Resumo: O presente trabalho tem o escopo de exteriorizar a presença do trabalho em sua forma escrava na contemporaneidade através de uma sucinta análise histórica, doutrinária e jurisprudencial. Dessa forma, busca demonstrar o desamparo social, político e jurídico que o trabalho escravo e seus figurantes vivenciam desde os tempos originários até o momento atual. Sendo assim, concluiu-se que o ordenamento brasileiro não conta com ações satisfatórias que proporcionem para o trabalhador um ambiente digno e justo de trabalho, ora pela impunidade, que tendencia a reincidência, ora pelo alto contraste social e econômico.
Palavras-chave: DIREITO, TRABALHO ESCRAVO, CONTEMPORANEIDADE.
INTRODUÇÃO
A história da humanidade é categoricamente dividida em fases, cada qual com suas lutas, conquistas e progressos. Com isso, tem-se os aprendizados que acompanham a jornada da sociedade em sua evolução. Todavia, em conjunto aos proventos tem-se as objeções, que se tornam contratempos. Um elemento antagônico a ascensão social é o trabalho escravo, isto é, a exploração do trabalho humano em relações análogas à escravidão.
Embora pareça ser uma prática arcaica e a terminologia da escravidão soe histórica, seu desempenho é presente e muito comum. Não é necessário retroceder no tempo e tão pouco ir tão longe no espaço para se deparar com esse tratamento em meio laboral tão bárbaro. Torna-se claro aos olhos de todos que há a brusca violação de direitos e garantias fundamentais nessa condução.
Reflete-se na alçada brasileira: A tamanha violação ocasionada pelo trabalho escravo é conhecida? Além disso, tem-se produzido medidas de erradicação em desfavor dela? Qual é a tratativas das cortes quanto a sua existência?
BREVE NUANCE HISTÓRICA DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL
Ele é amplo, complexo e primitivo. O trabalho escravo é um fenômeno de cunho social que se ajusta e resiste no tempo e espaço, exteriorizando-se de forma desumana e cruel (BAPTISTA et al, 2018). Desse modo, torna-se incontestável a afirmativa de que a escravização tem como sustentáculo a violência.
Os indicativos demonstram que a escravidão se faz presente desde as civilizações primitivas, entretanto, teve sua verdadeira expansão nas origens do Egito, Grécia e Roma (SANTOS, 2003). Desde os primórdios, o indivíduo categorizado como escravo era desconsiderado como um ser humano, sendo caracterizado apenas como um mero objeto. Assim, era comprado e vendido, sem nenhuma humanidade (SILVA, 2010).
Tempos para frente, na idade medieval, os escravos e os homens livres constituíam a divisão da sociedade. Os denominados escravos eram os únicos que formavam a classe trabalhadora. Portanto, o sistema de produção usual da época era a servidão (SILVA, 2010).
Percorrendo a linha do tempo, rememora-se o crescimento comercial e marítimo. Com este, o comércio de pessoas se desenvolveu e se expandiu, a ponto da comercialização dos escravos se tornar a estrutura da economia mundial. O alvo da comercialização era a nação africana (SILVA, 2010).
No que diz respeito ao Brasil, a exploração do ser humano e o exercício do trabalho escravo se deu início em seus primórdios, no período colonial, em 1500, quando foram subjugados os índios e os africanos à coroa portuguesa. Logo, a escravidão se tornou parte da história do Brasil e de seu próprio desenvolvimento (MARQUESE, 2006).
A pregação da escravidão era tão íntegra que assim permaneceu. Tardiamente, aproximadamente trezentos anos depois, as ideias abolicionistas ganharam força no território brasileiro. Nesse sentido, é difícil determinar o começo das mobilizações de cunho abolicionistas no Brasil, contudo, no que diz respeito as manifestações organizadas, estas ganharam força em meados dos anos de 1860 e 1880 (BRUSATIN, 2010).
Em colaboração as reivindicações quanto ao trabalho escravo, tem-se a ascensão do capitalismo, a revolução industrial europeia e as transições estruturais das colônias americanas. À vista disso, a sobrevivência do sistema escravocrata restou-se dificultosa. (CRISTOVA, GOLDSCHMIDT, 2012). Mas não se pode pensar com inocência, acreditando que a abolição da escravatura foi motivada apenas pelo desejo de igualdade e de justiça, na verdade, o interesse econômico era a razão preponderante (BATINGA, 2020).
De tal maneira, é oportuno destacar alguns marcos legislativos históricos referentes a escravidão, sendo eles:
A proibição do tráfico negreiro através da Lei de 7 de novembro de 1831, cognominada Lei Diogo Feijó;
A concessão de liberdade aos filhos de mulheres escravas através da Lei nº 2.040 de 28 de setembro de 1871, cognominada Lei do Ventre Livre;
A concessão de liberdade aos escravos com mais de 60 anos através da Lei nº 3.270 de 28 de setembro de 1885, cognominada Lei dos Sexagenários;
Nesse contexto, de forma sucinta, é importante recapitular que no mundo a fora desenvolviam-se gradualmente ações e deliberações em prol da regularização do âmbito trabalhista. Em 1919, decorrente do Tratado de Versalhes na Conferência da Paz, foi instituída a Organização Internacional do Trabalho (OIT). A partir de então a OIT adota convenções e recomendações executando uma prestigiada função de elaboração e definição de iniciativas políticas e legislativas atinentes a economia, ao trabalho e a sociedade. A Convenção de nº 29 (1930) e a de nº 105 (1957) trataram do trabalho forçado e foram reafirmadas em 1998. No Brasil, a mencionada OIT possui sua atuação desde o ano de 1950 (OIT, 2006).
Mudanças aqui e acolá, embora a OIT já se fizesse presente em território brasileiro, houve um reconhecido atraso. O Brasil foi o último país no ocidente a abolir a escravidão, isto é, o direito de propriedade de uma pessoa sobre a outra, se extingue em 13 de maio de 1888 quando foi sancionada a Lei nº 3.353 de 13 de maio de 1988, cognominada de Lei Áurea. Entretanto, a abolição não foi instantânea como desejada, uma vez que por mais livres que estivessem aquelas pessoas, elas não tinham recursos e nem destino para seguir (CRISTOVA, GOLDSCHMIDT, 2012).
Os feitos não param e os fatos são lamentáveis. Foi apenas em 2003, à frente da Corte Interamericana de Direito Humanos, que o Brasil foi certificado internacionalmente quanto a sua responsabilidade ante a violação dos direitos humanos decorrente da prática do trabalho escravo em prol aos acontecimentos do caso de José Pereira e a inércia do Estado. Nesse contexto surgiu o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (CRISTOVA, GOLDSCHMIDT, 2012).
Nota-se que embora o mundo tenha dado inúmeras voltas, ainda, a humanidade não pode se declarar livre da escravidão. O conhecimento é público: o trabalho escravo, em decorrência do interesse econômico, tem sua continuidade, por mais que possua outras faces (BATINGA, 2020).
Ou seja, ainda que o trabalho na sua forma escrava tenha aderido novas particularidades, permanece a violação de muitos direitos inerentes a pessoa humana, inclusive aquele atinente a dignidade (JAGER, 2012)
DO PARADIGMA CONTEMPORÂNEO DO TRABALHO ESCRAVO
Inicialmente, é considerável esclarecer que a atual caracterização do trabalho escravo é abstrata, não existindo uma definição única. O vínculo contemporâneo do trabalho escravo não é somente na cor, raça ou origem do trabalhador, mas nos fatores sociais, como a miséria, o subdesenvolvimento e a falta de perspectiva de superação e melhoria nas condições de vida. Dessa forma, o obscurantismo e a incultura direcionam os trabalhadores à escravidão. (CRISTOVA, GOLDSCHMIDT, 2012)
Em outras palavras, como dito anteriormente, o trabalho escravo foi se adaptando e se reconfigurando, contudo, a sua principal característica permaneceu, sendo ela: o controle sobre o trabalhador em prol de ganho econômico. (BALES, 2006)
Esse controle usualmente se dá por meio de violência (física, psíquica e/ou patrimonial) e a marcante supressão do status libertatis, ou seja, a submissão do trabalhador ao poder do empregador. Essa conjectura é denominada como plagium.
A doutrina aduz como plagium
O exercício ilícito, sobre o trabalhador, de poderes similares àqueles inerentes ao direito de propriedade, restringindo-lhe a liberdade de locomoção através do uso de violência, grave ameaça ou fraude, bem como mediante a retenção de documentos pessoas ou contratuais ou em razão de dívida contraída com o empregador, com frustação de direitos trabalhistas e imposição de trabalhos forçados e em condições degradantes (FAVARO FILHO, 2010, p. 260)
Sendo assim, de maneira contemporânea, não vivenciamos a escravidão em forma de correntes e em senzalas, contudo, ela é encontrada no agronegócio, na construção civil e na indústria têxtil, por exemplo (PEREIRA, 2008).
Há quem doutrinariamente cite como uma mazela ao trabalhador da atualidade, a flexibilização das leis trabalhistas. (BATINGA, 2020). Nesse sentido, há quem mencione também o advento da Lei nº 13.429/2017 como uma legitimação ao retrocesso do vínculo trabalhista.
Nesse sentido, menciona-se a terceirização irrestrita, instituída pela referida lei, devida sua negligência, sendo que esta deteriora a saúde e a própria segurança (BORGES, DRUCKER, 2002). A denominada flexibilização do trabalho por meio de seus atributos desestabiliza os direitos trabalhistas, bem como debilitam as condições de trabalho (HARVEY, 2007).
Isto posto, verifica-se que o conhecimento de impunidade, a indiferença e muitas vezes o desejo pela desigualdade, bem como a cultura brasileira, é o que mantêm o trabalho escravo no Brasil (BATINGA, 2020). Portanto, torna-se emergencial e necessário um posicionamento firmado no sentido de fiscalizar o âmbito laboral e seu desenvolvimento a fim de erradicar definitivamente a existência do trabalho escravo (CRISTOVA, GOLDSCHMIDT, 2012).
DA LEGISLAÇÃO REFERENCIAL
O trabalho escravo é proibido pela Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), também chamada de Pacto de San José da Costa Rica, em seu artigo 6º.
Por sua vez, a Constituição Federal Brasileira, dispõe a respeito da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da igualdade. Além disso, repudia trabalho caracterizado como escravo ou forçado. Tais resoluções se fazem presentes no artigo 5º, caput, incisos III e XLVII, alínea c.
Quanto a criminalização, o Código Penal Brasileiro, no capítulo referente aos crimes contra a liberdade individual, incrimina a conduta da escravidão, isto é, o trabalho em condição análoga à de escravo. Este tipo penal está previsto no artigo 149 do aludido códex.
Dessa forma, constata-se que o bem jurídico tutelado, além da liberdade, é a dignidade do trabalhador.
É nesse viés, que o Ministério do Trabalho, por meio da sua Portaria nº 1.293 de 28 de dezembro de 2017, definiu cada espécie de trabalho escravo.
Diante o apresentado, verifica-se que a Consolidação das Leis Trabalhistas permanece inerte ao que diz respeito ao trabalho escravo, desconsiderando a barbaridade e consequências desta prática laboral.
DO ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL
PENAL. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA A DE ESCRAVO. ESCRAVIDÃO MODERNA. DESNECESSIDADE DE COAÇÃO DIRETA CONTRA A LIBERDADE DE IR E VIR. DENÚNCIA RECEBIDA. Para configuração do crime do art. 149. do Código Penal, não é necessário que se prove a coação física da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção, bastando a submissão da vítima “a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva” ou “a condições degradantes de trabalho”, condutas alternativas previstas no tipo penal. A “escravidão moderna” é mais sutil do que a do século XIX e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos. Priva-se alguém de sua liberdade e de sua dignidade tratando-o como coisa e não como pessoa humana, o que pode ser feito não só mediante coação, mas também pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive do direito ao trabalho digno. A violação do direito ao trabalho digno impacta a capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação. Isso também significa “reduzir alguém a condição análoga à de escravo”. Não é qualquer violação dos direitos trabalhistas que configura trabalho escravo. Se a violação aos direitos do trabalho é intensa e persistente, se atinge níveis gritantes e se os trabalhadores são submetidos a trabalhos forçados, jornadas exaustivas ou a condições degradantes de trabalho, é possível, em tese, o enquadramento no crime do art. 149. do Código Penal, pois os trabalhadores estão recebendo o tratamento análogo ao de escravos, sendo privados de sua liberdade e de sua dignidade. Denúncia recebida pela presença dos requisitos legais (STF, 2012). (grifo nosso)
TRT-PR-18-03-2016 DANO EXISTENCIAL. JORNADA EXTENUANTE EM PROL DO DESENVOLVIMENTO DE ATIVIDADE LUCRATIVA EMPRESARIAL. OFENSA À CONDIÇÃO HUMANA DO TRABALHADOR PARA A VIDA DE RELAÇÕES. SAÚDE, LAZER, DESCANSO DIGNO E PROJETO DE VIDA AFETADOS. VIOLAÇÃO A DIREITOS SOCIAIS COMO DIMENSÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS. INDENIZAÇÃO DEVIDA. No caso dos autos, os elementos de prova evidenciam violação a direitos fundamentais, mormente de limitação da jornada de trabalho, mediante a realização habitual de labor excedente aos limites legais (das 8h às 23h, com 20min de intervalo, de segunda a sexta-feira, e, aos sábados, em dois por mês, das 8h às 16h30min, com 20min de intervalo), com prejuízo à vivência do Trabalhador em seu tempo de folga. Evidente que aludida situação provocou maior desgaste do ponto de vista biológico e social, ou seja, ao submeter-se a referida sobrejornada, o Reclamante expôs-se a condição capaz de desencadear efeitos deletérios notórios ao seu próprio desenvolvimento e ao contato com os demais membros da comunidade na qual se insere, dado o desequilíbrio entre o tempo despendido no trabalho e nas atividades destinadas ao lazer e mesmo ao descanso, privando-o da vida de relações, a ofender direitos sociais (em sua dimensão como direitos fundamentais - art. 6º da Constituição Federal). O mero pagamento do trabalho extraordinário não se presta a ressarcir tal prejuízo. Como já mencionado por precedente desta Turma, o Brasil, em inúmeros diplomas internacionais, assumiu o compromisso de combater as condições indignas de trabalho, abolir toda forma de trabalho forçado e obrigatório e repreender a servidão e a escravidão em todas as suas formas. A Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano reconhece "o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao gozo das condições de vida adequadas num meio ambiente de tal qualidade que lhe permita levar um vida digna de gozar do bem-estar". A própria Declaração Universal dos Direitos Humanos dispõe em seu artigo XXIV que "Todo ser humano tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e a férias remuneradas periódicas". Nessa trilha, permitir que o empregador estabeleça ou seja conivente com jornadas exaustivas em prol do desenvolvimento de atividade lucrativa, sem atentar à condição humana do trabalhador, seria o mesmo que avalizar, em tese, a redução do empregado à condição análoga à de escravo, nos termos do art. 149. do Código Penal, fato esse inconcebível no atual Estado democrático de direito. Quando se trata de violação a direitos fundamentais, há que se adotar medidas coibitivas, a fim de que tais lesões não sejam banalizadas. Recurso da parte Reclamada a que se nega provimento, no particular, mantendo-se a condenação patronal ao pagamento de indenização por dano existencial ao Trabalhador. (TRT, 2016) (grifo nosso)
CONCLUSÃO
O cenário brasileiro conta com um Estado Democrático de Direito e na teoria este é constituído em sua base por direitos e garantias fundamentais que regem o ordenamento pátrio buscando a ordem e a justiça, tutelando os bens jurídicos.
Entretanto, em prática, os direitos e garantias fundamentais são bruscamente violados e os indivíduos a quem caberia o devido suporte e a proteção, encontram-se expostos e desamparados.
Em oportunidade de exemplo, tem-se a vigente configuração de trabalho escravo em território nacional, isto é, de trabalho em condição análoga à de escravo. Há o conhecimento dessa violação e as medidas de erradicação são mínimas, sendo quase nulas, uma vez que embora noticiadas, não deixam de ser meras estatísticas.
As cortes, em seus julgados de anos recentes, reconhecem o trabalho em condição análoga à de escravo, relevando a caracterização das condições de trabalho. Assim, sendo estas indignas e degradadoras, configuram um trabalho em condição análoga à de escravo.
Em suma, conclui-se que o ordenamento brasileiro não conta com ações satisfatórias que proporcionem para o trabalhador um ambiente digno e justo de trabalho, ora pela impunidade, que tendencia a reincidência, ora pelo alto contraste social e econômico. Dessa forma, reforça-se a ideia de que a objetificação do trabalhador ainda acontece e as medidas de repressão a isso são, além de quase nulas, falhas.
REFERÊNCIAS
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