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O desvirtuamento da Lei do ISS

Agenda 28/10/2021 às 21:41

O conceito de serviço no subitem 1.09 da Lista de Serviços do ISSQN e nos projetos de lei sobre aplicativos de transporte

Resumo: Este trabalho demonstra alguns equívocos acerca do conceito de serviço, expressos a partir de atualizações legislativas e em tramitação relativas ao Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza - ISSQN, especialmente quanto às empresas de streaming de vídeo e áudio e de aplicativos de transporte. Através de visão crítica, jurídica e científica afigura-se como orientação prática aos operadores do Direito Tributário e aplicável a todos os Municípios do País.

Palavras-chave: ISS; LC 116/2003; streaming de vídeo e áudio; aplicativos de transporte; PLS 493/2017; PLP 521/2018; renúncia fiscal; autonomia municipal.

 

1 Introdução

A Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003, conhecida como Lei de normas gerais do ISSQN ou simplesmente Lei do ISS, dispõe sobre as generalidades para a exigência desse tributo de competência municipal. Constitui-se em uma baliza para a elaboração das legislações municipais que instituem o imposto. A norma fundamental para essa exação, no entanto, é dada pela Constituição Federal:

Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre: [...]

III - serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993) (BRASIL, 1988)

A Carta Magna traz-nos, ademais, que a definição dos impostos quanto a seus fatos geradores constitui matéria de lei complementar:

Art. 146. Cabe à lei complementar: [...]

III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:

a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes; (BRASIL, 1988)

Assim, coube à Lei Complementar nº 116/2003 estabelecer os parâmetros configuradores da incidência do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza ISSQN. Não obstante, deve, a lei de normas gerais, atender integralmente o conceito constitucional que estabelece a respectiva competência tributária, ou seja, o ISSQN somente pode incidir sobre um serviço, preceito expresso na norma fundamental. Da mesma forma, a lei de normas gerais deve estabelecer a base de cálculo adequada à atividade econômica definida no aspecto material da hipótese de incidência. Além de revelador da capacidade contributiva, o aspecto quantitativo não pode ser isolado do aspecto material, conforme acentua Geraldo Ataliba:

A base imponível é a dimensão do aspecto material da hipótese de incidência. É, portanto, uma grandeza ínsita na h.i. [...]. É, por assim dizer, seu aspecto dimensional, uma ordem de grandeza própria do aspecto material da h.i.; é propriamente uma medida sua. [...] Efetivamente, fica evidente que a posição central da base imponível _relativamente à hipótese de incidência_ pela circunstância de ser impossível que um tributo, sem se desnaturar, tenha por base imponível uma grandeza que não seja ínsita na materialidade de sua hipótese de incidência. [...] A própria designação (alíquota) já sugere a idéia que esteve sempre na raiz do conceito assim expresso: é quota (fração), ou parte da grandeza contida no fato imponível que o estado se atribui. (ATALIBA, 2016, p. 108, 111 e 114)

Considerando que o aspecto material da hipótese de incidência do ISSQN deve prever a prestação de um serviço e que o aspecto quantitativo deve respeitar a capacidade contributiva do prestador do serviço, temos que a atualização da Lei do ISS, realizada através da Lei Complementar nº 157, de 29 de dezembro de 2016, cometeu grave equívoco quanto à definição do aspecto material da hipótese de incidência para os chamados serviços de streaming e, por consequência prática, maculou seu aspecto quantitativo à luz do Princípio da Capacidade Contributiva. Dessarte, este artigo propõe-se a fazer uma reflexão crítica à citada atualização, considerada, nesse ponto, um desvirtuamento da Lei do ISS e do próprio conceito de serviço, e à alteração pretendida para os serviços contratados através dos aplicativos de transporte, revelada pelo Projeto de Lei do Senado Federal nº 493, de 2017 (PLS 493/2017), aprovado naquela casa legislativa e remetido à Câmara dos Deputados, onde tramita numerado como o Projeto de Lei Complementar nº 521, de 2018 (PLP 521/2018).

Há que se salvaguardar o ISSQN, pela sua imprescindibilidade como tributo municipal, visto ser a principal fonte própria de recursos para as médias e grandes cidades. Para tanto, faremos uma passagem pela doutrina tributarista e uma análise de cada serviço para, em sede conclusiva, efetuarmos uma consistente crítica às positivações adotada e pretendida, mediante a adoção de linguagem simples e de desenvolvimentos jurídico-científicos objetivos, concisos e coesos.

 

2 Conceito de serviço

O serviço _de qualquer natureza_ é o elemento material básico para a configuração do fato imponível do ISSQN definido pela Constituição Federal, fazendo-se mister analisarmos esse aspecto objetivo do imposto. Partimos do conceito sintetizado por Kiyoshi Harada: Serviço significa um bem econômico imaterial, fruto de um esforço humano aplicado à produção (HARADA, 2014, p. 58). Serviço é o trabalho humano cujo produto resultante vise algum proveito. Não há dúvida que a intenção de proveito seja elemento essencial à busca por um serviço, pois o fazer humano capaz de gerar resultado econômico advém de uma vontade de proveito. Essa vontade normalmente parte daquele que, na relação negocial tributável, habituamo-nos a designar como tomador do serviço. É a intenção do tomador que move o negócio, é dele o elemento volitivo que inicia o desenvolvimento do serviço passível de tributação pelo ISSQN. A prestação de serviço é a manifestação comercial dessa atividade, ainda que o resultado esperado não seja garantido.

A Lista de Serviços tributáveis pelo imposto, postada como anexo à Lei Complementar nº 116/2003, identifica a maior parte dos serviços desenvolvidos na sociedade, no entanto, nem todos foram incluídos, ao mesmo tempo em que surgem a cada dia novos serviços, especialmente impulsionados pelo avanço tecnológico. A lei deveria acompanhar essa evolução tecnológica de forma a demandar da atividade com maior capacidade econômica a sua adequada parcela de colaboração com a sociedade em que se insere, mormente quando exige maior uso de equipamentos públicos, regulamentação e fiscalização, de modo a atender, ao menos, o Princípio da Capacidade Contributiva e o Princípio da Isonomia.

Apesar de tardia, positiva foi, em termos gerais, a atualização da Lei de normas gerais do ISSQN, realizada através da Lei Complementar nº 157/2016. Nesse contexto, a reciclagem de parte da Lista de Serviços, em face da atualização dos denominados serviços digitais, fazia-se necessária há algum tempo. Ocorre que o legislador complementar, ao atualizar a Lista de Serviços tributáveis, é vinculado ao conceito constitucional de serviço, algo não observado na inclusão do subitem 1.09, que trata do serviço de disponibilização de conteúdos de entretenimento, por alguns chamado de serviço de streaming de vídeo e áudio, risco também presente no Projeto de Lei do Senado Federal nº 493/2017, relativo ao serviço de aplicativos de transporte.

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3 Streaming de vídeo e áudio

A palavra streaming em verdade não se traduz na atividade econômica em questão. Isso porque o serviço em si não é representado pela referida palavra inglesa. Streaming é o formato de transmissão ou de distribuição de conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto realizado através de diversos meios físicos, como via cabo, rádio e fibra ótica. Como não há regulamentação específica no País, trataremos, por ora, somente dos serviços de disponibilização de catálogos de entretenimento. Os serviços de oferecimento de vídeos, prestado por empresas como Netflix, Amazon (Prime Video), HBO (HBO Max) e Telecine (Telecine Play), e de áudios, prestado por empresas como Spotify e Apple (Apple Music), podem utilizar como plataforma de transmissão a internet, no entanto não é a transmissão através da rede mundial o núcleo do serviço oferecido. Para o produto oferecido por essas empresas, o objetivo pretendido pelo tomador do serviço é o entretenimento, seja através de filmes, séries, documentários etc. Não há como entender que o cliente deseje um serviço puramente de transmissão via internet, inclusive porque ele não define o conteúdo a ser disponibilizado ou transmitido. Não há que se confundir a exibição de filmes com os serviços de armazenamento e computação em nuvem (cloud storage e cloud computing), esses sim serviços de informática. O tomador contrata a exibição de filmes, séries e documentários ou de músicas, serviços de entretenimento com programação definida pelo prestador, cujos conteúdos, inclusive, estão sujeitos a direitos autorais, e, por vezes, incluem informes de publicidade e propaganda.

Infelizmente na positivação adotada pelo legislador complementar para esse serviço produziu-se um verdadeiro desvirtuamento da Lei do ISS. Isso se observa em função da sua inclusão no subitem 1.09 da Lista de Serviços anexa à Lei Complementar nº 116/2003:

1.09 - Disponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto por meio da internet, respeitada a imunidade de livros, jornais e periódicos (exceto a distribuição de conteúdos pelas prestadoras de Serviço de Acesso Condicionado, de que trata a Lei no 12.485, de 12 de setembro de 2011, sujeita ao ICMS). (BRASIL, 2003)

O serviço oferecido não constitui nenhuma novidade, mas sim a forma de transmissão, realizada via internet. O serviço oferecido é de entretenimento, não diferindo do serviço de exibição de um filme no cinema, exceto pelo meio utilizado. Entender que o objetivo buscado pelo tomador seria uma transmissão via internet equivaleria a narrar que a contratação se dá pelo desejo de o tomador obter um serviço da área de informática, o que não se aplica à realidade observada dos fatos. Equivaleria também a dizer que os cursos on-line de graduação e de pós-graduação oferecidos pelas faculdades seriam um serviço de disponibilização de conteúdo. Ora, quem busca uma pós-graduação on-line está a procurar educação, da mesma forma que quem busca a disponibilização de filmes procura entretenimento. O entretenimento constitui o serviço oferecido pelas empresas de streaming e procurado por seus clientes, os quais poderiam optar por recebê-lo presencialmente no cinema, via televisão, via internet ou por qualquer outro meio que se venha a inventar. A internet é apenas o meio de transmissão, a ferramenta utilizada para disponibilizar o acesso ao conteúdo, portanto não cabia ter incluído o serviço prestado pelas empresas de disponibilização de filmes nos serviços de informática, constantes no item 1 da Lista de Serviços. Não se trata de um serviço de informática, mas de entretenimento. Houve, em verdade, com a Lei Complementar nº 157/2016, uma enorme confusão entre o serviço e o meio de disponibilização. Por exemplo, um filme pode ser assistido no cinema, através da televisão, do computador, do smartphone, do tablet etc. Cada meio físico pode utilizar um diferente protocolo de transmissão, entretanto o meio físico e a codificação na qual o sinal é transmitido em nada alteram a natureza do serviço, do objetivo do tomador. Como analogia, a entrega de um projeto de engenharia pode dar-se através de uma impressão em folhas de papel, a ser entregue pessoalmente ou enviada por via postal, ou de um arquivo eletrônico, a ser transmitido via e-mail ou via mensagem de aplicativo de smartphone. A forma de transmissão empregada para disponibilizar o projeto ao tomador do serviço é indiferente para o seu enquadramento legal, visto que o fazer humano que o identifica, ou seja, o trabalho intelectual de elaboração, é dado pela sua natureza, é algo intrínseco à atividade. Vamos além, com um exemplo que não se aplica ao ISSQN, para demonstrar a importância do correto entendimento da materialidade tributada: um consumidor pode desejar saborear uma refeição em um restaurante ou em sua residência, com serviço de entrega por motocicleta. O fato de a refeição ser entregue na residência do consumidor não altera a sua natureza. O consumidor busca um alimento preparado e o mero fato de não ter se deslocado até o local do preparo não transforma o alimento em motocicleta, meio utilizado para o seu transporte.

O serviço fornecido pelas empresas de streaming é o entretenimento e de forma alguma poderia ser o meio de transmissão utilizado. O serviço de entretenimento, inclusive já constava na Lista de Serviços tributáveis pelo ISSQN, em seu item 12, de forma que, para a nova forma de disponibilização criada, bastava a atualização do dispositivo legal. O desvirtuamento causado pela inclusão do serviço no subitem 1.09 da Lista de Serviços tributáveis pelo ISSQN, realizado através da Lei Complementar nº 157/2016, não apresenta reflexos inconsistentes apenas na caracterização material necessária à configuração do fato imponível, mas especialmente quanto ao seu aspecto quantitativo, resultando em grande redução do imposto a ser pago pelas empresas de disponibilização de conteúdos e o consequente desrespeito ao Princípio da Capacidade Contributiva. Isso ocorre em função de os serviços de informática, em geral, serem tributados pelos Municípios com alíquota de 2%, ao passo que aos serviços de entretenimento normalmente é aplicada a alíquota de 5%. Em suma, podemos exemplificar que uma empresa ofertante desses serviços ao faturar R$ 1 milhão, pagará R$ 20 mil de ISSQN com o enquadramento do serviço no subitem 1.09 da Lista de Serviços, como está posto, ao passo que com o enquadramento no item 12 da mesma Lista, esse valor seria de R$ 50 mil. Na prática, a lei reduziu a arrecadação dos Municípios em 3%, ou ainda, aumentou os lucros das empresas em 3%. Constituiu-se, a alteração, em uma enorme renúncia fiscal imposta aos Municípios, favorecendo grandes empresas estrangeiras. O faturamento da Netflix no mundo em 2018 foi estimado em US$ 15 bilhões e o percentual de assinantes brasileiros, em 6% do total de clientes da empresa, logo essa renúncia fiscal pode ter representado a bagatela de R$ 100 milhões a menos nos cofres públicos municipais, ressaltando-se que esse valor se refere somente a uma empresa, em apenas um ano e para apenas um tributo.

 

4 Aplicativos de transporte

Um aplicativo é uma plataforma ou um meio utilizado para a contratação e o monitoramento de um serviço, no caso, de transporte. Ora, se é um meio, não é um fim. Assim como quem reserva um hotel ou uma passagem aérea via internet não contrata, como fim, um serviço de informática e sim, respectivamente, serviços de hospedagem e de transporte, não diferente ocorre para os aplicativos de transporte privado individual de passageiros. O objeto-fim contratado é o serviço de transporte, sendo clara a definição dada pelo art. 4º, inc. X da Lei nº 12.587/2012, que institui as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana, mediante a alteração realizada pela Lei nº 13.640/2018:

Art. 4º Para os fins desta Lei, considera-se: [...]

X - transporte remunerado privado individual de passageiros: serviço remunerado de transporte de passageiros, não aberto ao público, para a realização de viagens individualizadas ou compartilhadas solicitadas exclusivamente por usuários previamente cadastrados em aplicativos ou outras plataformas de comunicação em rede. (BRASIL, 2012)

Não resta dúvida que o produto oferecido por empresas como Uber, Cabify, 99 e similares, é um serviço de transporte, sendo o aplicativo mero instrumento para a sua contratação, podendo ainda ser realizada, conforme a lei, por outras plataformas de comunicação em rede. O consumidor, nesse caso, deseja um serviço de transporte visando o seu deslocamento de um ponto a outro, não diferindo, para fins de incidência do ISSQN, se a sua contratação ocorrerá através de um aplicativo de smartphone, de uma ligação telefônica, de um aceno ou de um grito. Aliás, nesse ponto encontrava-se a única diferença para o serviço de táxi: a forma de contratação. Hoje nem essa diferença existe, já que se pode contratar o serviço de táxi também por meio de aplicativo de smartphone. Nesse caso poderíamos questionar: o táxi deixará de ser um serviço de transporte e passará a ser considerado um serviço de informática? Parece-nos absurda tal ideia.

Não obstante o verdadeiro atentado lógico-semântico já demonstrado, outro desvirtuamento da Lei Complementar nº 116/2003 parece estar por vir. A referência trata do Projeto de Lei do Senado Federal nº 493/2017, já aprovado naquela casa, que pretende inserir o serviço de transporte contratado via aplicativo como o subitem 1.10 da Lista de Serviços tributáveis pelo ISSQN, ou seja, entendendo-o como serviço de informática:

1.10 - Agenciamento, organização, intermediação, planejamento e gerenciamento de informações, através de meio eletrônico, de serviços de transporte privado individual previamente contratado por intermédio de provedor de aplicações da internet. (BRASIL, Senado Federal, 2017)

Ora, o próprio texto do subitem já contradiz o item da Lista em que se tenta inseri-lo: agenciamento ou intermediação. Serviços de agenciamento ou intermediação pertencem ao item 10 da Lista de Serviços, sendo impossível confundi-los com serviços de informática, constantes no item 1 da mesma Lista. Embaralha-se o conceito de serviço, o fazer que compõe a atividade econômica tributável, com a plataforma ou o meio pelo qual ele é contratado. O resultado será o mesmo já citado para o subitem 1.09 da Lista de Serviços (disponibilização de conteúdos de entretenimento), qual seja, renúncia fiscal. Através do tipo de aplicativo em questão contrata-se, de fato, um serviço de transporte, enquadrado no subitem 16.02 da Lista de Serviços, para o qual normalmente é aplicada a alíquota de 5%, enquanto para os serviços enquadrados no item 1 da Lista, ou seja, serviços de informática, os Municípios geralmente adotam a alíquota de 2%. Ao classificar o serviço como informática, a alteração legislativa, na prática, determinaria a imposição de considerável renúncia fiscal aos Municípios. E não é só: o desmembramento da base de cálculo do imposto, ao considerarmos que a empresa de aplicativo de transporte não presta serviço de transporte, já reduzirá enormemente a receita passível de tributação. Para elucidar, vamos supor uma empresa de aplicativo de transporte que pratique uma taxa de comissão de 25% do preço do serviço. Nesse caso, sendo desmembrado o serviço adquirido pelo tomador-passageiro, a empresa terá a base de cálculo do imposto reduzida a ¼ do valor do serviço. Significa dizer que a empresa de aplicativo de transporte ao faturar R$ 1 milhão recolherá R$ 5 mil de ISSQN aos cofres públicos, ao passo que se fosse enquadrado integralmente o serviço como transporte recolheria R$ 50 mil. E o restante da base de cálculo, 75% do preço do serviço, será de responsabilidade do condutor do veículo, o elo mais frágil na cadeia negocial. Não restará aos Municípios outra ação, senão isentar do pagamento do ISSQN os condutores contratados por aplicativos, como usualmente fazem para os taxistas. O desmembramento do serviço de transporte contratado por aplicativo em dois serviços, um de intermediação, realizado pela empresa proprietária do aplicativo, e outro de transporte, realizado pelo condutor do veículo, retiraria imprescindível receita dos Municípios e favoreceria somente grandes empresas estrangeiras. Mas ainda pior desvirtuamento da Lei do ISS seria considerar o serviço de intermediação prestado pela multinacional como serviço de informática, como promovido pelo texto original do Projeto de Lei do Senado Federal nº 493/2017.

 

5 Conclusão

Ao concluir a análise, é inegável que a disponibilização de conteúdos de entretenimento pelas empresas de streaming de vídeo e áudio é um serviço de entretenimento, pelo que lamentamos a sua equivocada inclusão no subitem 1.09 da Lista de Serviços tributáveis pelo ISSQN. A solução apropriada seria incluir o serviço no item 12 da Lista de Serviços ou apenas alterar a redação do subitem 12.16 (Exibição de filmes, ...) para incluir o novo formato. Isso foi feito na Lei Complementar nº 157/2016 para o serviço de processamento de dados, com a alteração do subitem 1.03, e na Lei Complementar nº 183/2021 para os serviços de monitoramento de cargas, um desmembramento do subitem 11.02, realizado através da inclusão do subitem 11.05 à Lista de Serviços.

No que se refere à alteração pretendida através do Projeto de Lei do Senado nº 493/2017, tramitando na Câmara dos Deputados como o Projeto de Lei Complementar nº 521/2018, que trata dos serviços de transporte contratados via aplicativos que utilizam a internet, ressaltamos a necessidade de os operadores do Direito estarem atentos às propostas de alteração da legislação tributária, sobretudo, quanto à sua tecnicidade, como, nesse caso, ao tratar dos aspectos material e quantitativo da hipótese de incidência de determinado tributo. Mais adequado seria apenas esclarecer a inclusão da nova modalidade de contratação do serviço no subitem 16.02 da Lista de Serviços anexa à Lei do ISS, que já trata dos serviços de transportes municipais (Outros serviços de transporte de natureza municipal), ou pelo menos, em caso de desmembramento do serviço-fim contratado, que a intermediação oferecida pelos aplicativos de transporte seja incluída no item 10 da Lista, que trata de serviços de agenciamento e intermediação. Para fins de nota, ressalvamos da crítica a primeira parte do projeto, que prevê a implantação de uma Nota Fiscal de Serviços eletrônica nacional, que, se bem desenvolvida, traria excelente avanço para Municípios, contribuintes do ISSQN e demais cidadãos.

Soluções existem. Basta termos um olhar científico, não capturado e voltado à municipalidade, que cada vez mais é incumbida de regulamentação e fiscalização, mas pouco recebe em termos de arrecadação para custear tais serviços públicos. Alternativamente, as Câmaras de Vereadores poderiam aprovar alíquotas maiores para os serviços citados, mas, convenhamos, seria como apanhar com a mão um pedaço de carvão quente com a intenção de atirá-lo em alguém.

 

REFERÊNCIAS

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Sobre o autor
Tarciano José Faleiro de Lima

Auditor-Fiscal do Município de Porto Alegre. Pós-graduado em Direito Público e Gestão Pública. Professor. Escritor.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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