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Crianças intersexo: Uma realidade indubitável

Análise sobre a intersexualidade em crianças, registro civil, direito de personalidade e identidade

Agenda 04/10/2021 às 18:37

O presente ensaio trata da desmistificação sob o contexto biológico sexual de crianças e pessoas intersexo, visto que primariamente são seres humanos, dignos de gozo de direitos à vida, designação sexual, liberdade e o respeito à sua intimidade.

A sociedade brasileira solidificada no sistema patriarcal casada com um estado precariamente laico passa por uma nova fase afirmativa, qual tem gerado inúmeros questionamentos ultimamente sobre o que seriam as crianças intersexo.

Importante ponderar que o termo “intersexual” é utilizado para descrever a condição sexual biológica de seres humanos que não nascem com as características sexuais biológicas solidificadas pelo conceito binário de masculino e feminino, não se encaixando assim no estereótipo secular restritivo de ser homem ou mulher.

Pautado por estigmas e preconceitos, o presente tema nada mais lida que de uma condição biológica mais comum e mais antiga do que se pode historicizar.

A intersexualidade não se refere à orientação sexual, visto que, por muitos leigos ainda perdura o questionamento sobre a escolha amorosa devida orientação, se é bissexual, homossexual ou se caberia uma transição de pessoa cis para transexual. Este ensaio não entrará neste mérito. Logo se utilizar do termo hermafrodita, uma denominação para seres não-humanos, de espécies que possuem sistemas reprodutores binários é algo extremamente preconceituoso; cabendo ainda investidura paupérrima intelectual e arcaica até mesmo no campo conceituado da medicina e da ciência.

Abrangido ao termo LGBTQIA+, vale lembrar que orientação sexual se define por: lésbicas, gays, bissexuais, pansexual, assexual; identidades de gênero por: transexuais, não binários e pessoas cisgênero; e as questões biológicas, onde se inserem pessoas intersexo. Lembrando que sexo é a definição biológica dos aparelhos reprodutores, pela presença dos cromossomos XY (sexo masculino) e XX (sexo feminino); identidade de gênero é a maneira como a pessoa se identifica, seja homem, mulher, cis, trans, agênero, bigênero, andrógino, inter ou nenhum; orientação: desejo sexual, atração amorosa, hétero, homossexual, bissexual, pansexual, assexual; expressão ou performance de gênero: a maneira como se expressa social e culturalmente, estilo, roupas comportamentos.

A pessoa intersexo nasce com uma condição de sua anatomia reprodutiva ou sexual que não corresponde às definições pela classificação de homem ou mulher[2], logo sendo, são aquelas quais o sexo biológico é variado, desde o sistema biológico de cromossomos, gônadas, hormônios e órgãos externos e internos, o que acaba tornando imprecisa a classificação binária de seu sexo biológico, já sendo mapeadas mais de quarenta[3] casos do tipo.

A condição biológica é tão comum que é comparada a pessoas ruivas e gestações de gêmeos, estando conforme a ONU em até 1,7% dos recém-nascidos, no Brasil estima-se cerca de 167 mil[4]. Ocorre que muitos não nascem com os traços da intersexualidade, sendo desenvolvido apenas durante a adolescência, pela fase da puberdade ou na fase adulta, e ainda há aquelas pessoas em que o segundo sexo nunca se manifesta, o que acaba por classificá-las no rol das que nunca descobrem essa condição biológica.

O Conselho Nacional de Justiça no Provimento n° 122/2021 dispôs sobre essa condição conhecida como Anomalia de Diferenciação de Sexo (ADS), onde as crianças que a apresentassem, poderiam a partir de 12 de setembro próximo findo serem registradas como sexo “ignorado” no registro de nascimento, e mais, adultos a qualquer tempo, realizar a opção de designação de sexo sem necessitar de autorização judicial nem comprovar o feito de cirurgia, tratamento hormonal ou laudo perante qualquer Cartório de Registro Civil. Crianças e adolescentes ainda necessitam de atenção por via judicial.

Normatizar o procedimento, que por via médica segue com a opção de “sexo ignorado” é um passo diante muitos a serem percorridos. Uma mudança que não os adequasse como ignorados, um reconhecimento que não fosse tão diminuto e questionado pela condição biológica. Devendo ser conferido para se assegurar se usufruir e investir de uma condição biopsicológica saudável tanto pelos campos das ciências médico, jurídico e sociais.

A premissa secundária, sendo a primeira do aparato médico, cabe aos registradores civis, que devem orientar as famílias sobre a utilização de um nome neutro e sobre como pode ser requerido o procedimento de designação caso a criança, adolescente ou quando adulto diante a legislação vigente deseje requerê-lo.

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Anterior a normatização de nível nacional, cinco estados haviam instaurado em provimentos estaduais o procedimento e reconhecimento de intersexo, cabendo procedimento e designação por via judiciária sendo: Goiás, Maranhão, Paraná, Rio Grande do Sul e São Paulo.

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Precedente a este feito, do Provimento n° 122/2021, na primeira via, a da saúde, havia uma obrigatoriedade de escolha, uma imposição cirúrgica, não desejando optar no momento para emissão da DNV, ação de afogadilho nem sempre rebuscada de amparo psicológico; não havendo decisão precipitada, a família deveria ingressar via judicial para efetivar o registro da criança, ficando sem a certidão até a decisão, com isso, nada de acesso a direitos fundamentais como plano de saúde, matrícula em creches, vacinas iniciais com cadastro ao SUS entre outros serviços públicos e privados.

Havendo morte se segue a mesma premissa, ficando como intersexo ou haver a designação por parte do declarante, restrito à família, pela mãe ou pelo pai.

O conhecimento traz a certeza de que a condição não é um problema, e sim uma individualidade, o que causa polêmica realmente é a falta de informação e o preconceito, onde se atribui qualquer singularidade biológica sexual a querer questionar ou determinar o preceito de certo e errado pelo molde da família patriarcal.

A desinformação enraizada pressupõe que seja necessário haver uma adequação da identidade psicossocial, o que faz alusão aos desvios que necessitem de cirurgias e/ou terapias hormonais para que se aproximem da semelhança e/ou ideias típicas de masculino e feminino, crime de violação aos direitos humanos. Sendo justo e valoroso haver resistência e empoderamento, bem como auxílio do estado para com as famílias pelas particularidades e intimidade, a segurança e liberdade de seus corpos intersexuais, excluindo a premissa de um ponto de vista estritamente médico.

O Brasil é um país multicultural, plural e diverso, mesmo que não o fosse, a Constituição Brasileira é investida e motivada em seus dispositivos do art. 5° sobre os direitos e garantias fundamentais, e os direitos e deveres individuais e coletivos. Este saber deveria ser primado.

A pré-histórica qualificação e rejeição de pessoas “diferentes” via sacrifício ou exclusão não combina com a sociedade moderna. O fato de uma pessoa ter nascido parcial ou completamente, desenvolvido ou não um sexo que se predomina sobre o outro não é pauta de censura, e sim de conhecimento, de respeito, de amor, pois antes de serem condicionadas a o que ou que lhes cabe a condição biológica sexual, são seres humanos.

Crianças intersexo são o futuro de uma sociedade, são o amanhã, e dependendo de como forem estimuladas, serão apenas o reflexo do hoje. Obrigar, humilhar, impor intervenções e tratamentos médicos forçados, terapias de conversão, hormonioterapias entre outros que as façam se sentirem deslocadas, anormais, já se enquadra para a ONU como uma grave violação dos direitos humanos, podendo ainda ser considerada análoga à tortura e maus-tratos[5].

A defesa quanto ao direito e à autodeterminação de gênero se faz necessária para combater ditas intervenções clínicas desnecessárias, inclusive no Brasil.

Mudanças e reformulações jurídicas devem caminhar pelo mesmo rumo. O justo e igualitário à direitos e liberdade que ordena a constituinte não deve se investir por censo ao arcabouço jurídico da lide, mas sim atender as transformações dos fatos jurídicos personalizados expressamente pelo reforço e estímulo de cidadania como garantia pétrea, sendo inseridas normas à Lei de Registros Públicos, afirmando e impondo o respeito pela escolha, pela vida! Seja defeso e inquestionável o direito de escolha!  

Pelos Direitos da Esfera Civil! E Princípios de Dignidade Humana!

Referências bibliográficas

CNJ – PROVIMENTO 122/2021. 13/08/2021. https://atos.cnj.jus.br/files/original1928372021082061200265ce7e7.pdf. Acesso em 03/10/2021.

CNJ. 24/08/20201. https://www.cnj.jus.br/novas-regras-permitem-registrar-criancas-com-o-sexo-ignorado-na-dnv/. Acesso em 03/10/2021.

COSTA, Anderson, 26/10/2019. https://www.grupodignidade.org.br/intersex-o-que-voce-precisa-saber-sobre-o-i-em-lgbti-no-dia-da-visibilidade-intersexual/. Acesso em 03/10/2021.

PANEK, Lucas. 17/2015 - https://medium.com/n%C3%A3o-faz-a-fr%C3%ADgida/o-que-%C3%A9-sexo-identidade-de-g%C3%AAnero-e-orienta%C3%A7%C3%A3o-sexual-9a3a361b31e. Acesso em 03/10/2021.

DE ALMEIDA, José Eulário Figueiredo. 05/2019 -  https://jus.com.br/artigos/73878/o-direito-do-intersexual-a-identidade-de-genero-e-ao-registro-civil. Acesso em 03/10/2021.

[1]

[2] (Sociedade Intersexo da América do Norte, 2008)

[3] https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2019/07/18/nem-rosa-nem-azul-como-e-ser-pessoa-intersexo-no-brasil.htm

[4] https://www.otempo.com.br/interessa/intersexuais-sao-167-mil-mas-ainda-estao-invisiveis-1.1244669

[5]O posicionamento do organismo internacional foi apresentado pelo ACNUDH ao Conselho de Direitos Humanos da ONU em relatório de 2015. Estudos coletados pelo Alto Comissariado indicam que de 0,05% a 1,7% da população nasce com características intersexuais

Sobre a autora
Iasmim Aoki

Poetisa. Escritora, Pesquisadora Incansável. "Me permito transportar-me além do científico para explicar a motivação Partindo da premissa que de nada sei desta existência Onde sou mais um instrumento divino a quem cabe uma missão, Busco relembrar e reviver pela fome do saber Tudo o que julgo saber me permito desmistificar Que seja para reaprender a ser humana Pois sei da minha imutável mutabilidade cósmica universal" autora: Iasmim Aoki

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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