CAPÍTULO II
A BOA-FÉ CONTRATUAL
Independentemente da denominação que se escolha, princípio da justiça contratual ou da boa fé, o fato é que o direito contratual de hoje está impregnado pela idéia de solidariedade. Ele não tolera que a vontade das partes conduza a situações manifestamente desiguais, em que a relação entre prestação e contraprestação se mostre desequilibrada.
De fato, há que se buscar um equilíbrio: garantir a igualdade substancial sem aniquilar a liberdade, tutelar a segurança sem olvidar-se da moral. É na prudente combinação dos princípios da boa-fé e da autonomia da vontade – cuja exata medida deverá o juiz aferir à luz do caso concreto -, que se chegará a um direito contratual verdadeiramente justo.
Na definição de Judith Martins-Costa [10]:
A boa-fé subjetiva denota, portanto, primariamente, a idéia de ignorância, de crença errônea, ainda que escusável, acerca da existência de uma situação regular, crença (e ignorância escusável) que repousam seja no próprio estado (subjetivo) da ignorância (as hipóteses de casamento putativo, da aquisição da propriedade alheia mediante usucapião), seja numa errônea aparência de certo ato (mandato aparente, herdeiro aparente).
Na boa-fé subjetiva o manifestante de vontade crê que sua conduta é correta, tendo em vista o grau de conhecimento que possui de um negócio. Para ele há um grau de consciência ou aspecto psicológico que deve ser considerado.
Verifica-se, portanto, que a boa-fé subjetiva representa o estado de crença do agente. Exemplo típico é o possuidor de boa-fé, aquele que desconhecesse o vício que macula sua posse, que lhe impede a aquisição do direito.
Contudo, vem ganhando força na doutrina a idéia de que a boa-fé subjetiva não é somente a ignorância. O estado de crença deve ser justificável, um erro escusável. Se a parte desconhece a verdadeira situação em razão de sua leviandade, de culpa e falta de cautela suas, não poderia alegar a boa-fé.
Como define Fernando Noronha [11], a boa-fé objetiva ou "boa-fé como regra de conduta, é um dever - dever de agir de acordo com determinados padrões, socialmente recomendados, de correção, lisura, honestidade, (...) para não frustrar a confiança legítima da outra parte".
A boa-fé objetiva tem compreensão diversa da boa-fé subjetiva. O intérprete parte do padrão de conduta de um homem comum, de um homem médio, naquele caso concreto, levando em consideração os aspectos sociais envolvidos. A boa-fé objetiva se traduz de forma mais perceptível como uma regra de conduta, um dever de agir de acordo com determinados padrões sociais estabelecidos e reconhecidos.
O comportamento das partes, especialmente no campo obrigacional, faz gerar no meio social expectativas, enfim, confiança. Exige-se, pois, um comportamento honesto, leal, justificado pela tutela da confiança depositada pela parte contrária. Devem as partes abster-se de um comportamento egoísta, fundado exclusivamente nos seus próprios interesses, e preocupar-se em tutelar a confiança que surge na relação obrigacional.
O princípio da boa-fé, embora deixado muito tempo no ostracismo, sempre fez parte da teoria clássica dos contratos, juntamente com outros princípios fundamentais como o da autonomia da vontade, do consensualismo, da força obrigatória dos pactos e da relatividade dos efeitos dos contratos.
O Código Civil de 1916, em que pese haver sofrido influência de outras legislações, em regra, não previu de maneira expressa uma regra acerca da boa-fé, embora ela estivesse implícita em diversos dispositivos, o que possibilitou a sua crescente utilização no ordenamento pátrio. Um dos artigos que contemplava o princípio da boa-fé no código anterior era a norma constante do seu art. 1443, segundo a qual:
Art. 1443 – O segurado e o segurador são obrigados a guardar, no contrato, a estrita boa-fé e veracidade, assim a respeito do objeto, como das circunstâncias e declarações a ele concernentes.
Com o advento da Constituição Federal, erigiram uma série de dispositivos que facilitaram a fundamentação do princípio da boa-fé. O texto constitucional modificou consideravelmente o direito privado, fenômeno este classificado como constitucionalização do direito civil, o que tem possibilitado o estudo da lei civil segundo as normas constitucionais.
O direito obrigacional e, por conseguinte, os contratos, vêm se ajustando à nova realidade constitucional. Em que pese haver opiniões em contrário, da análise dos princípios constantes da Constituição decorre uma cláusula geral que impõe às relações jurídicas correção, transparência e lealdade.
O Código Civil de 2002 constitui um sistema aberto, predominando o exame do caso concreto na área contratual, erigindo cláusulas gerais para os contratos. Seguindo o exemplo do Código italiano, o art. 422 faz referência ao princípio da boa-fé objetiva, ao dispor:
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
Esse dispositivo constitui o que a doutrina denomina cláusula geral. Essa terminologia, contudo, não dá a perfeita idéia do seu conteúdo, pois a cláusula geral não é, na realidade, geral. O que a caracteriza é o emprego de expressões ou termos vagos cujo conteúdo é dirigido ao juiz para nortear seu trabalho de hermenêutica.
Nota-se, pois, haver uma carência percebida entre os aplicadores da norma, muitas vezes, eis que desejam fundar suas decisões no exato teor do texto legal. É no sentido de suprir essa carência que foi elaborado o projeto de lei nº 6.960/02 de autoria do Deputado Ricardo Fíúza, que propõe a alteração do artigo 422, que passaria a ter a seguinte redação: "os contratantes são obrigados a guardar, assim nas negociações preliminares e conclusão do contrato, como em sua execução e fase pós-contratual, os princípios de probidade e boa-fé e tudo mais que resulte da natureza do contrato, da lei, dos usos e das exigências da razão e da eqüidade".
O Código de Defesa do Consumidor, inovando o ordenamento, trouxe uma cláusula geral expressa sobre a boa-fé objetiva, consagrando-a nos contratos de consumo. Eis o que prescreve o art. 51, inciso IV do CDC:
Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;
Em que pesem as lacunas deixadas pelo legislador, restou demonstrado, que o princípio da boa-fé incide sobre todo o ordenamento jurídico, impondo um comportamento correto. No campo contratual incide o princípio sobre todo o processo contratual, em sua fase preparatória, durante a execução e mesmo após seu término, criando deveres de conduta para as partes.
2.1. Os Deveres acessórios de conduta
Não se devem confundir deveres principais e acessórios com obrigações principais e acessórias. A obrigação é principal quando possui individualidade própria, não dependendo de outras relações jurídicas (Ex.: O locatário que se compromete à devolução do bem quando terminado o prazo da locação). Será acessória a obrigação quando subordinada, dependente de uma outra relação jurídica, dita principal (Ex.: a fiança prestada em contrato de locação).
O contrato, negócio jurídico bilateral, impõe às partes contratantes deveres para que a obrigação aceita seja devidamente cumprida. O dever de realizar a prestação principal, que pode ser designado como um dever principal, é o mais aparente, como, por exemplo, a obrigação assumida pelo devedor consistente na entrega ao credor de um bem móvel. Esse dever principal surge de uma ou mais prestações, sendo que neste último caso seriam deveres principais.
Com a finalidade de complementar os deveres principais, surgem os chamados deveres secundários, que estão a eles relacionados, como por exemplo, a entrega de um imóvel (dever principal), devidamente pintado e em perfeitas condições (deveres secundários).
Além dos mencionados deveres principais e secundários, há também os deveres de conduta que devem pautar a relação obrigacional e que, em regra, exercem uma função acessória do dever principal, razão pela qual são denominados deveres acessórios de conduta.
È impossível determinar todas as concretizações que a lealdade contratual exige das partes. Ao se elencar os deveres de conduta das partes, age-se de maneira meramente exemplificativa, já que a grande vitalidade dos deveres acessórios fundados na boa-fé residem na identificação do comportamento devido em face de circunstâncias concretas do caso em apreciação.
No que pertine à fase pós-contratual, não exaurindo o tema, pode-se citar os seguintes deveres acessórios: a) informação; b) sigilo; c) proteção; d) cooperação.
2.1.1. Dever de Informação, esclarecimento ou aconselhamento
A doutrina italiana define o dever de informação como "a obrigação de comunicar cada circunstância relevante para a satisfação dos interesses que uma parte pode razoavelmente crer realizar mediante o ato negocial".
Por força da regra da boa-fé, o dever de informação subsiste mesmo após o encerramento da fase contratual propriamente dita. Em algumas situações, é justamente na fase pós-contratual que este dever se tornará mais necessário.
Como bem leciona a jurista francesa Muriel Fabre-Magnan [12],
"O elemento material da obrigação de informação pode ser definido como sendo todo elemento suscetível de determinar junto ao credor uma reação, no sentido de que se este último houvesse conhecido a informação, ele teria agido diferentemente, quer dizer, por exemplo, que ele teria recusado concluir o contrato ou ainda teria podido tomar suas precauções para conseguir uma correta execução dele".
Exemplo típico do dever de informação é o caso do médico, o qual tem obrigação de informação acerca da documentação médica e o dever de exibir a referida documentação, mesmo após o tratamento. O paciente pode ter interesse em consultar a documentação, por exemplo, para instruir ação indenizatória, questionar a remuneração do médico ou para prosseguir o tratamento perante outros profissionais.
2.1.2. Dever de Sigilo, fidelidade, lealdade ou segredo
O fim da relação contratual não tem o condão de autorizar a parte a divulgar fatos sigilosos dos quais tomou conhecimento por ocasião da execução do contrato.
Como assevera Enéas Costa Garcia [13],
Por vezes, a existência da relação contratual permite ao contratante o acesso a fatos privados da vida da contraparte. A boa-fé exige que a parte saiba respeitar esta confiança que lhe foi depositada, abstendo-se de tornar público aquilo que era privado e ficou conhecido apenas por força da relação negocial.
O dever de sigilo obriga à parte não apenas a não divulgar os fatos conhecidos, mas também que utilize, em proveito próprio ou alheio, de informações obtidas em razão da relação contratual que existia.
Dessa forma, não poderá, por exemplo, o médico de pessoa famosa escrever um livro sobre a situação de seu paciente ao longo do tratamento. Tampouco poderá o advogado, após o julgamento, escrever ou revelar detalhes sobre o crime cometido por seu cliente.
Cumpre ressaltar que a violação do sigilo, por si só, por vezes já se torna apta a ensejar obrigação de indenizar, ainda que não tenha havido prejuízo ou utilização econômica por parte do infrator. É a hipótese de haver tratativas em vistas à fusão de duas empresas que obtêm um resultado positivo. Neste caso, a boa fé que preside esta relação pré negocial faz impor o dever de preservar o justo interesse de não divulgação das informações restritas ou pessoais obtidas em razão daquelas tratativas ou mesmo da própria execução do contrato.
Necessário se faz estabelecer-se uma relação de causalidade entre o conhecimento da informação e a existência, ao menos, de tratativas, devendo a expressão "sigilo" ser entendida de maneira ampla, não se restringindo apenas aos fatos absolutamente secretos.
2.1.3. Dever de proteção, segurança ou tutela
Mesmo findo o contrato, prevalece o dever de zelar pela integridade patrimonial e física da contraparte, de modo que nem mesmo a mora da parte contrária isenta o devedor do dever de cuidado.
Exemplo de dever de proteção com eficácia pós-contratual é trazido com brilhantismo por Enéas Costa Garcia [14]. O ilustre autor cita caso prático no qual uma empresa alugou de uma outra pessoa jurídica um imóvel para fins de instalação de equipamentos destinados a publicidade. Sobre um muro e no terreno do imóvel da ré foram instalados painéis de publicidade. O uso foi cedido de forma onerosa. A própria locatária afirma em sua inicial que houve um desentendimento quanto ao pagamento dos aluguéis e que a locadora teria, de forma descuidada, arrancado os painéis publicitários, danificando-os. A lesada pleiteava uma indenização pelos danos suportados. A empresa ré contestou a ação, alegando que a empresa autora não pagava pelo uso do imóvel e, invocando cláusula resolutória expressa que havia no contrato, afirmava que o contrato estava findo, o que lhe outorgava o direito de retirar os painéis publicitários. Realizada a instrução, ficou demonstrado que os painéis foram retirados de maneira absolutamente imprópria, não foram desmontados, mas apenas cerrados e que foram deixados ao relento, sendo danificadas as lonas e estrutura metálica.
Mesmo dando por suposto que o contrato estava extinto, por cláusula resolutória expressa, e ainda considerando a culpa do devedor, o fato não autorizava a retirada de forma bruta dos bens do locatário. Ainda que não existisse mais o contrato, nem por isso o locador poderia simplesmente abandonar ao relento os bens da parte contrária, deixando que estes se danificassem. Ao assim proceder, agiu contra a boa-fé, violando aquele clima de lealdade e cooperação que esta impõe no relacionamento contratual.
2.1.4. Dever de cooperação ou colaboração
Na realidade, todos os deveres acessórios de conduta fundados na boa-fé não deixam de ser deveres de cooperação para o bom resultado da relação contratual. Este dever ressalta alguns comportamentos que não se enquadram nas hipóteses comentadas e trazem uma intensa necessidade de considerar a posição do outro contratante de modo a ajudá-lo, ou, ao menos, não prejudicá-lo.
Ao discorrer sobre o tema, Araken de Assis [15] menciona a hipótese de uma indústria estar impedida de fabricar o produto e receber o preço sem o cliente fornecer o projeto ou a matéria-prima necessária à empresa.
Ainda como exemplo, podemos citar julgado do Rio Grande do Sul [16] no qual um vendedor, após alienar a casa a uma senhora, passou a ameaçá-la de morte, impelindo-a a deixar o imóvel. Vislumbrou-se nessa conduta
"violação de um dever secundário do contrato, qual seja o de não tomar nenhuma medida suficiente e capaz de inviabilizar para a compradora o uso e gozo do bem adquirido, pois que assume implicitamente o compromisso e a obrigação de não praticar, no futuro imediato, nenhum ato que inviabilize a normal continuidade da situação adquirida pelo contrato".
Com suporte na boa fé e expressa remissão à responsabilidade pós contratual, o Tribunal acolheu a pretensão de resolução do contrato. Tem-se aqui uma pós-eficácia obrigacional, a ponto de o descumprimento de um dever lateral de conduta surgido após o cumprimento da obrigação principal ensejar o desfazimento do negócio.