Erick Teixeira Barreto[1]*
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. A relação de consumo. 3. Aplicabilidade do CDC ao serviços públicos uti singuli. 4. Conclusão. Referências bibliográficas
RESUMO: Este artigo tem o propósito de estudar a possibilidade de incidência do Código de Defesa do Consumidor (CDC) às relações jurídicas entre concessionárias de serviço público e usuário final, notadamente no que concerne à prestação de serviços públicos uti singuli. A controvérsia deriva do aparente antagonismo entre o direito administrativo e o direito do consumidor, tendo em vista a natureza derrogatória daquele em relação às normas de direito comum. Conclui-se, contudo, na direção contrário, entendendo-se que, a despeito de ser o Código de Direito do Consumidor especialmente voltado às relações jurídicas entre particulares, nada obsta sua incursão em áreas afetas ao direito público, especialmente porque sua gênese decorre do fenômeno da publicização do direito privado, tendo em vista as garantias outorgadas pela Constituição Federal ao consumidor. Como restará demonstrado, o usuário, ao se ver diante da prestação de um serviço público uti singuli, remunerado por tarifa pública, certamente terá a seu dispor as garantias e institutos conferidos pelo CDC. Isso promove um fenômeno de diálogo das fontes, fortalecendo o usuário perante as concessionárias de serviço público, sem que lhes sejam afastadas prerrogativas conferidas pelas normas administrativas.
Palavras-chave: Código de Defesa do Consumidor. Concessionárias de serviço público. Serviço público.
1 INTRODUÇÃO
A discussão acerca da incidência das normas do Código de Defesa do Consumidor (CDC) aos serviços prestados por concessionárias de serviço público é travada reiteradamente nas cortes de justiça do país, em grande parte por sua regulamentação carecer de maior especificidade da legislação, requerendo ainda grande intervenção doutrinária e jurisprudencial.
Nesse sentido, apesar de já editada legislação que regula a participação, proteção e defesa dos direitos do usuário dos serviços públicos da administração pública no caso, a Lei Nº 13.460/2017 -, não se tem, legalmente, a precisa definição do alcance das normas consumeristas a essa relação jurídica entre prestador de serviço público e usuário.
É bem verdade que o art. 1º, § 2º, II da sobredita norma estipula que a aplicação daquela lei não afasta o cumprimento do disposto no Código de Defesa do Consumidor, quando restar caracterizada relação de consumo.
Outrossim, a redação do comando não traz grande novidade ao intérprete, tampouco responde ao questionamento anterior, uma vez que é notório e imperativo, sempre que caracterizada a relação de consumo, que haja incidência do CDC; portanto, o predicado lógico do comando normativo não oferece qualquer solução concreta ao problema. A tônica é simplesmente deslocada para uma nova celeuma: sendo admissível, como caracterizar uma relação de consumo nas prestações de serviço público.
A questão cinge-se, portanto, à aplicabilidade do CDC a tais relação, e, sendo admissível, quais institutos e garantias fixadas pelo código consumeristas cabem dentro das relações decorrentes de contratos administrativos na modalidade concessão de serviço público, ou seja, se, nesses contratos, a aplicação do CDC se dará de modo pleno ou parcial.
À primeira vista, pode-se pensa na inconciliável aproximação entre os dois campos jurídicos, tendo em vista as normas derrogatórias de direito público que extrapolam as relações privadas comuns, considerando-se a supremacia do interesse público que orbita os contratos administrativos. Assim, compreensível a tese que aponta para a incompatibilidade dos ramos jurídicos, haja vista que as relações jurídico-administrativas já estariam reguladas de forma exauriente nos diplomas administrativos, não sendo cabível incidência de normas estranhas a esse fenômeno.
Contudo, essa tese de antinomia e aparente contradição normativa pode ser superada pela já fomentada teorética do diálogo das fontes. Isso se mostra possível pela adoção de uma interpretação sistemática e teleológica dos diplomas administrativos e consumeristas, com supedâneo nas normas constitucionais, em que se torna possível estabelecer uma interpretação conciliadora capaz de fortalecer os direitos do consumidor perante o prestador do serviço público, sem suprimir destes os direitos inerentes ao contrato administrativo. Admite-se, portanto, a incidência do CDC ao lado do usuário sem desnaturar o regime eminentemente publicístico dos contratos administrativos.
Dessa maneira, como se buscará demonstrar adiante, é de se reconhecer a aplicabilidade das normas previstas no Código de Defesa do Consumidor aos usuários de serviços públicos. Também será demonstrado como o CDC poderá ser manejado, especialmente quando se tratar dos contratos que envolvem as empresas concessionárias de serviço público uti singuli, a exemplo das concessionárias de energia elétrica e água.
2 A RELAÇÃO DE CONSUMO
A relação jurídica consumerista apenas se forma quando necessariamente presentes três elementos indispensáveis à sua configuração: consumidor, fornecedor e produto ou serviço. Tal conceito é extraído das definições elementares do Código de Defesa do Consumidor, que optou por não definir expressamente o que é relação de consumo, mas simplesmente definir seus elementos[2].
Segundo a lição de Bruno Miragem, tais conceitos dos elementos são relacionais e interdependentes, de modo que somente existirá um consumidor se houver também um fornecedor (como sujeitos da relação), bem como um produto ou serviço (como objeto da relação)[3].
Portanto, para que uma relação jurídica receba a guarida do CDC não é suficiente que haja simples aquisição de serviço no mercado. Tal proteção, no escólio de Paulo Roque Khouri[4] só vai ser acionada se ocorrer a chamada relação de consumo, devendo nela serem conjugados o consumidor, como destinatário final de bens e serviços; o fornecedor, o qual com habitualidade e profissionalidade fornece bens e serviços ao mercado; e um objeto, que pode ser a prestação de um produto ou serviço.
À vista disso, serão conceituados a seguir tais elementos das relações de consumo.
2.1 Consumidor
A definição de consumidor encontra respaldo no Art. 2o do Código de Defesa do Consumidor, que reza, in verbis: consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. O parágrafo único do mesmo artigo ainda equiparado a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo. Assim sendo, uma coletividade, ainda que não configure uma pessoa física ou jurídica individualizada, pode ser considerada como consumidora, desde que haja participado de relação de consumo[5].
Em relação à definição, a corrente majoritária da doutrina entende que o Código Consumerista adotou uma teoria finalista, ou seja, define o consumidor como todo aquele que encerra o processo econômico[6]. O consumidor destinatário final da relação de consumo é aquele que retira o bem do mercado para lhe dar uma destinação pessoal, sem interesses profissionais. É necessário que o consumidor seja destinatário final econômico do bem, não podendo utilizá-lo para reintroduzi-lo no mercado ou utilizá-lo para revenda, com vistas à obtenção de lucro. Essa teoria explora os aspectos fático e econômico da relação de consumo, compreendendo como consumidor apenas aqueles que esgotam o ciclo de comercialização de produto ou serviço.
Bruno Miragem aduz que o consumidor não é aquele que somente retira o produto ou serviço do mercado, mas também que não volta a reempregá-lo, tornando-se o destinatário fático e econômico do objeto dinâmico da relação consumerista[7].
Portanto, à luz da teoria finalista, para que uma pessoa seja considerada consumidora, necessita preencher dois requisitos: adquirir um bem ou serviço e ter cessado toda atividade de produção, de transformação, de distribuição ou de prestação relativamente a este mesmo bem ou serviço.
Cumpre ressaltar que a adoção engessada da referida teoria não é cabível a todos os casos. É necessário que a teoria finalista dialogue com outras interpretações do CDC a fim de conferir proteção às relações jurídicas. Nesse sentido, surgem duas outras teorias que visam rediscutir o conceito de consumidor; são elas: maximalista e finalismo aprofundado.
A teoria maximalista (ou ampliativa) visa conferir maior proteção, aumentando a abrangência do conceito de consumidor. Nas palavras de Cláudia Lima Marques, o CDC pode ser aplicado a todos os agentes de mercado, que ora assumem papel de fornecedor, ora de consumidor[8]. Para a teoria maximalista, o destinatário final é conceituado segundo uma análise fática de uma relação em que se determina que o destinatário do bem ou serviço efetivamente o recebe e o consome, ainda que aquele não seja o destinatário econômico do bem[9]. O aspecto econômico, segundo Humberto Theodoro Junior, não é relevante[10]. Nesse sentido, para se ter um consumidor é bastante que haja adquirido um bem ou serviço, sendo despiciendo que a partir do ato de consumo sejam retirados de circulação ou não sejam reimpregados na economia[11].
Já a teoria do finalismo aprofundado ponto intermediário entre as duas teorias anteriores - é construção de origem jurisprudencial e como o próprio nome sugere é uma redução do formalismo conceitual e da exegese da norma consumerista no que toca o conceito de consumidor. A teoria, de construção do STJ[12], resulta do revolvimento de critérios para a aplicação do CDC aos chamados consumidores por extensão (equiparação), tendo em vista dois pressupostos essenciais: (i) que a adoção do conceito de consumidor por equiparação é medida excepcional no regime do CDC; e (ii) que deve ser reconhecida a vulnerabilidade, em concreto, da parte que pretende ser considerada consumidora equiparada.
Segundo escólio de Braga Netto, a teoria adquire densidade nas hipóteses em que a pessoa jurídica que adquire produto ou utiliza serviço como insumo na sua atividade-fim pode ser enquadrada como consumidora se comprovada sua vulnerabilidade in concreto.
De igual modo, outro ponto interessante de aplicação dessa teoria ocorre nas hipóteses em que terceiros que não sejam usuários diretos do serviço público, mas que sofram consequências de uma falha na prestação dos serviços (fato do produto ou serviço) possam ser considerados consumidores por equiparação, ou bystanders, considerando a necessidade de tutela decorrente do microssistema legal consumerista, a teor do Art. 17 do CDC[13].
A teoria do finalismo atenuado recebe grande atenção na prestação de serviços públicos indiretos, por concessionárias, nos casos de danos causados por pessoa jurídica a terceiros não usuários, tendo em vista as consequências de uma má prestação do serviço. É comum a aplicação da aludida teoria nos casos de acidentes decorrentes de transportes de passageiros por empresas concessionárias, sujeitando à proteção do CDC aqueles consumidores que, embora não tenham participado diretamente da relação de consumo, sejam vítimas de evento danoso decorrente dessa relação[14].
Paulo Roque Khouri reconhece, na mesma linha, que no Art. 17 do CDC, o legislador deixa muito clara a sua intenção de levar a proteção aos que estão fora da relação de consumo.[15]. Daí que o instrumento consumerista pode ter sua aplicação ampliada, podendo ser mobilizado até mesmo por aqueles que não compõem a relação de consumo original.
A atração do conceito de vulnerabilidade justifica pelo aumento do campo de proteção do CDC frente a pessoas físicas ou jurídicas que travam relações jurídicas com fornecedores de expressivo porte financeiro ou econômico, capaz de produzir uma vulnerabilidade no seio de uma relação jurídica.
Ao adotar a teoria do finalismo aprofundado, o STJ adota a vulnerabilidade como critério principal para determinação do conceito de consumidor e, em consequência, da aplicação das normas do CDC, favorecendo sua aplicação ainda que na prestação de serviços públicos.
Como exemplo, cita-se o Art. 17 da Lei 9.427/96, que disciplina o regime de concessão dos serviços públicos de energia elétrica, ao reconhecer que consumidor de energia elétrica pode prestar serviço público ou outro tipo de serviço essencial à população, cuja atividade pode sofrer prejuízo com a interrupção do fornecimento de energia.
2.2 Fornecedor
A definição de fornecedor também encontra guarida no Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 3o, dispondo que fornecedor é:
Toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços
Como bem afirma Bruno Miragem, o legislador não cuidou de distinguir a natureza ou a nacionalidade do fornecedor. São abrangidos, pelo conceito, tanto empresas estrangeiras ou nacionais, quanto o próprio Estado, diretamente ou por intermédio de seus órgãos e entidades, quando realizando atividade de fornecimento de produto ou serviço no mercado de consumo[16].
Ao erigir o desenvolvimento de uma atividade de produção, montagem, criação etc o legislador reconhece a exigência de uma habitualidade da atividade para que a parte seja qualificada como fornecedora. Nesse aspecto, não poderia ser considerado fornecedor aquela pessoa jurídica que esporadicamente se desfaz de parte do seu patrimônio, dada a conotação legal.
Igualmente, com relação ao elemento dinâmico da relação - o desenvolvimento de uma atividade -, o CDC buscou relacionar ampla gama de ações, com relação ao fornecimento de produtos e à prestação de serviços.
Neste sentido, é correto indicar que são fornecedores, para os efeitos do CDC, todos os integrantes da cadeia de fornecimento de produtos ou serviços; o que será efetivamente discernível nessa cadeia é definir a extensão de seus deveres jurídicos, sobretudo em matéria de responsabilidade civil[17].
Releva destacar, sob outro prisma, que a amplificação do conceito de fornecedor para abranger também as pessoas jurídicas de direito público fomenta o debate acerca da prestação de serviços públicos por tais pessoas de maneira habitual, ainda que não haja interesse de lucro, promovendo o debate acerca da incidência no CDC nesses casos.
2.3 Serviço como objeto da relação jurídica de consumo
Ao lado dos conceitos acima delineados, o CDC também vai na direção de determinar o conteúdo objetivo da relação consumerista, no caso o produto ou serviço prestado pelo fornecedor ao consumidor.
Em relação aos serviços, o Art. 3o, § 2o do CDC os define como "qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista".
A letra da lei impõe como regra que a atividade seja oferecida no mercado, como decorrente da atividade econômica do fornecedor, que deve exercê-la com fundamento no animus lucrandi, mediante remuneração que corresponda a contraprestação àquela atividade (negócio jurídico bilateral e oneroso).
A doutrina, contudo, tem mitigado tal fato de contraprestação ao reconhecer não somente a remuneração direta (contraprestação de um contrato de consumo), mas também a remuneração indireta, que ocorre em vantages ao fornecedor independentemente da existência de um contrato de consumo. Em relação a fornecedores privados, é o que fica muito proeminente na Súmula 130/STJ, que reza: a empresa responde, perante o cliente, pela reparação de dano ou furto de veículo ocorridos em seu estacionamento. Ou seja, ainda que o contrato de estacionamento seja gratuito e, portanto, não haja uma retribuição direta, considera-se os consumidores que estacionaram seus veículos naquele local como potenciais consumidores, portanto, haveria uma retribuição indireta ao serviço prestado.
No caso de serviços públicos, o cenário se desenha na possibilidade de remuneração da atividade por meio dos impostos ou taxas; ou, no caso das concessionárias de serviço público, quando houver parcial ou completa remuneração pelo Poder Público, mediante subsídios ou outras vantagens previstas no instrumento contratual, sem que o usuário tenha efetivamente concorrido para usufruir aquele serviço.
Nesse tocante, apesar de o CDC expressamente conceituar serviço como atividade fornecida no mercado de consumo - o que, abstratamente, afastaria qualquer hipótese de sua aplicação aos serviços públicos -, forçoso reconhecer que o próprio CDC admite a possibilidade de ser o fornecedor pessoa de direito público, como já dito alhures.
Ademais, distingue como princípio da Política Nacional das Relações de Consumo a melhoria dos serviços públicos (Art. 4o,VII do CDC); e, como direito básico do consumidor, a adequada e eficaz prestação do serviço público (Art. 6o, X do CDC).
Tais normas poderiam indicar um contrassenso com a definição esposada no Código em relação à definição de serviços, já que estes apenas estariam no mercado de consumo. Contudo, a aparente incongruência, muito mais determinada por atecnia ou má escolhas de vocábulos do legislador, deve ser superada por uma interpretação extensiva do conceito, que apenas poderia favorecer os consumidores do que causar qualquer prejuízo aos prestadores desses serviços.
Sobre tal aparente conflito aprofundaremos a seguir.
3 APLICABILIDADE DO CDC AO SERVIÇOS PÚBLICOS UTI SINGULI
Como bem disserta Paulo Roque Khouri, o objetivo do CDC, ao proteger o consumidor, não é a simples proteção pela proteção em si, mas a busca permanente do equilíbrio do contrato entre o consumidor e o fornecedor de bens e serviços[18].
A rigor, o mais forte economicamente, e em condições de impor sua vontade, num ambiente propício à conquista de maior vantagem econômica contra aquele reconhecidamente vulnerável, o mais fraco dessa relação. O CDC nada mais é do que uma tentativa de reequilibrar essa relação, tendo em vista a posição econômica favorável do fornecedor; impondo-se a necessidade de um equilíbrio mínimo em todas as relações contratuais de consumo.
O reconhecimento de direitos aos consumidores, propriciado pelo CDC, pressupõe desigualdade flagrante na relação. Impõe-se como forma de materializar a igualdade material, tratando desigualmente os naturalmente desiguais.
Nesse aspecto, é inegável que haja, no seio da administração pública, problemas oriundos da prestação de serviços públicos, a exemplo da falhas na prestação ou simplesmente negliência ou omissões dos servidores públicos. Da mesma maneira, a posição privilegiada da Administração, fundada na supremacia do interesse público frente aos particulares, enseja garantias ao poder público que não são franqueadas aos administrados, tornando-os vulneráveis juridica e economicamente em relação ao ente público.
Dessa forma, considerando-se a abragência e a teleologia subjacente ao instrumento consumerista, é mister considerar sua aplicação a um cas, visando conferir direitos e garantias não presentes nos demais marcos legais administrativos, aos particulares em gozo de serviços públicos, buscando-se, com isso, reequilibrar a balança da relação jurídica, que pode se amoldar perfeitamente à definição de relação de consumo.
3.1 Conceito de serviço público
A Lei 13.460/2017, que disciplina o Código de Defesa dos Usuários de Serviços Públicos, apesar de não conceituar extensivamente o conceito de serviço público indicou as premissas que norteiam a Administração Pública nesse mister. Assim sendo, definiu o serviço público como atividade administrativa ou de prestação direta ou indireta de bens ou serviços à população, exercida por órgão ou entidade da administração pública.
O conceito legal esposado na referida norma é muito contido e impede a inclusão no rol de serviços públicos daquelas atividades prestadas por concessionárias e delegatárias de serviços públicos, o que seria incompatível com o Art. 175 da Constituição, o qual prevê a prestação de serviços públicos indiretamente, mediante prévia licitação. Portanto, é imperioso que seja realizada uma intepretação sistemática à luz da Constituição para que também sejam incluídos as atividades prestadas por delegados como serviços públicos.
Nesse tocante, a visão majoritária da doutrina, seguindo os ensinamentos de Di Pietro, reconhece o serviço público como toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob regime jurídico total ou parcialmente público.
Isso significa que os serviços públicos poderão ser prestados sob um regime totalmente público ou sob regime privado parcialmente derrogado pelo direito público. É o que Di Pietro chama de regime híbrido. Leciona a autora:
Quando, porém, se trata de serviços comerciais e industriais, o seu regime jurídico é o de direito comum (civil e comercial), derrogado, ora mais ora menos, pelo direito público. Em regra, o pessoal se submete ao direito do trabalho, com equiparação aos servidores públicos para determinados fins; os contratos com terceiros submetem-se, em regra, ao direito comum; os bens não afetados à realização do serviço público submetem-se ao direito privado, enquanto os vinculados ao serviço têm regime semelhante ao dos bens públicos de uso especial; a responsabilidade, que até recentemente era subjetiva, passou a ser objetiva com a norma do artigo 37, § 6º, da Constituição de 1988. Aplica-se também o direito público no que diz respeito às relações entre a entidade prestadora do serviço e a pessoa jurídica política que a instituiu. Vale dizer, o regime jurídico, nesse caso, é híbrido, podendo prevalecer o direito público ou o direito privado, dependendo do que dispuser a lei em cada caso; nunca se aplicará, em sua inteireza, o direito comum tal qual aplicado às empresas privadas.
Similarmente, Hely Lopes Meireles conceitua o serviço público como aquele prestado pela Administração ou por seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade ou simples conveniências do Estado.
Nesse aspecto, fica nítido que a doutrina administrativista dominante reconhece na prestação de serviço público um regime de direito público em que se admite a parcial derrogação por normas de direito privado.
Como resultado, a prestação de uma atividade remunerada direta ou indiretamente aproxima-se do conceito presente no CDC, exceto no que se refere à sua disponibilidade no mercado de consumo.
Nesse particular, especialmente no caso dos serviços públicos prestados por concessionárias e remunerados diretamente por tarifa ou preço público consubstanciado por contraprestação de caráter não-tributário , a incidência do CDC se mostra bastante justificável, tendo em vista a contratação de um serviço de ente privado no mercado comum, mediante prévio instrumento licitatório.
2.3 A incidência do CDC aos serviços públicos
A grande controvérsia da aplicabilidade do CDC aos serviços públicos tem como origem as inúmeras passagens do Código em que alude aos serviços públicos, presumindo que dar-se-á sua proteção a essas atividades, como ocorre nos arts. 4o, 6o e 22.
Em relação ao art. 22 do CDC, tem-se a obrigatoriedade de que os prestadores de serviços públicos são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes e seguros; adicionalmente, os serviços essenciais devem ser fornecidos de forma contínua, com fundamento no princípio da continuidade do serviço público.
Segundo Rizzatto Nunes, a opção legislativa de expressamente contemplar os serviços públicos reconhece a incidência das normas consumeristas também para as relações entre particulares e delegados de serviços públicos, evitando-se que os prestadores de serviços públicos pudessem se furtar de observar as prescrições legais inseridas no Código Consumerista.
A polêmica fica por conta de parte da doutrina que evita reconhecer a aplicabilidade do CDC às matérias atinentes ao regime jurídico-administrativo. Formam-se três correntes: (i) pela aplicabilidade do CDC a qualquer tipo de serviço público; (ii) pela aplicabilidade apenas aos serviços uti singuli; e (iii) pela completa inaplicabilidade do CDC aos serviços públicos[19].
Em relação aos serviços uti singuli, consoante Maria Sylvia Zanella Di Pietro, são aqueles que têm por finalidade a satisfação individual e direta das necessidades dos cidadãos, enquadrando-se nessa categoria alguns dos serviços públicos prestados por delegatários, como energia elétrica, água, transporte.
Igualmente, existem aqueles prestados diretamente pelo Estado, sob a denominação de serviços públicos próprios, como saúde e educação. Também são serviços específicos, mensuráveis, divisíveis, contudo custeados mediante taxa, incidindo as normas do sistema tributário.
A distinção também encontra eco na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. A Corte Superior reconhece que o CDC somente se aplica aos serviços uti singuli[20], quando remunerados por preço público ou tarifa, fugindo ao escopo dos serviços remunerados por impostos.
Nesse sentido, considerando o salutar diálogo das fontes, há uma nítida aproximação do âmbito de proteção consumerista aos contratos administrativos, fazendo valer toda sua força normativa naquilo que não lhe for vedado por normas de direito público ou que não sejam disciplinados de modo contrário. Assim sendo, forçoso reconhecer que é plenamente possível a aplicação do CDC aos usuários quando o regime consumerista se mostrar compatível com as normas de regência.
O reconhecimento da incidência do CDC atribui inúmeras garantias ao utente do serviço publico, como a possibilidade de inversão do ônus da prova (art. 6º, VIII), a restituição em dobro de valores cobrados de má-fé pela concessionária (art. 42, parágrafo único), impede a exposição do consumidor inadimplente a ridículo ou a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça (art. 42, caput), etc[21].
Lado outro, como se está diante de um regime jurídico-adminsitrativo parcialmente derrogado por normas de direito privado, a aplicação do CDC eventualmente pode ser afastada ou sofrer intepretações restritivas, em face da contratualística envolvida e do regime de direito público que prestigia o melhor interesse da coletividade e os princípios administrativos constantes no Art. 37 da CF, notadamente o da eficiência, da impessoalidade e o da moralidade.
Nesse particular, decorrem institutos consagrados no CDC que cedem espaço para o interesse público que subjaz os contratos administrativos, notadamente os aspectos arts. 39, I e V (vedação a cobrança de preço mínimo ou limites quantitativos) e 51, IV (vedação a cláusulas abusivas, entre elas a cobrança de tarifas que coloquem o consumidor em desvantagem), do CDC teriam de passar por uma interpretação restritiva do seu âmbito de proteção para serem conciliados com as normas de direito público que regem a prestação de serviços públicos e com a natureza mesma do preço público (tarifa). A boa-fé e a equidade prestigiadas no CDC passam a dialogar com os princípios dos serviços públicos, como a modicidade das tarifas, a eficiência, a continuidade do serviço, a segurança, a atualidade, que muitas vezes exigem vultosas somas de dinheiro do delegatário para manutenção da atividade.
Assim reconheceu o STJ ao editar as súmulas 356 e 407, legitimando a cobrança de tarifa básica pelo uso dos serviços de telefonia e a cobrança da tarifa de água, fixada de acordo com as categorias de usuários e as faixas de consumo.
O entendimento evidenciado no edição das súmulas 356 e 407 do STJ legitima a cobrança de tarifa básica pelo uso dos serviços de telefonia e a cobrança da tarifa de água, fixada de acordo com as categorias de usuários e as faixas de consumo, afastando a proteção da vedação de cobranças abusivas por preço mínimo ou limites quantitativos esposada no art. 39, I, do CDC.[22].
4 CONCLUSÃO
Com base em tudo que fora exposto, constata-se que a aproximação entre os dois campos jurídicos aponta para a compreensível, afastando-se a tese de que a matéria contratual do direito administrativo já estava disciplinada de forma exauriente nos diplomas administrativos.
O diálogo das fontes torna possível a aplicação de interpretação sistemática e teleológica dos diplomas administrativos e consumeristas, com supedâneo nas normas constitucionais, fomentando uma hermenêutica capaz de irradiar direitos do consumidor aos usuários de serviços públicos uti singuli, sem retirar dos fornecedores e do Poder Público concedente os direitos inerentes ao regime jurídico-administrativo.
Admite-se, portanto, a incidência do CDC ao lado do usuário sem desnaturar o regime eminentemente publicístico dos contratos administrativos.
Como se buscou demonstrar, é forçoso reconhecer a aplicabilidade das normas previstas no Código de Defesa do Consumidor aos usuários de serviços públicos, notadamente quando se tratar dos contratos que envolvem as empresas concessionárias de serviço público uti singuli, a exemplo das concessionárias de energia elétrica e água.
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REsp 840.864/SP, Rel. Min. Eliana Calmon, 2a Turma, julgado em 17/04/2007, DJe 30/04/2007.
FERNANDES, André Dias; Maia, Cinthia Meneses. Aplicação do código de defesa do consumidor aos usuários de serviços públicos prestados por concessionárias de energia elétrica. Disponível em: https://periodicos.uni7.edu.br/index.php/revistajuridica/article/view/916/752. Acesso em: 2 set. 2021.