Introdução
Em Moçambique, os primeiros sinais de direitos humanos foram integrados na Constituição da República Popular de Moçambique (CRPM), a primeira do país enquanto Estado independente. Estes direitos estavam, no entanto, muito limitados, dispersos e muitas das vezes dificultavam a sua interpretação. De forma clara, estes direitos foram incorporados no texto Constitucional de 1990. Apesar da sua instituição no ordenamento jurídico moçambicano, na prática sua aplicação e observância continua sendo um grande desafio, visto que as diferentes instituições sociais e económicas do Estado que deveriam garantir estes direitos carecem de políticas públicas assertivas para sua concretização, por forma a que o povo possa viver condignamente, conforme objetivos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, da Declaração Universal da UNESCO sobre a Diversidade Cultural [1] e demais instrumentos jurídicos sobre a matéria, tanto nacionais como internacionais. Em termos de desenvolvimento humano, o país é classificado como tendo um dos índices mais baixos do planeta[2]. O Estado não é capaz de garantir políticas públicas que visem a diminuição das desigualdades sociais e garantir a inclusão social e econômica das classes sociais estratificadas e desfavorecidas, por processos históricos ao longo dos tempos. Estes são os entraves condenáveis a luz dos direitos humanos, visto que não permitem que o cidadão possa gozar dos direitos económicos, sociais e culturais, que a principio deveriam ser garantidos pelo próprio Estado através da contenção de custos, corrupção zero e justiça igual para todos. Este estudo pretende compreender como os direitos humanos são integrados na Constituição de Moçambique. Para o efeito faz uma análise dos três textos Constitucionais da República de Moçambique, nomeadamente: de 1975; de 1990 e, de 2004, revisto em 2018.
Objectivos do estudo
Geral
Analisar a integração dos Direitos Humanos na Constituição de Moçambique
Específicos
a) Perceber o direito internacional dos direitos humanos;
b) Descrever a Declaração Universal dos direitos humanos;
c) Analisar a integração dos Direitos humanos nos três textos constitucionais de Moçambique.
1. O direito internacional dos direitos humanos
O direito internacional de direitos humanos é reconhecido e ampliado a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), de 1948. Este instrumento jurídico internacional, tem como propósito regular as relações humanas entre os povos numa convivência pacífica. O artigo 5º desta Declaração, recomenda as nações a tratar os direitos humanos globalmente de forma justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase, universais, interdependentes e interrelacionados.
Com o reconhecimento da DUDH, pelos vários países do mundo, membros da ONU, internacionaliza-se a questão de direitos humanos e para a sua validação dois outros importantes documentos foram elaborados e ratificados por diferentes Estados, a citar:
- Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966);
- Pacto internacional sobre os direitos económicos, sociais e culturais (1966).
Estes importantes documentos internacionais sobre direitos humanos, apesar de parte das suas cláusulas não terem encontrado consenso em algumas nações, são considerados como os documentos que estabeleceram os princípios universais da dignidade humana. A partir destes inegáveis, inseparáveis, complementares e valiosos instrumentos sobre direitos humanos, vários outros documentos de âmbito regional sobre direitos humanos foram sendo criados por diferentes organizações de países que, na sua essência tem em comum as semelhanças culturais, por forma a incorporar os valores comuns à compreensão, defesa e garantia dos Direitos Humanos (DH).
Entre esses documentos regionais que enriqueceram os valores defendidos na DUDH, destacam-se os seguintes:
- Declaração Solene dos Povos Indígenas do Mundo (1975);
- Declaração dos Direitos Humanos e Direitos dos Povos (1976):
- Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (1981):
- Declaração dos Direitos do Homem no Islão (1990)
- Carta Árabe dos Direitos do Homem (1994)
- Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (2000).
A Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos de 1981 diferencia-se das demais, visto que, não só defende os direitos humanos individuais, como também colectivos, traduzindo-se nos direitos dos povos ao rol dos direitos fundamentais, como uma condição indissolúvel e indivisível dos direitos humanos, para a sua livre determinação no sentido de garantir o seu estatuto político e liberdade económica, sem interferências de outros Estados.
Entendemos, por isso que o consenso alcançado pelos dirigentes africanos que assinaram esta carta é de que os direitos humanos, para além de ter uma proteção nacional e internacional, porque emanam dos atributos dos seres humanos, o respeito aos direitos dos povos, segundo as suas peculiaridades, é a garantia necessária para a concretização dos direitos humanos fundamentais.
Declaração Universal dos Direitos Humanos
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, adoptada e proclamada em 10 de Dezembro de 1948, pela Assembleia Geral das Nações Unidas, representa o culminar de um processo ético que, iniciado com os movimentos de luta medievais, clássicas, liberais, capitalistas e socialistas, em particular a Declaração de Independência dos EUA (1776), a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa (1789), assim como as revoluções mexicana ( 1910-1917), Russa (1917) e Alemã (1919); o Tratado de Versalhes (1919), e os movimentos internacionais como a SDN (1919), a OIT (1919), e a ONU (1945), levou ao reconhecimento da igualdade essencial de todo ser humano em sua dignidade de pessoa, isto é, como fonte de todos os valores, independentemente das diferenças de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.
Segundo MIRANDA [3], a DUDH é que enuncia os grandes princípios de respeito pela pessoa e pela sua dignidade, conforme expresso nos artigos 1º 2 º 28º, 29 º 30 º e um conjunto de direitos, sendo uns pertencentes a direitos cívicos e políticos, contidos nos artigos 3º e 21º e outros a direitos económicos, sociais e culturais, artigos 22º a 27º.
PINHO e NASCIMENTO [4] afirmam que a DUDH busca não somente prevenir as gerações vindouras de atrocidades de guerras, como também de promover o bem social e boas condições de vida num ambiente de direitos e liberdades mais amplas, para todos e em todas as nações.
No nosso entendimento o sentido objectivo da DUDH é de que as nações do mundo usando este documento vejam os direitos fundamentais, no geral, como um desafio diário, um dever e uma meta a ser atingida, por cada individuo, por cada grupo social, por cada Estado, como referência para a integração das nações num único propósito de convivência pacifica e harmoniosa, entre os homens, para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e as liberdades fundamentais com igual acesso às diferentes necessidades básicas, como educação, saúde, segurança, justiça e igual garantia de direitos e liberdades.
A essência deste histórico e importante documento sobre os direitos humanos fundamentais se resume segundo nossa análise nos seguintes articulados:
- Direitos cívicos, correspondem aos direitos inerentes a pessoa como um ser humano, cuja sua dignidade deve ser reconhecida e respeitada e inclui-se nos artigos: 1º, 2º 3º, 4º 5º, 6º. 7º, 8º. 9º, 10º, 11º, 12º, 13 º e 18º. Este conjunto de artigos estabelece sobre a dignidade do ser humano, igualdade de todos à direitos e liberdades, sem distinção de qualquer natureza, o direito à vida, liberdade e segurança pessoal, a proibição da escravidão e do trabalho forçado; proibição da tortura e dos maus tratos ou penas desumanas ou degradantes, direitos de justiça (tratamento igual perante a lei, presunção de inocência, devido processo legal, não retroatividade da lei), não invasão do domicilio e da correspondência, direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; direito à liberdade de opinião e expressão;
- O direito á vida não é, no entanto, respeitado por todos os países signatários desta Declaração. Infelizmente ainda persiste em alguns Estados a aplicação da pena de morte para indivíduos acusados de pratica de algum tipo de crime. Em outros Estados, mesmo com a abolição formal da pena de morte alguns políticos usam-na para eliminar os seus adversários políticos.
JANUÁRIO e GAMEIRO[5] defendem que:
A pena de morte representa a total negação dos direitos humanos traduzindo-se num assassínio premeditado, a sangue frio de um ser humano pelo Estado em nome de uma (pseudo) justiça, sendo o castigo mais cruel, desumano, degradante e um acto de violência irreversível, incompatível com as normas de comportamento civilizado, para além de que se traduz numa resposta inapropriada e inaceitável ao crime violento.
Para estes autores, nenhum sistema é e, nem mesmo será capaz de tomar decisão justa, sem o mínimo de erro, com consciência sobre quem devera viver e quem deve perder a vida, sendi que praticamente os Estados que praticam tal medida se deixam influenciar por vários factores como a descriminação racial, étnica, religiosa, a força da opinião pública, entre outros. Embora a pena de morte garanta que o crime não seja repetido pelo mesmo individuo, uma vez já executado, ela não assegura, no entanto a correção do erro judicial, quando a condenação é feita ou mais tarde é descoberta que foi para um inocente.
Direitos políticos, correspondem aos direitos que permitem ao cidadão participar activamente no desenvolvimento do seu país, contribuindo com ideias quer seja individualmente como em grupo. Estes direitos estão inseridos nos artigos 14º, 15º, 19º, 25º e preconizam o direito de procurar e de gozar asilo; liberdade de reunião e associação pacífica, direito de acesso aos serviços públicos; direito de votar e de ser eleito.
Direitos económicos, preconizam o direito á propriedade, ao trabalho, igualdade de remuneração para trabalho igual, remuneração justa e satisfatória, direito a limitação de horas de trabalho, direito ao repouso e lazer incluindo às férias remuneradas, o direito de constituir uma família, saúde e bem-estar, protecção segurança social, educação; cultura. Estes direitos estão integrados nos artigos 16º, 17º, 23º, 24º, 25º, 26º, da DUDH.
O artigo 29º da DUDH [6], estabelece como um dever de cada individuo o respeito universal dos direitos humanos e liberdades fundamentais como necessários para a criação de estabilidade e bem estar entre os homens e que por sua vez são cruciais, para as relações pacíficas e harmoniosas entre as nações, sempre tendo em atenção ao respeito pelo principio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos. A DUDH, portanto, é um conjunto de valores éticos que se impõem ao ser humano, e que segundo o nosso entendimento podem se resumir em: Dignidade humana, significa reconhecer o ser humano igual a nós próprios e por isso, tratá-lo com o respeito que desejamos ser dados. A dignidade é considerada como um princípio da liberdade, da justiça e da paz. A paz significa que os indivíduos, grupos ou Estados devem sempre procurar estabelecer uma convivência pacífica, através da tolerância, do diálogo; igualdade, significa tratamentos iguais às situações idênticas, seja no âmbito econômico, social, cultural como político. Em outros termos quer dizer que aquilo que pretendo para mim não posso não reconhecer como um direito para outra pessoa na mesma situação. Isto significa que ninguém pode tratar e considerar o outro, seja um indivíduo, uma classe social ou um povo, como inferior a si sob pretexto da diferença de cor, sexo, origem social e económica, costumes, descendência. Em nosso entendimento, algumas diferenças humanas, são fontes de valores positivos e, como tal, devem ser protegidas e estimuladas; Liberdade significa que a pessoa deve ser livre de escolher a sua religião, o seu domicílio, o seu grupo de associação, liberdade de ensino, de casamento, política, etc. Esta liberdade compreende tanto a dimensão política, quanto a individual, pois a liberdade política, sem as liberdades individuais, é característica de Estados autoritários ou totalitários.
Os valores contidos na DUDH, se colocam como um ideal comum, a ser seguido por todos, como indivíduos pertencentes a uma sociedade, como instituições, empresas, como sociedade civil, como Estados ou nação.
2. Os Direitos humanos na Constituição da República de Moçambique
A primeira Carta Magna, a Constituição da República Popular de Moçambique, entrou em vigor em 1975, com a institucionalização do Estado moçambicano, através da independência do país. No mesmo ano o país aderiu os princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Carta Africana, para além de reconhecer no artigo 8º a Carta dos Direitos e Deveres Económicos dos Estados adotada pela XXIX sessão da assembleia das Nações Unidas.
2.1. Análise na Constituição da República de Moçambique 1975
Alguns autores, analistas, juristas, acidémicos e jornalistas consideram que os direitos humanos (DH) foram instituídos em Moçambique com a Constituição da República de 1990. No entanto nossa opinião diverge com esses pensadores, pois da análise que fazemos à Constituição da República Popular de 1975,entendemis existirem elementos materiais suficientes para configurá-los como o principio da institucionalização dos direitos humanos em Moçambique.
GOUVEIA[7] subdivide o princípio de Estado democrático, que é âncora dos direitos humanos, nos seguintes subprincípios:
- O princípio da dignidade da pessoa humana;
- O princípio da juridicidade e da constitucionalidade;
- O princípio da separação de poderes;
- O princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança
- o princípio da igualdade;
- o princípio da proporcionalidade,
Baseando-se na classificação feita por Gouveia, entendemos que alguns dos subprincípios elencados por ele, enquadram-se na primeira Constituição da República Moçambique, a destacar: O principio de igualdade, que se encontra reflectida no artigo 26º e que preconiza a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de nenhuma natureza; o princípio da separação de poderes preconizado no Titulo III, do capítulo I a VI: o Princípio da proporcionalidade que se pode aferir no titulo III, relativo aos direitos e deveres fundamentais dos cidadãos; o principio do Estado republicano que aparece enunciado várias vezes no texto constitucional, desde o titulo I que preconiza os princípios gerais ao titulo III que estatui sobre os Órgãos do Estado onde a maioria dos artigos inicia com a expressão “República” deixando sem margens de dúvidas de que Moçambique é um Estado Republicano desde a primeira Constituição; O princípio da laicidade do Estado elencado no artigo 19º que imbui que a República Popular de Moçambique é um Estado Laico, nela existindo a separação absoluta entre o Estado e as instituições religiosas. Por outro lado, o Estado através do artigo 23º da Constituição aceita observa e pratica os princípios da carta da DUDH da ONU e da CADHP da OUA. Sendo em atenção e observância a esses instrumentos que os Títulos I e II incluíam, de forma dispersa, limitada e pouco compreensiva um conjunto de direitos e deveres fundamentais que estavam incorporados nos seguintes artigos:
- Direitos cívicos e políticos, contemplavam os artigos 17º, 26º 27º e 29º 33º, 35º preconizava a igualdade de direitos e deveres de homens e mulheres em todos os domínios e a igualdade de todos, sem distinção de qualquer natureza, a inviolabilidade de domicilio e de correspondência e a liberdade de prática ou não de uma religião, o direito à liberdade de opinião, associação e reunião. o direito à defesa e de não ser preso e submetido à julgamento sem o devido processo legal.
- Direitos económicos, estavam inseridos no artigo 12º e preconizavam o reconhecimento e a garantia pelo Estado, à propriedade pessoal:
- Direitos Sociais e culturais, estavam enquadrados nos artigos 15º, 16º e 32º e preconizavam a promoção da Educação, cultura e personalidades nacionais, o benefício do povo aos cuidados de saúde. o direito a assistência social em caso de incapacidade e velhice. Embora o principio de dignidade humana considerada a base de todos outros direitos e dos direitos humanos em particular, não tenham sido incluídos[8] na Constituição da República de 1975, não se pode em nosso entender se generalizar que os direitos humanos não foram introduzidos, nesta Carta Magna. É, no entanto, de reconhecer que estes preceitos sobre direitos humanos eram neste texto constitucional, pouco compreensivos e muito limitados o que de certa forma contribuiu para a sua má interpretação que propiciou a criação ilegal de normas contra a dignidade humana, como foi o caso da previsão normativa ordinária da pena de morte e de chicotada em 1979 e 1980 respetivamente.
EMÍDIO & CARRILHO[9] defende que, embora a pena de morte tenha sido instituída durante a vigência desta Constituição, ela não era sistematicamente aplicada. Esta não aplicação a nosso ver deve ser o reflexo da aceitação dos preceitos estatuídos nos documentos internacionais e assumidos pelo Estado moçambicano, sobre os direitos humanos.
2.2. Análise da Constituição da República de Moçambique de 1990
A constituição da República de Moçambique de 1990, ampliou e desenvolveu os preceitos sobre direitos humanos introduzidos na Constituição de 1975. Esta ampliação foi em nosso entender o resultado do amadurecimento das instituições jurídicas ora criadas e da participação da sociedade civil no anteprojeto constitucional, abrindo assim caminho para a democracia e concretização da liberdade de expressão e de opinião.
Com o envolvimento de todas as forças vivas da sociedade moçambicana no enriquecimento do texto legal, o resultado foi satisfatório e surpreendente visto que a Constituição da República de 1990, não só clarificou melhor os artigos constantes do primeiro texto constitucional, através da separação dos direitos, deveres e liberdades fundamentais em capítulos que permitiam melhor enquadramento e interpretação, como também trouxe mudanças bastante significativas em matéria de direitos fundamentais. Os direitos fundamentais que no texto legal anterior estavam dispersos ou mesmo omissos, foram separados de acordo com a sua interpretação, podendo assim se distinguir os direitos cívicos, políticos, económicos, sociais e culturais. Para além desta diferenciação dos direitos fundamentais foram acrescentados outros, que consubstanciam a dignidade humana.
GOUVEIA (2015.p.205)[10] explica que a dignidade humana é o “critério da fundamentação do direito, em geral e dos direitos fundamentais em particular”. Desta forma ao incorporar-se o artigo 70º na CRM, que estatui sobre o direito á vida, à integridade física, à proibição da tortura, tratamentos desumanos ou degradantes, abolição da pena de morte; o direito á honra, reputação, imagem e privacidade enquadrado no artigo 71º prestigiou-se o individuo em Moçambique elevando-o ao topo da sua consideração como ser humano que deve ser respeitado. Assim, os direitos humanos fundamentais que na I República eram pouco claros ou mesmo omissos, a partir da Constituição da República de 1990, passaram a ser assumidos e considerados como um valor supremo que incorpora todos os outros direitos de natureza individual, política, social e garantidas formalmente no espirito da letra, à luz dos documentos internacionais e regionais sobre direitos humanos.
Entendemos, por isso, que a incorporação do direito á vida e do direito á integridade física proibindo formalmente a tortura e os tratamentos cruéis e desumanos ou degradantes que os indivíduos acusados de traição à pátria eram sujeitos, assim como, a abolição da pena de morte prevista no paragrafo 2 do artigo 71º e que foi introduzida no quadro legal das penas de 1979, representou em nossa análise, o corolário da valorização da dignidade humana em Moçambique, tendo em consideração que durante a vigência da pena de chicotada e de morte, na I República, a ética, a moral, ou, seja os princípios da dignidade humana não faziam parte do dicionário jurídico sobre direitos humanos para o Estado, visto que as pessoas acusadas de cometer algum crime eram chicoteadas, humilhados ou mesmo executadas, algumas vezes em público, durante os comícios populares obrigatórios e muitas das vezes sem ter o devido processo legal.
A ordem jurídica moçambicana ao preconizar na lei mãe da nação o direito à vida e ao estabelecer a proibição da tortura os tratamentos cruéis e desumanos ou degradantes veio dar garantias para o futuro da irrevogabilidade da decisão do juiz, de abolir a pena de chicotada introduzida no quadro legal das penas de 1980 e da pena de morte introduzida em 1979.
Vale ressaltar que o Estado Moçambicano não era nessa época um caso isolado de aplicação de penas degradantes. Estados como Angola, Portugal, Bélgica, Alemanha, Costa Rica, Cambodja, entre outros, aboliram a pena de morte com o decorrer do tempo. Estando ainda outros, como China, Estados Unidos da América, Japão, Ruanda, Marrocos, Síria, entre outros, apesar de ser signatários da Declaração Universal dos Direitos do Homem, a manter a pena de morte, violando desta forma um dos direitos senão o primeiro direito fundamental do homem.
Os direitos de cidadania previstos no artigo 73º, que garantem aos moçambicanos à participação na vida política e na consolidação da democracia, através do voto, constituem como enfatiza PINHO; NASCIMENTO[11] uma patente que eleva o individuo ao faze-lo membro activo da colectividade. No contexto do artigo 73º da Constituição da República de Moçambique, em análise torna-se cidadão o moçambicano com a capacidade de votar e ser eleito (a partir dos 18 anos), portanto de exercer os direitos políticos. Significa dizer que o sentido de cidadão não se restringe apenas aos moçambicanos cultos, educados, com capacidade de critica e intervenção activa na vida politica, social e económica do país, mas a todos, desde que tenham 18 ou mais anos e participem dos sufrágios universais mesmo sem entender dos seus direitos e deveres consequentes dessa participação no voto democrático.
Os direitos à liberdade, que também fazem parte integrante do direito à cidadania, que no anterior texto constitucional estavam previstos num único artigo e limitados a penas à liberdade de opinião, associação e reunião, foram alargadas e incorporadas novas matérias. É o caso do artigo 74º que previa o pluralismo de informação, criando assim condições para a elaboração e aprovação da Lei de imprensa, em 1991[12] e que contribuiu bastante para a abertura de canais de informação privados, com jornalistas independentes, assim como a formação de massa crítica e abertura das mentes dos cidadãos através de acesso a fontes e meios de informação diversificados e imparciais. O artigo 77º que previa o direito ao pluralismo político criou condições para o reconhecimento do movimento armado Resistência Nacional Moçambicana, (RENAMO) e sua transformação em partido político, assim como o surgimento de mais partidos políticos, com a possibilidade de emitir suas opiniões sobre os actos do governo e da administração, assim como apresentar suas propostas alternativas de governação e participar nas eleições democráticas. O artigo 78º que previa o pluralismo religioso abriu espaço para a tolerância religiosa e o surgimento de novas religiões e ceitas, contribuindo assim para o desenvolvimento da moral e da ética em Moçambique. Portanto os direitos cívicos, políticos, económicos, sociais e culturais foram, duma forma geral alargados abrindo assim espaço para a promoção da cidadania em Moçambique.
2.3. Análise da Constituição da República de Moçambique de 2004, revista em 2018
A Constituição da República de 2004, revista em 2018, consolidou os preceitos sobre direitos humanos, ao deixar patente no paragrafo do preâmbulo do texto constitucional, que “reafirma, desenvolve e aprofunda os princípios fundamentais do Estado moçambicano, consagra o carácter soberano do Estado de Direito Democrático, baseado no pluralismo de expressão, organização partidária, o respeito e garantia dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos”. A defesa e a promoção dos direitos humanos e a igualdade dos cidadãos perante a lei, é um dos objectivos fundamentais estatuídos na alínea e) do artigo 11º, que faz parte do titulo I que alude sobre os princípios fundamentais. O nº 02 do artigo 17º estabelece que a República de Moçambique[13] aceita, observa e aplica os princípios da Carta da Organização das Nações Unidas e da Carta da União Africana , assumindo os direitos humanos fundamentais neles e as garantias dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos conforme o artigo 43º são interpretados e integrados de harmonia com a DUDH e Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos[14] assumindo os direitos humanos fundamentais neles consagrado, numa alusão clara à continuidade da formalização e desenvolvimento dos direitos humanos nos instrumentos jurídicos internos. A formalização e desenvolvimento dos direitos humanos pelo Estado moçambicano vai além da sua Carta Magna, ao ractificar através da Resolução nº 23/2013, de 03 de Maio, o Protocolo Facultativo à Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. Por força do artigo 17 desse Protocolo, que estabelece a criação de um ou mais mecanismos preventivos nacionais independentes para a prevenção da tortura a nível interno, e de exercer a função de monitoramento regular e independente, sobre aplicação dos direitos humanos fundamentais, principalmente nos locais onde se encontrem pessoas privadas de liberdade o Estado atribuiu a Comissão Nacional de Direitos Humanos criada através da Lei no 33/09[15] de 22 de Dezembro, a competência para exercer essa função.
O artigo 43º da CRM, estabelece que os direitos humanos são interpretados de acordo com a Carta das Noções Unidas, sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Carta Africana, sobre os Direitos Humanos e dos povos, dando se assim primazia formal sobre outros tipos de direitos estatuídos na Constituição de Moçambique.
O Titulo III, que preconiza sobre os direitos, deveres e liberdades fundamentais, ampliou as matérias sobre os direitos humanos fundamentais distribuindo-os em cinco capítulos, com um total de 59 artigos, portanto um acréscimo de mais 19 artigos que o texto legal anterior que continha somente 40 artigos. Isto é de acordo com o nosso entendimento uma demonstração clara de que o Estado existe para servir ao homem e não o homem ao Estado circunscrevendo-se assim num Estado de Direito e, portanto, que observa os direitos humanos.
Para a sua melhor compreensão, os direitos fundamentais foram separados de acordo com a sua interpretação, clarificando -se assim os preceitos do texto constitucional.