recebe tudo após o filtro das redes.

É sempre bom lembrar que a pós-modernidade ou, como bem coloca Bauman (2004), a modernidade líquida, é justamente marcada pela instabilidade, inseguranças e incertezas. Os câmbios realizados pela sociedade contemporânea modificaram a forma de ver o mundo e de se relacionar com os outros.

Ainda sobre Bauman, essas relações estariam fadadas a “viagens exploratórias arriscadas e descobertas ocasionais” em busca de “prazeres ilusórios” (BAUMAN, 2003, p. 35). Tente ver as novas amizades em suas redes sociais que surgiram e a velocidade com que desapareceram, tente ver como se constroem os sentimentos, afinal, a proximidade que alguns aplicativos como Tinder, ou redes sociais como Facebook podem aproximar os indivíduos por zonas de interesses, mas o amor, na forma romântica conhecida, parece não encontrar lugar na contemporaneidade, logo, “todo amor luta para enterrar as fontes de sua precariedade e incerteza, mas se obtém êxito, logo começa a se enfraquecer – e definhar”. O amor contemporâneo, ou líquido, tende a definhar e acabar tão logo se concretize, não há espaços para o amor romântico.

Na tentativa de se comunicarem os indivíduos contemporâneos buscam freneticamente satisfação, mas que não represente um aprisionamento, afinal, não se pode ter a certeza da escolha correta.

Lembrando a genial obra de Gabriel Garcia Márquez, e seu personagem Florentino, protagonista de “O Amor nos Tempos do Cólera”, talvez hoje tivesse seguido sua vida sem a busca ao amor de Fermina e como bem dizia ele “O coração tem mais quartos que uma pensão de putas” (MÁRQUEZ, 1985, p. 334). Florentino permitiu-se viver as paixões e os amores ocasionais, mas sempre existiu a certeza do amor romântico. Tivesse ele inserido na sociedade líquida preconizada pelos meios digitais por certo perder-se-ia em relações fugazes, dentro de um ambiente virtual e não em contos realísticos de Gabo, terminando seus dias só num navio, mas com wireless, claro! Por outro lado, seria ele a imagem representada por Iberê, a admirar o corpo nu, a desejá-lo e, posteriormente, a desprezá-lo. A rigidez/fluidez da solidão. O amor pode ser líquido, mas cada vez mais a solidão é sólida e flui na sociedade contemporânea, como bem destacam Emerson Wendt e Fernanda Sartor na obra já citada.

Em que pese as ferramentas digitais para o exercício ao Direito do Esquecimento, inerente a nossa personalidade jurídica previsto na Constituição e em nosso Código Civil a lógica do mercado parece não querer dar descanso, enquanto for possível comercializar nossos dados.

E assim seguimos nos esgueirando dos desafios que o mundo digital oferta, onde o conceito de privacidade é fluido e o amor eterno um desafio, que assim seja sua vida na busca de amores que durem se possível para sempre.

Sobre o autor
Charles M. Machado

Charles M. Machado é advogado formado pela UFSC, Universidade Federal de Santa Catarina, consultor jurídico no Brasil e no Exterior, nas áreas de Direito Tributário e Mercado de Capitais. Foi professor nos Cursos de Pós Graduação e Extensão no IBET, nas disciplinas de Tributação Internacional e Imposto de Renda. Pós Graduado em Direito Tributário Internacional pela Universidade de Salamanca na Espanha. Membro da Academia Brasileira de Direito Tributário e Membro da Associação Paulista de Estudos Tributários, onde também é palestrante. Autor de Diversas Obras de Direito.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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