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A intervenção estatal no domínio econômico:

o atual papel do Estado na constitucionalidade democrática brasileira

Agenda 28/01/2007 às 00:00

O presente trabalho pretende apresentar uma breve exposição histórica da atuação do Estado no domínio econômico e expor, afinal, qual o atual papel do Estado na ordem econômica frente o regime de economia de mercado e o paradigma do Estado Democrático de Direito.

Introdução:

O presente trabalho pretende apresentar uma breve exposição histórica da atuação do Estado no domínio econômico e expor, afinal, qual o atual papel do Estado na ordem econômica frente o regime de economia de mercado e o paradigma do Estado Democrático de Direito.


Intervenção e atuação:

O termo intervenção geralmente porta um sentido negativo de intromissão. Etimologicamente, o vocábulo significa ação ou efeito de meter-se de permeio, intrometer-se, em matéria à qual não pertence [01].

Na doutrina do Direito Econômico, a ação do Estado no domínio econômico recebeu o nome tradicional de intervenção. Explica-se a utilização de tal vocábulo, primordialmente, pela crença liberal de Estado "guarda-noturno", abstencionista, meramente garantidor da liberdade de mercado para que funcionassem as suas leis naturais de auto-regulamentação. Dessa forma, a expressão intervenção "apresenta-se-nos portadora de um preconceito liberal, quando era vedado ao Estado interferir em qualquer atividade econômica [02]". Melhor seria a utilização do termo atuação, ou mesmo ação, do Estado no domínio econômico, e esses serão os termos que utilizaremos no presente trabalho com mais freqüência.


Evolução histórica:

Uma breve exposição sobre a evolução histórica do papel do Estado no domínio econômico é válida para obtermos uma visão mais clara de sua atribuição no paradigma constitucional atual. Percebem-se, no tratamento da matéria, a presença dos paradigmas Mercantilista, do Estado Liberal, do Estado Social e do Estado Democrático de Direito.

No final do século XV, os Estado Europeus se portaram de maneira mercantilista. Os princípios básicos desse período são o protecionismo ao mercado interno e a busca radical de uma balança comercial favorável. Houve um fortalecimento econômico demasiado do Estado, trazendo-lhe poder absoluto. Nesses termos, a soberania era inerente ao príncipe, ao monarca, ao líder da comunidade social, de forma que as políticas de governo promanavam da pessoa do príncipe, do líder carismático. Formou-se uma "soberania inerente ao soberano".

Nacionalidade, poder central e incentivo ao comércio internacional são as idéias-chave do Mercantilismo, que propiciaram a acumulação primitiva de capital que possibilitou a eclosão do modo de produção capitalista.

Nos séculos XVII e XVIII há uma mitigação da soberania Estatal fundada na figura do soberano absoluto. Tem lugar o ideário do liberalismo econômico. O Estado passa a agir a serviço das individualidades. A livre iniciativa dos indivíduos frente ao Estado ganha status de principio fundamental. Exalta-se a liberdade (atomística) e a valorização do indivíduo.

O capitalismo se firmou como um sistema econômico, "baseado na propriedade privada dos meios de produção, propiciadora de acúmulo de poupança com finalidade de investimentos de grandes massas monetárias, dentro de uma organização de livre mercado" [03].

A vida econômica, então, deveria estar livre de qualquer intervenção Estatal. A idéia de leis naturais de mercado, apresentadas por Adam Smith, que promoveriam uma situação de equilíbrio entre os agentes do mercado, fatalmente beneficiando a sociedade, passa a vigorar com inigualável força nessa forma de Estado.

Assenta-se o sentimento de que "a liberdade de comércio e de industria consagrava o princípio da não-intervenção do Estado no funcionamento normal do mercado, propiciando a implantação da ordem econômica almejada pela burguesia" [04]. Na verdade, o ideário era não só de consagração do principio do não intervencionismo Estatal, mas entendia-se que a ordem econômica (em seu sentido empírico) somente funcionaria se o Estado não interviesse na economia.

Um mercado atomista se formou, marcado pela iniciativa e atuação individual do agente.

Contudo, "a concepção de um liberalismo atomista, de liberdade do indivíduo no âmbito do mercado, veio a ser desmentida" [05]. Um "Estado industrial" [06] se forma, a partir de meados do século XIX, e o capitalismo atomístico dá lugar a um capitalismo de grupo, no qual os agentes devem se concentrar para adquirir maior estabilidade, maximizando seus lucros e aumentando seu poderio no mercado.

Para demonstrarmos a importância do surgimento do Estado industrial e do fenômeno de concentração de capital, vale citar Gerard Farjat, citado pelo professor João Bosco Leopoldino:

"A concentração capitalista é o fenômeno decisivo do direito econômico. É ela que está na origem de todas as grandes mutações das sociedades industriais: a intervenção do Estado (...) é uma conseqüência da concentração" [07].

De fato, a ação autofágica dos agentes econômicos exigiu a intervenção do Estado para garantir a própria liberdade do mercando, então ameaçada pelo demasiado poder econômico desses agentes (o poder econômico privado).

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A crise do sistema capitalista de produção, a ocorrência da Primeira e Segunda Guerras Mundiais e a evidente insustentabilidade da situação a que eram submetidos os trabalhadores fez evidenciar-se uma questão social. E por mais irônico que possa parecer, o Estado passa, então, a atuar para salvar a liberdade de iniciativa [08] que antes exigia a sua total abstenção para existir (na concepção dos liberais).

A Constituição do México de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919, apresentam pela primeira vez a tendência de atuação do Estado no domínio econômico. Aquela, condicionou o exercício da propriedade privada à observância do interesse público (artigo 27) e estabeleceu o combate ao regime de monopólios, à concentração econômica e ao açambarcamento (artigo 28); esta, dispôs sobre a organização da vida econômica e fixou limites à liberdade econômica individual [09].

Cresce, à época, uma grande tendência de dirigismo Estatal da economia, com a centralização das decisões econômicas. No Welfare State, o Estado, mesmo mantendo o regime de mercado, ingressou na economia de forma tal a tornar-se uma personagem do jogo econômico, que exercia sua influência no interesse da coletividade.

A intervenção deixa de ser uma circunstância excepcional para tornar-se um elemento fundamental do Estado. A doutrina de John Maynard Keynes no ocidente, que apresentou um programa governamental do pleno emprego, foi de um impacto que passou a ser cognominada de "Revolução Keynesiana" [10].

E enquanto Keynes reabilitava o capitalismo, o socialismo era implantado em nível nacional pela primeira vez, em 1917, na União das Repúblicas Socialistas Soviética - URSS, servindo de modelo a nações como China, Vietnã e Cuba.

Contudo, o Estado paternalista do Welfare, que não contava com a participação democrática, nem se fundamentava em uma legitimidade jurídica, acabou por se mostrar ineficiente quanto ao seu desempenho econômico de implementação dos direitos fundamentais, desenvolvimento econômico e maximização da riqueza coletiva. Um sentimento de descrédito se insurge contra esse Estado paternalista, o qual se incumbe da tarefa de decidir o que seria o bem da coletividade sem uma relação de participação daquela.

O papel do Estado é redefino pelo novo paradigma constitucional adotado. Surge então a teoria de uma constitucionalidade econômica compatível ao exercício da cidadania, com uma política econômica implantadora de direitos fundamentais, criada pelo discurso jurídico da livre criação e da processualidade (pelo contraditório, ampla defesa e isonomia) [11] da ordem econômica.

No Brasil, a ruptura paradigmática proveniente da Constituição brasileira de 1988 implica uma hermenêutica de Direito Democrático. Assim, "o paradigma de Direito atual apresenta como característica básica uma oferta de incessante, irrestrita e ampla fiscalidade do sistema jurídico pelo destinatário da norma. Não há uma heteronomia entre o produtor e o destinatário da lei" [12].


A Atuação do Estado na economia na constitucionalidade democrática:

De acordo com o Direito Democrático, o Estado deve ser entendido como um conjunto de órgãos e entidades públicas a serviço de políticas econômicas constitucionalmente adotadas para a implementação dos direitos fundamentais, conforme se depreende da leitura sistematizada dos artigos 1º, 3º, 5º, 6º e 170, dentre outros da CRFB/1988.

Verificamos, então, que a atuação do Estado no domínio econômico pode se dar de diversas formas [13], sempre com fins de implementar a política econômica juridicamente adotada.

O Estado age diretamente como sujeito atuante no mercado por meio das formas de empresa pública, sociedades de economia mista e subsidiárias. Quando diretamente, o Estado pode atuar sob regime de monopólio legal (artigo 177 da CRFB/1988) ou como agente regulador pelo regime econômico privado, conforme o artigo 173 §§ 1º e 2º da CRFB/1988 [14].

Ressalte-se que com a CRFB/1988, a atuação direta do Estado passa a ser exceção, dispondo o caput do artigo 173 da Constituição que "(...) a exploração direta de atividade econômica só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei" [15].

Lado outro, a atuação indireta do Estado na economia recebeu, em vista do princípio da subsidiariedade, maior relevo pelo ordenamento da CRFB/1988.

A atuação indireta do Estado pode se dar pela (i) normatização ou pela (ii) regulação da economia [16] (ou, como prefere Eros Roberto Grau [17], pela intervenção por indução e pela intervenção por direção).

A normatização apresenta-se como a produção de normas (pelo devido processo legal) de transformação da economia, com o objetivo de instrumentalizar a realização das políticas econômicas adotadas pela Constituição.

Definitivamente, a regulação é a forma de atuação estatal mais coerente com a constitucionalidade democrática, e que mais se coaduna com os princípios da subsidiariedade e eficiência, norteadores do Direito Econômico. A regulação pode se dar por meio de (i) fiscalização, (ii) incentivo e (iii) planejamento, do Estado no domínio econômico.

A fiscalização é a face de Estado polícia, na qual o Estado atua como repressor de condutas incondizentes com os fundamentos e princípios da ordem econômica (art. 170 da CRFB). Podemos verificar a atuação Estatal nesses moldes quando o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) aplica as sanções dispostas no Capítulo III, Título V, da Lei 8.884/94.

O incentivo se dá, por exemplo, quando o Estado, por meio de bancos de desenvolvimento fomenta investimentos em áreas da economia que necessitam de desenvolvimento. Outro exemplo seriam as sanções premiais do Estado por meio de incentivos tributários.

O planejamento econômico, por sua vez, é o mais abrangente dos institutos de regulação da economia pelo Estado. Ele dota de legitimidade a atuação do Estado, que se dará nos termos do Direito Econômico e da ordem jurídica adotada.

Um roteiro do planejamento econômico pode ser apreendido na CRFB/1988 pela leitura dos seguintes artigos: 165 c/c 84, XI; 61, §1º, b; 63, I; 166, caput e §§ 3º, 4º, 5º e 6º; 165, § 9º; 59, parágrafo único; 174, podendo ser adotado como linha de reflexão, sempre tendo em vista os artigos 5º, 6º e 170 da CRFB/1988.

Podemos perceber que o planejamento, tendo como instrumentos operacionais o orçamento, plano e projetos tem uma institucionalização na Constituição Econômica do sistema em que atua e não pode fugir dos termos dessa ordem econômica.

Portanto, na democracia, o planejamento econômico não se trata de apenas uma técnica de racionalização da intervenção estatal, mas um pressuposto legitimador e dotador de coercitividade e validade desta, que deve se dar segundo os institutos do Direito Econômico, considerando, relevantemente, os princípios da economicidade e subsidiariedade e tendo por fim primordial a implementação dos direitos fundamentais.


Conclusão:

Portanto, na constitucionalidade democrática brasileira, a atuação estatal na ordem econômica pode se dar de duas formas base: direta e indireta. A atuação direta é exceção, e se consubstancia na atuação do Estado como sujeito atuante no mercado por meio das formas de empresa pública, sociedades de economia mista e subsidiárias. A atuação indireta do Estado é a que mais se coaduna com os moldes democráticos, e se dá por meio da normatização e da regulação da economia. No âmbito da regulação, encontramos as práticas estatais de fiscalização, incentivo e planejamento.


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Notas

01 SOUSA, Washington Peluso Albino de. Direito Econômico. São Paulo: Saraiva, 1980. p.398.

02 SOUSA, Washington Peluso Albino de. Op. Cit.. p.398.

03LEOPOLDINO DA FONSECA, João Bosco. Direito Econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 253.

04 FORGIONI, Paula A. Os fundamentos do anitruste. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 59.

05LEOPOLDINO DA FONSECA, João Bosco. Direito Econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 257.

06 FARJAT, Gerard. Droit Économique. 1982. p. 141.

07 FARJAT, Gerard. Droit Economique, 1982. p. 141. (apud. LEOPOLDINO DA FONSECA, João Bosco. Direito Econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 258, nota 29).

08"Assinale-se que o Estado não interveio para coibir a liberdade econômica das empresas, mas para garanti-la mais concreta e efetivamente". LEOPOLDINO DA FONSECA, João Bosco. Direito Econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 260.

09 LEOPOLDINO DA FONSECA, João Bosco. Direito Econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 260.

10 MONTORO FILHO, André Franco e outros. Manual de economia. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992. p.53.

11 LEAL, Rosemiro Pereira. Citado em sala de aula.

12 LEAL, Rosemiro Pereira. Citado em sala de aula.

13 LEOPOLDINO DA FONSECA, João Bosco. Direito Econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 280 a 287.

14 A respeito dessa forma de atuação, Eros Roberto Grau a denomina intervenção por estar o Estado agindo em matéria própria da esfera do privado. Podendo tal intervenção ser por absorção (monopólio) ou participação. Grau, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1991. p. 162.

15 Deixamos de analisar a autorização constitucional de atuação direta do Estado no domínio econômico, uma vez que não é o objetivo do presente estudo apresentar tais hipóteses, além de tratar-se de matéria de extrema complexidade, que tomaria demasiado espaço no trabalho monográfico.

16 LEOPOLDINO DA FONSECA, João Bosco. Direito Econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 272.

17

GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988: intervenção e crítica. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1991. p. 163.
Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARROS, Mauro Pinheiro Alves Felipe. A intervenção estatal no domínio econômico:: o atual papel do Estado na constitucionalidade democrática brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1306, 28 jan. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9427. Acesso em: 24 nov. 2024.

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