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Bioética: autonomia, dignidade da pessoa humana e reconhecimento

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Agenda 06/10/2021 às 10:28

1. Considerações iniciais: Bioética e o Princípio da Autonomia

As profundas transformações tecnológicas da modernidade estão modificando não apenas as interações sociais, mas também a relação entre o indivíduo, seu corpo e sua saúde. Nesse embate entra em cena a bioética, como parte do ramo filosófico-prático da ética, esta área tem como objeto as questões referentes à vida humana e, também, a morte (SEGRE, 2008, p. 27). Por tratar do tão complexo tema da vida humana, a bioética se apresenta como condição possibilidade para uma grande interdisciplinaridade, no caso desse capítulo, especialmente, com as ciências jurídicas.

A discussão acerca da bioética e a busca pelo estabelecimento de fundamentos éticos capazes de guiar a atuação dos médicos nasceram, justamente, em uma sociedade marcada pelo questionamento acerca dos benefícios trazidos pelos avanços científicos. Relacionado a isso, destaca-se a consolidação do paradigma hospitalar, que transferiu a morte domiciliar para dentro dos hospitais, além do surgimento das técnicas de transplante de órgãos e manutenção do funcionamento das atividades corporais (pós morte cerebral) por equipamentos, redefiniram o que se entende por vida e morte.

O constante desenvolvimento das ciências médicas traz consigo incertezas que a humanidade não possuía até então. Some a isso o fato de que a era da informação – através de melhores recursos tecnológicos e acesso fácil ao conhecimento da internet – transformou os pacientes. Grandes dúvidas que podem surgir seriam, os especialistas nas ciências médicas têm o poder de decisão nos tratamentos? Deve-se garantir aos pacientes autonomia – ainda que leiga – na escolha de como lidar com a doença? Os pacientes estão em condições de decidir, e assumir a responsabilidade da decisão, frente a tão complexo conhecimento?

Isto posto, a ética (compreendendo a bioética) e o direito se tornam as esferas de proteção do indivíduo-paciente frente ao mundo cientificado, hospitalizado e medicalizado, pois de ambos emanam as normas, morais e jurídicas, que tornam possível a realização da a autonomia do paciente e o respeito a sua dignidade. O objetivo deste capítulo, portanto, é analisar como a autonomia do paciente frente à expertise médica se traduz em proteção ao princípio da dignidade da pessoa humana. No mesmo sentido, será defendida a ideia de que não basta que a relação médico-paciente seja pautada por princípios de autonomia e respeito à dignidade, também é necessária uma proteção estatal, tanto normativa1 quanto jurisdicional, que sustente esse posicionamento bioético.

Como metodologia utilizou-se o método analítico e o procedimento de revisão bibliográfica de obras especializadas, além de normativas diversas e decisões jurisprudenciais. Desta forma, pretende-se buscar uma fundamentação multidisciplinar à autonomia do enfermo na relação médico-paciente, apoiando este estudo tanto na esfera jurídica quanto filosófica.

A consolidação dos princípios na bioética representou a busca da construção de uma ética normativa prática capaz de orientar os médicos sobre o que seria eticamente razoável diante dos novos questionamentos que avanços da ciência da saúde proporcionou na modernidade. Nas palavras de Segre (2008, p. 35) “sempre que se procurar estabelecer ‘princípios’, na verdade se está querendo erigir uma norma, uma regra, enfim, um Norte, que venha ao encontro do que nós sentimos serem nossas tendências”. A bioética tem como base três princípios, o princípio da autonomia, da beneficência e da justiça (COHEN; MARCOLINO, 2008, p. 84). Para melhor fundamentar as discussões deste capítulo, será delimitado como se compreende o princípio da autonomia. Inicia-se por explicar o desrespeito a este princípio:

Pensamos que na relação médico-paciente podem surgir duas possibilidades: numa, o médico ignora a possibilidade do exercício da autonomia de um paciente, e na outra ele passa a considera-la. Na primeira, tolhe a liberdade do paciente, não lhe permitindo optar, e, na segunda, não leva em consideração a necessário competência para o exercício da autonomia, desconsiderando a possibilidade do paciente não ser competente. Essas atitudes, que parecem diferentes, eticamente, na realidade são semelhantes, pois partem de um mesmo princípio, isto é, de que o médico não consegue ser autônomo, mostrando-se incapaz de lidar com esse tipo de conflito, qual seja, o dos limites impostos à autonomia. Nesse sentido, podemos dizer que o médico, quando não for autônomo, recorre a justificativas moralistas. (COHEN; MARCOLINO, 2008, p. 88)

O princípio da autonomia constitui uma das bases da bioética. A análise etimológica do termo sugere que autônomo é quem define a sua própria lei. Essa primeira análise remete à uma vinculação com a razão, onde o sujeito define seu projeto de vida e busca realiza-lo, compreendendo as consequências de seus atos. Logo, a autonomia é um pressuposto para empreender uma vida ética, tanto reflexiva quanto socialmente construída. Como indica Segre (2008, p. 37), “a ideia de autonomia é conquista recente. O respeito à individualidade, o reconhecimento de o outro poder pensar e sentir à sua maneira, e de ser respeitado sob esse aspecto, delineou-se durante o Iluminismo europeu”.

Diante disso, o respeito ao princípio da autonomia exige que se possibilite ao paciente ter suas próprias opiniões, com o intuito de que possa fazer suas próprias opções e agir de acordo com seus valores e crenças pessoais. Todavia, o agente somente terá essa capacidade, de fazer escolhas com autonomia, se lhe forem reveladas todas as informações necessárias para que se possa raciocinar de modo livre. Coloca-se, assim, no plano da autonomia, a necessidade de uma prestação positiva por parte dos médicos. A informação revelada por estes profissionais deve ser clara e suficiente para que o paciente possa avaliar e ponderar suas possibilidades de escolha, de modo a ser capaz de consentir ou refutar, de forma fundamentada através de um juízo consciente e autônomo. Para tanto, o que se expressa neste ponto, é que a comunicação do médico com o paciente aconteça de uma forma que este possa entender o que é dito por aquele, deve ser analisado aqui as limitações sociais, culturais e econômicas do paciente. Nesse sentido:

o exercício da autonomia mostra-se, dentro de uma certa medida, condicionado, em primeiro lugar pelo reconhecimento da sua existência e em segundo pela necessidade de uma capacidade para exercê-la; e finalmente, pela possibilidade de existirem elementos para permitir uma opção. (COHEN; MARCOLINO, 2008, p. 86)

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O princípio da autonomia, então, está intimamente ligado à escolha reflexiva individual, não devendo, porém, ser entendido concretizado somente quando acontece uma rejeição da autoridade do médico por parte do paciente, afinal esta autoridade pode ser aceita de forma autônoma. Necessário salientar que a importância concedida ao princípio da autonomia se posiciona na relação estabelecida entre o direito e a moral, por intermédio da ideia de liberdade. O valor da liberdade constitui premissa fundamental para que as sociedades liberais possam se estruturar, afinal, o Estado moderno de direito deita suas raízes no reconhecimento da liberdade individual, que somente pode ser restringida através de normas e em favor da proteção da liberdade dos demais. Portanto, “o princípio da autonomia não dá liberdade absoluta, ele determina o quanto uma pessoa pode estar livre. Esse princípio está ligado às condições impostas pelos outros dois princípios da Bioética” (COHEN; MARCOLINO, 2008, p. 89). Logo, a compreensão da autonomia na relação médico-paciente, entende que ambos devem ser competentes e, como consequência, livres para poderem avaliar as opções possíveis, o que permite uma escolha consciente e fundamentada.


2. A relação entre autonomia e a dignidade da pessoa humana

A Constituição Federal Brasileira de 1988, ao instituir o Estado Democrático de Direito, consagrou em seu artigo 1º, inciso III2, como fundamento a dignidade da pessoa humana. O valor da dignidade da pessoa humana – tal qual se compreende na sociedade moderna – encontra sua primeira referência na filosofia kantiana. Esta dignidade é fruto do racionalismo que determina a pessoa como fim em si mesmo3. Portanto, na razão está a base para uma dignidade secularizada e comum a todos os seres humanos. Decorre disso, que o indivíduo tem dignidade, quando age de forma livre, responsável e racionalmente motivada. Na mesma linha, na Declaração Universal da ONU4 verifica-se que o elemento nuclear da noção de dignidade da pessoa humana parece continuar sendo reconduzido primordialmente à matriz kantiana, centrando-se, portanto, na autonomia e no direito de autodeterminação da pessoa (SARLET, 2009, p. 22).

Nesse ponto, é necessário destacar que com isso não se está buscando uma simples equiparação, ao contrário, a pretensão é demonstrar a intrínseca ligação entre as ideias de liberdade a dignidade. É a liberdade e o reconhecimento, assim como a garantia de direitos de liberdade (e dos direitos fundamentais de um modo geral), que constituem uma das principais (mas não a única) exigências da dignidade da pessoa humana. Indo além do exposto, a dignidade da pessoa humana implica uma obrigação geral de respeito pelo outro (pelo seu valor intrínseco como pessoa humana), traduzida numa gama de deveres e direitos, de natureza não meramente instrumental, mas sim, relativos a um conjunto de bens indispensáveis ao “florescimento humano”. Afinal, a dignidade da pessoa humana apenas faz sentido no âmbito da intersubjetividade e da pluralidade. Sustenta-se, então, que a dignidade possui uma dupla dimensão, ela se manifesta como expressão da autonomia da pessoa humana (vinculada à ideia de autodeterminação), e como na necessidade de sua proteção (assistência) por parte da comunidade e do Estado (SARLET, 2009, p. 23-30). Logo,

tem-se por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos (SARLET, 2009, p. 37).

“Como um valor fundamental que é também um princípio constitucional, a dignidade humana funciona tanto como justificação moral quanto como fundamento jurídico-normativo dos direitos fundamentais” (BARROSO, 2015, p. 43). Assim, os direitos humanos devem ser interpretados tendo como parâmetro o valor da dignidade da pessoa humana – entendendo-se que este princípio não possui natureza metafísica, mas estruturante e hermenêutica –, o que impõe a sua máxima realização e observância plena. Em outras palavras, é exatamente pelo fato de os direitos humanos explicitarem o conteúdo axiológico da noção de dignidade da pessoa humana é que eles são considerados fundamentais, devendo ser realizados na maior medida possível.

Deste modo, o entendimento é de que sem o respeito pela liberdade, autodeterminação, autonomia e demais direitos humanos – definidos como sendo fundamentais –, não é possível que se fale em respeito pela dignidade da pessoa humana. Contudo, o que se observa é que boa parte destes direitos correspondem a formas novas, deduzidas do princípio da dignidade da pessoa humana, encontrando-se intimamente vinculados à ideia da liberdade-autonomia e da proteção da vida contra interferências por parte do Estado e de particulares. Dessa maneira, o que ocorre é a reinvindicação de novas liberdades fundamentais, cujo reconhecimento se faz necessário em face dos impactos da sociedade cada vez mais industrializada e tecnológica da modernidade5.

Na esfera da bioética, o princípio da dignidade da pessoa humana constitui, igualmente, o fundamento que legitima o conteúdo dos valores indispensáveis ao respeito do ser humano, e, assim sendo, relaciona-se diretamente com a dimensão axiológica dos direitos humanos. Logo, é a ideia de dignidade da pessoa humana que define (condiciona) os princípios que devem ser observados de forma indispensável no campo da medicina, instituindo, portando, os limites à bioética e determinando que, tanto o direito como a ética, visem ao fim de proteger o núcleo da dignidade da pessoa humana dos atores envolvidos na relação médico-paciente.

Em sintonia com a linha argumentativa deste capítulo, observa-se que em outubro de 2005, a Conferência Geral da UNESCO adotou por aclamação a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. Por intermédio desta os Estados-membros se comprometeram a respeitar e aplicar os princípios fundamentais da bioética condensados em um texto único. A Declaração trata de questões éticas levantadas pela medicina, outras ciências da vida e tecnologias que estão associadas e são aplicadas aos seres humanos. Como o seu título indica, a Declaração incorpora princípios que enunciam as regras que norteiam o respeito pela dignidade humana, pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. Ao consagrar a bioética entre os direitos humanos fundamentais no plano internacional e ao garantir o respeito pela vida dos seres humanos, a Declaração reconhece a ligação que existe entre ética e direitos humanos na esfera da bioética.

A Declaração também reconhece que as questões éticas suscitadas pelos rápidos e constantes progressos da ciência e suas aplicações tecnológicas devem ser examinadas tendo o devido respeito pela dignidade da pessoa humana e o respeito universal e efetivo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. Tendo o exposto em vista, foram elencados diversos objetivos e princípios, para o propósito deste trabalho observamos o disposto na alínea c, do artigo 2º, na qual um dos objetivos é “contribuir para o respeito pela dignidade humana e proteger os direitos humanos, garantindo o respeito pela vida dos seres humanos e as liberdades fundamentais, de modo compatível com o direito internacional relativo aos direitos humanos”. Além disso, pontua-se os seguintes princípios: dignidade humana e direitos humanos6; autonomia e responsabilidade individual7; consentimento8; igualdade, justiça e equidade9.

Após a análise da Declaração, resta claro seu intuito de – ainda que reconhecendo o pluralismo e a diversidade cultural – buscar estabelecer princípios bioéticos que possam ser universalmente aplicados, ou seja, o que a Declaração busca é uma interpretação universal dos direitos humanos à luz da bioética. O respeito por tais princípios deriva diretamente da noção de dignidade humana, tendo em vista que os pacientes não podem ser reificados e tratados como meios para os fins da prática médica. No entanto, a Declaração considera que a autonomia comporte uma dimensão de responsabilidade pessoal em relação aos outros, que de certo modo constitui um limitador. Em outras palavras, existe um direito a autonomia individual sem que o indivíduo (paciente ou médico) esteja livre da responsabilidade pelos seus atos e suas consequências.


3. Dignidade e autonomia: posicionamentos nacionais

Na tentativa de transpassar este estudo para um campo mais prático e nacional, será discutido nesta seção posições do Conselho Federal de Medicina e do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul no sentido de ser concedido (como direito) aos pacientes maior autonomia. Antes, importante frisar comentário do Ministro Barroso, que entende que uma postura legislativa e doutrinária, que não observa os princípios que foram discutidos neste capítulo, pode produzir consequências graves. Com essa posição, o Estado endossa um modelo médico paternalista, que se funda na autoridade do profissional da medicina sobre o paciente e descaracteriza a condição de pessoa humana do enfermo. Ainda que os médicos não mais estejam vinculados eticamente a esse modelo superado de relação, o medo de uma possível sanção estatal, caso não ajam de forma proativa, pode levá-los a adotar esse comportamento. Assim, os médicos não apenas manterão ou iniciarão um tratamento indesejado, gerador de agonia e sofrimento, como, por vezes, adotarão algum método não recomendado pela boa técnica, por sua desproporcionalidade ao paciente. Desse modo, a arte de curar e de evitar o sofrimento se transforma, então, na mera prática de prolongar a vida a qualquer custo e sob quaisquer condições. Nessa perspectiva, não é apenas a autonomia do paciente que é agredida, mas, também, a liberdade de consciência do médico pode também estar ameaçada (BARROSO; MARTEL, 2010, p. 243).

Tendo em vista esse panorama nacional de certa carência legislativa, doutrinária e jurisprudencial, o Conselho Federal de Medicina posicionou-se por meio de duas Resoluções que serão tratadas na sequência. Primeiramente, se observa a Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.805 de 2006, neste documento é visível a posição em favor de uma relação médico-paciente com maior autonomia a ambos os atores:

Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.

§ 1º O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação.

§ 2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário.

§ 3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião médica. (CFM, 2006, grifo nosso).

Art. 2º O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar.

Os destaques realizados neste artigo demonstram a materialização do princípio da autonomia, afinal o paciente deve ter a sua vontade respeita pelo médico. Além disso, denota-se a necessidade do acesso à informacao de seu estado de saúde e das possibilidades de tratamento, afinal uma decisão às cegas não poderia ser considerada, nos termos deste capítulo, autonomia. Também, a própria necessidade desta decisão ser fundamentada observa o caráter racional da autonomia e do respeito à dignidade da pessoa humana10.

Em análise da Resolução nº 1.995 do Conselho Federal de Medicina, publicada em 2012, observa-se a introdução da temática das diretivas antecipadas de vontade ou “testamento vital”. Ainda que não seja objeto deste estudo a discussão acerca do testamento vital11, deve-se analisar a Resolução, visto que o Conselho novamente se posiciona no sentido de conceder maior autonomia ao paciente:

Art. 1º Definir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade (CFM, 2012)12.

Com a observância destas duas Resoluções e de suas judicializações inclusive, os comentários que surgiram na doutrina pátria evoluíram na discussão desta temática – bioética, biodireito, autonomia e dignidade da pessoa humana – o que de certa, culmina em decisão inovadora proferida pelo Relator Desembargador Irineu Mariani do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul na Apelação Cível nº 70054988266. Neste caso, o paciente estava com um processo de necrose no pé esquerdo e, segundo o médico, a solução seria amputá-lo, sob pena de o processo infeccioso avançar e provocar a morte do referido. Contudo este se recusava com a opção de tratamento (amputação), aceitando que a doença prosseguisse de forma natural. Na ocasião, o Ministério Público ingressou com pedido de alvará judicial para suprimir a vontade do paciente, com o intuito de que o procedimento fosse realizado. Em primeira instância, o juízo singular indeferiu o pedido, argumentando que “não se trata de doença recente e o paciente é pessoa capaz, tendo livre escolha para agir e, provavelmente, consciência das eventuais consequências, não cabendo ao Estado tal interferência, ainda que porventura possa vir a ocorrer o resultado morte” (ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, 2013, p. 2).

O Ministério Público apresentou apelação e em seu voto, o mencionado Desembargador entendeu que o caso sub judice estava inserido na dimensão da ortotanásia13. Ou seja, se o paciente se recusa ao ato cirúrgico mutilatório, o Estado não pode invadir essa esfera e procedê-lo contra a sua vontade, mesmo que o seja com o objetivo nobre de salvar sua vida. Ainda na fundamentação, o Desembargador considerou que o direito à vida garantido no art. 5º, caput14, deve ser combinado com o princípio da dignidade da pessoa15, previsto no art. 2º, III, ambos da Constituição Federal, em outras palavras, vida com dignidade ou razoável qualidade. Logo, em relação ao seu titular, o direito à vida não é absoluto, pois não existe a obrigação constitucional de viver, haja vista que, por exemplo, que o Código Penal não criminaliza a tentativa de suicídio. Nessa ordem de ideias, a Constituição institui o direito à vida, não o dever à vida, razão pela qual não se admite que o paciente seja obrigado a se submeter a cirurgia ou tratamento (ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, 2013, p. 5-6).

No mesmo sentido dessa decisão, a Desembargadora Evangelina Castilho Duarte, também se posicionou em artigo publicado. Ela entende que as ciências médicas não possuem os meios necessários para fornecer a certeza de eficácia dos tratamentos e de obtenção de cura, desse modo, o paciente deve ter a opção entre se submeter, ou não, às prescrições médicas, como senhor da sua vida. Logo, a vontade do médico não pode se sobrepor à intenção do paciente. Afinal, é inadmissível que o médico, até por vaidade profissional, prolongue tratamento que não levará o paciente à cura, nem aliviará o seu sofrimento, de certo ocorre o contrário, estas medidas apenas mantém o paciente vivo sem dignidade e sem perspectiva de melhora (DUARTE, 2012, p. 21-22). De forma ainda mais expressa, o Ministro Barroso, “minha inequívoca convicção é que a comunidade e o Estado não devem ter o direito de impor suas concepções moralistas e paternalistas sobre alguém que é vítima de um sofrimento desesperançado e está próximo do fim da sua vida” (BARROSO; MELLO, 2015, p. 57).

Então, o que se deduz do estudo da práxis jurídica frente as resoluções do Conselho Federal de Medicina e do caso concreto do Tribunal gaúcho é que mesmo havendo divergências na busca de uma definição do conteúdo da dignidade da pessoa humana, não há como refutar que a dignidade tem alcançado um grande protagonismo. Sendo assim, quando o Poder Judiciário é provocado a se manifestar na solução de determinado conflito versando sobre a dignidade humana, deve extrair todas as consequências jurídicas necessárias para se assegurar um mínimo de segurança jurídica (CAMBI; PADILHA, 2016, p. 117). Portanto, o entendimento deste estudo é de que o posicionamento dos magistrados e do Conselho Federal de Medicina em valorizar a autonomia do paciente, está em franco alinhamento com o respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Sobre o autor
César Augusto Cichelero

Professor e Coordenador do curso de Direito da Faculdade de Integração do Ensino Superior do Cone Sul (FISUL). Doutorando em Ciências Criminais na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com bolsa CAPES. Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS) (2018), com bolsa CAPES e integrando o grupo de pesquisa Metamorfose Jurídica. Bacharel em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS) (2016), com bolsa PIBIC/CNPq e integrando o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas Sociais (NEPPPS). Advogado e colunista.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Originalmente publicado em: http://www.ucs.br/site/midia/arquivos/ebook-fronteiras-bioetica.pdf

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