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Bioética: entre autonomia e dignidade da pessoa humana na relação médico-paciente

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Agenda 06/10/2021 às 10:27

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A bioética é um ramo das ciências que tem se consolidado recentemente, afinal, como toda ciência, evolui a partir do surgimento dos problemas inerentes ao seu campo de ação. Logo, é apenas com o desenvolvimento das ciências médicas em um primeiro momento que a bioética pode evoluir em um momento posterior. Este capítulo buscou apresentar como o princípio da autonomia na bioética possui íntima relação com o princípio jurídico-filosófico da dignidade da pessoa humana. E que considerados em conjunto se tornam ferramenta de proteção e complementação recíproca nos casos práticos da vivência médica e jurídica.

Foi analisada a Declaração Universal sobre bioética e direitos humanos e se constatou a valorização neste documento da autonomia do paciente e de sua dignidade, devendo ela ser considerada como um meio de diálogo com a Constituição Federal de 1988 para a tomada de decisão nas matérias sobre bioéticas entre todos os interessados e na sociedade como um todo. Portanto, se observou a necessidade de, tanto as normativas nacionais, quanto a atuação do Poder Judiciário, considerarem necessária a realização da autonomia pelo paciente como um direito, que assegura a proteção da dignidade da pessoa humana. Neste sentido se concentrou a análise de duas importantes resoluções do Conselho Federal de Medicina e da decisão acerca da ortotanásia no Tribunal do Rio Grande do Sul.

Como exposto anteriormente, o princípio da dignidade da pessoa humana é um dos grandes consensos éticos do mundo ocidental. O princípio está presente em inúmeras normativas nacionais e internacionais, além de ser um vocábulo constante da práxis jurídica. Como visto nos casos deste capítulo, quando a contenda envolvendo lacunas no ordenamento jurídico, ambiguidades no direito, colisões entre direitos fundamentais e tensões entre direitos e metas coletivas, a dignidade humana pode ser uma boa bússola na busca da melhor solução (BARROSO; MELLO, 2015, p. 43). De fato, no plano dos direitos individuais, a dignidade se expressa na própria autonomia do sujeito, que decorre da sua liberdade. Integra o conteúdo da dignidade a autodeterminação individual e o direito de igual respeito e consideração. Transpondo para a relação médico-paciente, percebe-se que o enfermo tem o direito de eleger, bem informado pelo seu médico, seu tratamento de forma fundamentada, além de não sofrer discriminações em razão de sua escolha. Tal perspectiva abre espaço, portanto, para que a reflexão sobre dignidade humana na Declaração e na Constituição seja utilizada como instrumento para a resolução de problemas concretos da relação médico-paciente.

No caso da autonomia, sua preservação é um dos pontos centrais no debate bioético sobre o papel do enfermo na relação médico-paciente. A autonomia normalmente reforça a ideia de que uma pessoa consciente tem o direito, em certas circunstâncias, de escolher (ou não) certo tratamento. Afinal, após uma reflexão ponderada, ela constata que o ônus de um procedimento médico não é proporcional à chance de sucesso. Pois, quando dois direitos individuais (como a vida e a dignidade) da mesma pessoa estão em conflito é razoável e desejável que o Estado resguarde a autonomia pessoal. Afinal de contas, o Estado deve respeitar as escolhas de uma pessoa quando é a sua própria tragédia que está em jogo vida (BARROSO; MELLO, 2015, p. 58). Por fim, entende-se que ser autônomo não é sinônimo de respeito a um paciente autônomo. O respeito a um agente autônomo é reconhecer que existem capacidades e perspectivas pessoais, incluindo o direito do paciente em ponderar e fazer escolhas, para tomar atitudes baseadas em valores e convicções próprias. Esse respeito à autonomia envolve considerar o agente como um fim em si mesmo. Portanto uma teoria bioética deve estar orientada tanto para os pressupostos morais da realização do princípio autonomia – enquanto elemento necessário à proteção do princípio da dignidade da pessoa humana – quando para suprir as carências matérias e jurídicas necessárias a realização destes princípios.


REFERÊNCIAS

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Notas

1 Ainda que o Artigo 15 do Código Civil de 2002 expresse que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”, o entendimento é que este dispositivo não traduz uma proteção suficiente da autonomia que se deseja na bioética. Afinal, autonomia também se faz presente em aceitar ou recusar qualquer procedimento, independente se comportam risco de vida.

2 “A humanidade é ela própria uma dignidade, pois o homem não pode ser usado por nenhum homem (nem pelos outros nem sequer por si mesmo) apenas como meio, mas tem sempre de ser ao mesmo tempo usado como fim, e nisto (a personalidade) consiste propriamente sua dignidade, por meio da qual ele se eleva sobre todos os outros seres do mundo que não são homens e que podem certamente ser usados; e eleva-se, portanto, sobre todas as coisas. Logo, assim como ele não pode alienar-se a si próprio por preço algum (o que seria contrário ao dever de autoestima), do mesmo modo ele não pode agir contra a autoestima igualmente necessária dos outros enquanto homens, isto é, o homem é obrigado a reconhecer praticamente a dignidade da humanidade em todos os outros homens, portanto, radica nele um dever que se refere ao respeito que se tem necessariamente de mostrar por todo outro homem.” (KANT, 2013. p. 232).

3 Na Fundamentação da metafísica dos costumes Kant apresenta três formulações do imperativo categórico. A primeira busca indicar a possibilidade de a máxima universalizar-se: “age apenas segundo uma máxima tal que possas, ao mesmo tempo, querer que ela se torne lei universal.” A segunda formulação indica a fórmula do homem como fim em si mesmo: “age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente, como fim e nunca simplesmente como meio.” E a terceira formulação trata a respeito especificamente sobre a autonomia: “age de tal maneira que a vontade pela sua máxima se possa considerar a si mesma, ao mesmo tempo, como legisladora universal.” (KANT, 1986, p. 76).

4 Artigo 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III - a dignidade da pessoa humana.

5 Artigo 1º- Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.

6 Artigo 3º Dignidade humana e direitos humanos: 1. A dignidade humana, os direitos humanos e as liberdades fundamentais devem ser plenamente respeitados. 2. Os interesses e o bem-estar do indivíduo devem prevalecer sobre o interesse exclusivo da ciência ou da sociedade

7 Artigo 5º Autonomia e responsabilidade individual: A autonomia das pessoas no que respeita à tomada de decisões, desde que assumam a respectiva responsabilidade e respeitem a autonomia dos outros, deve ser respeitada. No caso das pessoas incapazes de exercer a sua autonomia, devem ser tomadas medidas especiais para proteger os seus direitos e interesses.

8 Artigo 6º Consentimento: 1. Qualquer intervenção médica de carácter preventivo, diagnóstico ou terapêutico só deve ser realizada com o consentimento prévio, livre e esclarecido da pessoa em causa, com base em informação adequada. Quando apropriado, o consentimento deve ser expresso e a pessoa em causa pode retirá-lo a qualquer momento e por qualquer razão, sem que daí resulte para ela qualquer desvantagem ou prejuízo

9 Artigo 10º Igualdade, justiça e equidade: A igualdade fundamental de todos os seres humanos em dignidade e em direitos deve ser respeitada para que eles sejam tratados de forma justa e equitativa.

10 Entretanto, ainda que em uma primeira leitura se esteja vinculado a concordar com a posição do Conselho Federal de Medicina, esta resolução foi objeto de disputa na Ação Civil Pública 2007.34.00.014809-3. Nesta ação, o Ministério Público Federal contra o Conselho Federal de Medicina pleiteou o reconhecimento da nulidade da Resolução e alternativamente sua alteração a fim de que se definam critérios a serem seguidos para a prática da ortotanásia. Em sentença, o julgador entendeu que a Resolução regulamenta a possibilidade de o médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis, e que esta concepção não ofende o ordenamento jurídico posto. Além disso, afirmou-se que a Resolução tem o condão de incentivar os médicos a descrever exatamente os procedimentos que adotam e os que deixam de adotar, em relação a pacientes terminais, permitindo maior transparência em sua atuação e possibilitando inclusive maior controle de sua atividade. Também na decisão, o julgador afirma que o princípio da autonomia reclama o envolvimento consciente do paciente no processo terapêutico e propugna o respeito às suas decisões. Nesse prisma, para resguardar o princípio da autonomia no tratamento oferecido aos pacientes terminais, que, em geral, não apresentam estados mentais que permitam decidir conscientemente sobre as terapias possíveis, é sempre necessário recorrer à decisão da família ou do responsável legal, que passam a "falar" pelo paciente. Salienta o julgador que a Resolução obedece a esse princípio, estabelecendo que o próprio paciente terminal ou sua família devem estar conscientemente envolvidos na decisão de suspender cuidados extraordinários que já não se mostrem úteis, uma vez considerado irreversível o processo de morte. E sempre terão direito a recorrer a outras opiniões médicas, caso não se sintam suficientemente esclarecidos para tomar esta ou aquela diretriz. A medicina deixa, por conseguinte, uma era paternalista, super-protetora, que canalizava sua atenção apenas para a doença e não para o doente, numa verdadeira obsessão pela cura a qualquer custo, e passa a uma fase de preocupação maior com o bem-estar do ser humano.

11 No campo do testamento vital, a autonomia de vontade está intimamente interligada ao biodireito e a bioética. Nesse contexto o princípio da autonomia garante ao indivíduo escolher qual será o tratamento médico que ele vai querer realizar no caso de uma doença terminal, momento que talvez não tenha mais a capacidade de se autodeterminar, devendo, portanto, ser respeitado, em suas as decisões. Os avanços tecnológicos e medicinais têm o condão muitas vezes apenas de manter a pessoa viva, sem qualquer esperança de uma cura, nesse caso está ocorrendo apenas uma sobrevida e não uma vida com dignidade. É nessa seara que cabe ao indivíduo, com fundamento no princípio da autonomia da vontade, escolher se quer ser submetido a esses tratamentos ou se quer exercer o seu direito de ter uma morte digna, sem o prolongamento de seu sofrimento (UREL, 2016, p. 101).

12 Esta Resolução do Conselho Federal de Medicina também foi alvo de pedido de nulidade do Ministério Público Federal, no Estado de Goiás, na Ação Civil Pública 1039-86.2013.4.01.3500. Na decisão acerca do pedido de tutela antecipada, o julgador entendeu que o Conselho Federal de Medicina não extrapolou os seus poderes normativos, apenas regulamentando a conduta médica ética perante a situação fática de o paciente externar a sua vontade quanto aos cuidados e tratamentos médicos que deseja receber ou não na hipótese de encontrar em estado terminável e irremediável. Ainda, o julgador afirmou que a Resolução é constitucional e se coaduna com o princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que assegura ao paciente em estado terminal o recebimento de cuidados paliativos, sem o submeter, contra a sua vontade, a tratamentos que prolonguem o seu sofrimento e não mais tragam qualquer benefício.

13 No seu voto, o eminente Desembargador buscou a seguinte diferenciação entre eutanásia, ortotanásia e distanásia: (a) a eutanásia, também chamada “boa morte”, suicídio assistido, assim entendida aquela em que o paciente, sabendo que a doença é incurável ou ostenta situação que o levará a não ter condições mínimas de uma vida digna, solicita ao médico ou a terceiro que o mate, com o objetivo de evitar o sofrimento que o desenvolvimento da moléstia trará, o que a legislação brasileira não permite; (b) a ortotanásia, que vem a ser a morte no seu devido tempo, sem prolongar o sofrimento, morte sem prolongar a vida por meios artificiais, ou além do que seria o processo natural, o que vem sendo entendido como possível pela legislação brasileira, quer dizer, o médico não é obrigado a submeter o paciente à distanásia para tentar salvar a vida; (c) a distanásia, também chamada “obstinação terapêutica” e “futilidade médica”, pela qual tudo deve ser feito, mesmo que o tratamento seja inútil e cause sofrimento atroz ao paciente terminal, quer dizer, na realidade não objetiva prolongar a vida, mas o processo de morte, e por isso também é chamada de “morte lenta”, motivo pelo qual admite-se que o médico suspenda procedimentos e tratamentos, garantindo apenas os cuidados necessários para aliviar as dores, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal (2013, p. 4-5).

14 Artigo 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]

15 No contexto da morte com dignidade, o então Chief Justice Earl Warren, fez referência expressa à dignidade humana no seu voto divergente em Cruzan vs. Director Missouri Department of Health, um caso no qual a Suprema Corte recusou autorização para o término de um tratamento médico que mantinha viva uma mulher já há muitos anos em estado de coma vegetativo (BARROSO, MELLO, 2015, p. 40).

Sobre o autor
César Augusto Cichelero

Professor e Coordenador do curso de Direito da Faculdade de Integração do Ensino Superior do Cone Sul (FISUL). Doutorando em Ciências Criminais na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com bolsa CAPES. Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS) (2018), com bolsa CAPES e integrando o grupo de pesquisa Metamorfose Jurídica. Bacharel em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS) (2016), com bolsa PIBIC/CNPq e integrando o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas Sociais (NEPPPS). Advogado e colunista.

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Publicado originalmente em: https://www.editorafi.org/xviippg

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