Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br

Dosimetria da pena na Lei Maria da Penha: O estado de permanência ou durabilidade das formas de violência doméstica como elemento para valoração negativa da conduta social e personalidade do agente

O presente artigo é de interesse da mulher vítima de violência doméstica e familiar na medida em que traz bases para que esta possa buscar o quantum de aplicação de pena ao agressor que seja proporcional à violência por ela sofrida.

 

RESUMO: O presente artigo analisará a dosimetria da pena nos crimes em contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher, limitando-se ao exame das circunstâncias judiciais da conduta social e da personalidade do agente, partindo dos pressupostos de que a valoração negativa de tais circunstâncias judiciais seria respaldada pelo ordenamento jurídico em razão das hipóteses de violência doméstica elencadas no artigo 7º, da Lei Maria da Penha e que tal exame não se confunde com o exame dos elementos inerentes do tipo penal sobre o qual recai a conduta. Também analisaremos se seria o caso de aplicação do instituto da continuidade delitiva, o que poderia impedir o uso da hipótese analisada na primeira da dosagem da pena, por incorrer em bis in idem. Dessa forma, conseguimos concluir pela possibilidade jurídica analisada, já que a Lei Maria da Penha elenca formas de violência doméstica contra a mulher pelas quais podem ser examinadas em juízo, para fins de exasperação da pena-base, sob o crivo do contraditório e ampla defesa.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Penal. Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006). Dosimetria da pena. Circunstâncias judiciais. Conduta social. Personalidade do agente. Formas de violência doméstica e familiar contra a mulher. Estado de permanência ou durabilidade da violência doméstica.

ABSTRACT: This article will analyze the dosimetry of the penalty in crimes in the context of domestic and family violence against women, limiting itself to the examination of the legal circumstances of the social conduct and personality of the agent, based on the assumptions that a negative valuation of such judicial circumstances would be supported by the legal system due to the hypotheses of domestic violence listed in article 7, of the Maria da Penha Law, and that such examination is not to be confused with the examination of the elements inherent in the criminal type on which the conduct falls. We will also analyze whether it would be the case of application of the criminal continuity institute, which could prevent the use of the hypothesis analyzed in the first sentence of the sentence, as it incurs an bis in idem. Thus, we were able to conclude for the legal possibility analyzed, since the Maria da Penha Law lists forms of domestic violence against women by which they can be examined in court, for the purpose of exasperation of the base penalty, under the scrutiny of the adversary system and broad defense.

KEYWORDS: Criminal Law. Maria da Penha Law (Law nº 11.340/2006). Pen dosimetry. Legal circumstances. Social conduct. Agent personality. Forms of domestic and family violence against women. Status of permanence or durability of domestic violence.

 

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo busca explicar a possibilidade do exame das formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, elencadas no artigo 7º, da Lei Maria da Penha, como elementos idôneos para a valoração negativa da conduta social e personalidade do agente, quando constatada a permanência ou durabilidade dessas formas de violência.

Para tanto, analisamos no segundo tópico deste artigo os objetivos gerais que tratam a Lei Maria da Penha, quanto a sua forma de interpretação e finalidades. Ao passo que no terceiro tópico adentramos, em profundidade, nos conceitos e demais delimitações da conduta social e personalidade do agente, em subtópicos, cada.

No quarto tópico, analisamos se a permanência ou durabilidade das formas de violência não seria o caso de aplicação do instituto da continuidade delitiva, o que poderia impedir o uso desse elemento para valoração desses vetores na primeira fase da dosagem da pena, por ser incorrer em bis in idem.

 

2. DOS OBJETIVOS GERAIS DA LEI MARIA DA PENHA

No Brasil anterior a Lei nº 11.340/2006, intitulada de Lei Maria da Penha, não havia uma punição que gerasse um temor por parte dos homens no tocante a violência doméstica. Havia de certa forma uma impunidade, especialmente para os casos de crimes mais leves tipificados na legislação penal.

Não apenas para atender ao disposto no art. 226, § 8º, da Constituição Federal[4], mas também de modo a dar cumprimento a diversos tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil[5], foi criada a Lei Maria da Penha, que, originalmente, não trouxe em sua redação crimes e penas, mas sim mecanismos processuais de proteção à mulher vítima de violência doméstica e familiar.

Contudo, com a vigência da Lei nº 13.641/2018, foi inserido um tipo penal na Lei Maria da Penha prevendo como crime a conduta de descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas na lei em comento[6].

Diante disso, a referida legislação busca, precipuamente, três finalidades: a criação de mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher; a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelecer medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

A Lei Maria da Penha, em seu artigo 7º, lista, em rol exemplificativo, as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher. A intenção legislativa não foi a de tipificar crimes pelo referido dispositivo, mas sim de servi-lo de fonte de consulta para os demais instrumentos e mecanismos que buscam coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher.

Da análise do dispositivo legal, contemplamos que para o reconhecimento da violência contra a mulher, não basta a presença alternativa de um dos incisos do artigo 7º, em combinação alternativa com um dos âmbitos do artigo 5º (âmbito da unidade doméstica, âmbito da família ou em qualquer relação íntima de afeto). É necessária, ainda, a previsão legal ou tipificação penal da conduta, como ocorre com qualquer outro crime conhecido.

Ademais, tendo em vista que a Lei Maria da Penha foi criada com a intenção de garantir maior proteção a mulher que se encontra em uma situação de vulnerabilidade no âmbito de uma relação doméstica, familiar ou íntima de afeto, ela deve ser interpretada de modo que não prejudique os mecanismos de coibição e prevenção criados por ela, nos termos do artigo 4º, da Lei nº 11.340/2006[7].

Por isso, os dispositivos constantes da Lei Maria da Penha devem ser interpretados em favor da pessoa que mereceu maior proteção do legislador (a mulher vítima de violência em uma relação doméstica, familiar ou íntima de afeto), e não em sentido contrário[8]. De maior rigor, seria possível dizer que não só os dispositivos constantes na Lei Maria da Penha, mas também todos os demais dispositivos do ordenamento jurídico que se qualifiquem como sistema de proteção especial da mulher vítima de violência devem ser interpretados em favor da vítima.

 

3. AS DIVERSAS FORMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER COMO ELEMENTO DE EXASPERAÇÃO DA PENA-BASE

3.1. DA VALORAÇÃO NEGATIVA DA CONDUTA SOCIAL

A conduta social consubstancia no exame de três fatores que integram a vida do apenando: o convívio social, familiar e laboral. Trata-se basicamente do comportamento do indivíduo no contexto da família, do trabalho, da escola e da vizinhança[9].

Diferentemente da análise do crime cometido em si, o exame da conduta social requer olhar para o meio em que vive o sentenciado perante a comunidade, a família e seus colegas de trabalho[10]. Assim, o objeto a ser avaliado pelo magistrado é externo ao crime cometido sem deixar, contudo, de haver relação com a pessoa acusada e com o crime por ele praticado. Em outras palavras, é o cotejo entre o crime cometido e a pessoa que o pratica, no seu aspecto social, familiar e laboral, que interessa para fins de valoração da conduta social.

Para aferição desse exame sobre a conduta social é necessário que o comportamento a ser avaliado seja de caráter permanente ou duradouro. É justamente esse estado de permanência ou durabilidade que se revela essencial para o afastamento do juízo de valoração de condutas pelas quais sejam consideradas isoladas na vida do sentenciado.

Nucci explica que julgador precisa conhecer o acusado, para fins de análise do merecimento de reprimenda maior ou menor. Disso se extrai a importância das perguntas a serem feitas no seu interrogatório, e também às testemunhas, durante a instrução. Nesse sentido, um péssimo pai e marido violento, em caso de condenação por lesões corporais graves, merece pena superior à mínima, por exemplo. Por outro lado, se for considerado excelente pai e dedicado esposo, torna justificável a aplicação de pena-base mais próxima do mínimo[11].

Na mesma linha é o posicionamento de Masson ao aduzir que a conduta social deve ser objeto de questionamento do magistrado tanto no interrogatório como na colheita da prova testemunhal. Caso não seja o bastante para a busca da verdade real, pode o julgador determinar, ainda, a avaliação do acusado pelo setor técnico (avaliação social e psicológica)[12].

Diante disso, a violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral contra a mulher, conforme elencadas no artigo 7º, da Lei nº 11.340/2016, quando evidenciado a sua ocorrência em estado duradouro ou de permanência, podem ensejar na valoração negativa da conduta social do sentenciado, desde que haja a devida apuração com base em elementos probatórios produzidos em juízo.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Essa valoração seria possível, já que a apuração da ocorrência de qualquer dessas modalidades de violência, além de não se tratar da análise inerente ao crime cometido em si, refere-se ao comportamento do sentenciado em relação a sua família, que é um dos três fatores que integram a conduta social do apenando, visto da perspectiva externa feita sobre o ato criminoso, objeto do mérito da ação penal.

Nesse contexto, a aparição constante de equimoses na pele da vítima, advindas por agarramento de forma brusca ou violenta de seus braços, por exemplo, é apta a constatação da prática corriqueira de violência física contra a mulher que alude o artigo 7º, inciso I, da Lei nº 11.340/2006 e ser usada para sopesar a pena-base do sentenciado quando da valoração negativa da conduta social.

Neste prisma, por se tratar de circunstâncias fáticas diversas, haveria o cotejo entre a lesão corporal sofrida pela vítima mulher, ocorrida em razão do desferimento de um soco do acusado em seu rosto, por exemplo, matéria principal a ser apurado na ação penal, e a violência física sofrida pela mulher, advindas das corriqueiras aparições de equimoses em sua pele, tudo apurado por meio de testemunhas e do próprio relato da vítima, para fins de valoração da conduta social do aspecto familiar do sentenciado.

Idêntico raciocínio é possível ser feito em relação as demais formas de violência previstas nos demais incisos do artigo 7º, da Lei nº 11.340/2006, na apuração de qualquer crime em contexto de violência doméstica contra mulher.

Ora, umas das formas de violência que pode ser praticada contra a mulher é a violência psicológica, que pode ser entendida como a conduta que vise degradar ou controlar suas ações, mediante ameaça, constrangimento ou isolamento, nos termos do inciso II, do artigo 7º, da lei em comento. Exemplo disso seria a apuração de crime de lesão corporal ou tentativa de homicídio contra a vítima mulher, sendo apurado no processo, também, a notícia de ocorrência de vários atos hostis e ameaçadores que o acusado teria feito para a vítima como forma de isolá-la do contato de familiares.

Nesse sentido, porém sem anuir com a tese acima afirmada, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu não haver ilegalidade na exasperação da pena-base pela valoração negativa da conduta social sob fundamentação de que o sentenciado apresentava de maneira reiterada comportamento agressivo (agressões psicológicas, especialmente) por parte do réu durante a convivência do casal.

(...) No que se refere à conduta social do paciente, não há ilegalidade na fundamentação, porquanto "o comportamento possessivo do réu vinha de longa data. Chega-se à esta conclusão a partir dos depoimentos de F. D., que bem denotam um reiterado comportamento agressivo (agressões psicológicas, especialmente) por parte do réu durante a convivência do casal. Para além disso, há diversos indicativos de que o réu já se comportava desse modo em relacionamentos afetivos anteriores, considerando que há registros de ocorrências relativas a ameaças e agressões físicas contra namoradas/companheiras anteriores", elementos que exigem resposta penal superior, em atendimento aos princípios da proporcionalidade e da individualização da pena. (...). (AgRg no HC 671.316/SC, Rel. Ministro JESUÍNO RISSATO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJDFT), QUINTA TURMA, julgado em 28/09/2021, DJe 05/10/2021).

Na ocasião, na apuração do crime de homicídio qualificado tentado, por meio do testemunho da filha da vítima em questão, o Tribunal reconheceu haver elementos a serem valorados na conduta social do sentenciado, denotado pelo reiterado comportamento agressivo (agressões psicológicas) por parte do réu durante a convivência do casal, além de existir indicativos de ocorrência desse mesmo comportamento em relacionamentos afetivos anteriores do réu.

Essa análise requer maior esforço dos atores da persecução penal (delegado de polícia, promotor de justiça, assistente de acusação e magistrado). Ademais, para a melhor apuração de que a vítima se encontrava em estado de permanente ou duradouro de violência doméstica é salutar a colheita de depoimentos de quem tenha o conhecimento do sofrimento que a vítima teve experimentado, seja de familiares, vizinhos, amigos ou colegas de trabalho. Alia-se a isso as declarações da própria vítima, embora não tenha força probatória, em tese, por si só, é comum sua aceitação, visto que os crimes em contexto de violência doméstica, em razão de sua própria natureza, envolvem condutas que muitas das vezes são despercebidas por vizinhos, familiares e colegas de trabalho[13].

 

3.2. DA VALORAÇÃO NEGATIVA DA PERSONALIDADE DO AGENTE

Em linhas gerais, a personalidade é definida na doutrina como as particularidades da pessoa, tais como caráter, índole e temperamento. É o conjunto de características psicológicas que determinam os padrões de pensar, sentir e agir, ou seja, a individualidade pessoal e social de determinado indivíduo[14].

A personalidade seria algo que particulariza o ser, que o diferencia dos restantes e que lhe faz agir e reagir de determinado modo. Do seu exame, não se exige que o seu padrão de pensar, sentir e agir seja permanente ou duradouro, embora se vislumbre uma certa constância desse padrão. Afinal, mudanças advindas pelo crescimento, amadurecimento e experiências são tidas como algo natural da pessoa.

Para fins dosimetria, a personalidade é analisada pelo perfil subjetivo do réu, nos aspectos moral e psicológico, do qual se avalia se tem ou não o caráter voltado à prática de infrações penais[15].

Apesar de ser objeto de estudo de outras ciências, a análise da personalidade do agente prescinde da existência de prova pericial, pois vige no sistema processual penal a livre apreciação da prova pelo juiz, a quem compete apreciar as provas e fazer o uso de notícia produzida nos autos do processo. Nesse sentido, entende o Superior Tribunal de Justiça:

É desnecessária a existência de prova pericial para a valoração negativa da personalidade na primeira fase da dosimetria da pena, bastando que sejam apontados elementos concretos capazes de demonstrar a maior reprovabilidade desta vetorial. Precedentes. (AgRg no AREsp 1871529/TO, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 24/08/2021, DJe 30/08/2021).

Embora parte da doutrina entenda que a personalidade deveria ser retirada da análise de circunstâncias judiciais em razão da existência de uma possível contradição do sistema penal brasileiro, que, de modo geral, tipifica fatos e não autores[16], a análise da personalidade do agente é salutar para individualização da pena, visto que é possível a sua aferição a partir de elementos probatórios colhidos em juízo sem que seja necessário para avalia-la que o julgador tenha o conhecimento prévio de qualquer outra ciência.

Ora, se há elementos de provas nos autos, o comportamento abusivo e reiterado de condutas que consubstanciam as diversas formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, como prevê a Lei nº 11.340/2016, esses mesmos elementos podem ser considerados pelo julgador para a valoração negativa da personalidade do agente para fins de exasperação da pena-base.

Desse exame, o julgador pode, em tese, valorar negativamente ora a conduta social, ora a personalidade do agente e, ocasionalmente, ambos os vetores, a depender do contexto. Isso ocorre por inexistir um conceito fechado ou rígido entre as circunstâncias judiciais elencadas no artigo 59 do Código Penal, conforme afirmado anteriormente. Alia-se a isso, a possibilidade de haver elementos distintos que possam sopesar ambos os vetores sem margem para ocorrência de bis in idem. Nesse trilhar, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:

Ademais, sendo distintos os fundamentos apontados pelas instâncias de origem para fundamentar a desfavorabilidade das circunstâncias judiciais atinentes à personalidade do agente e à conduta social, não há se falar em bis in idem. (AgRg no REsp 1918046/SP, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 13/04/2021, DJe 19/04/2021).

Em outro momento, o Superior Tribunal de Justiça, em sede Agravo Regimental em habeas Corpus, recentemente manteve como fundamentação idônea para a exasperação da pena-base, além de outros elementos, a personalidade desvirtuada do acusado que reiteradamente agredia a ex-companheira:

As instâncias ordinárias apresentaram fundamentação lastreada em elementos concretos e específicos do caso em apreço, os quais efetivamente indicam a personalidade desvirtuada do Acusado, pois já teria agredido a Vítima por diversas vezes e também teria atacado sua atual companheira; ademais, o filho do Agravante declarou que o Réu é pessoa estourada. (AgRg no HC 506.558/RJ, Rel. Ministra LAURITA VAZ, SEXTA TURMA, julgado em 08/09/2020, DJe 22/09/2020).

Na decisão acima tratada, havia registro de ocorrência policial (boletim de ocorrência) feito pela atual companheira, no qual aventava a existência de agressões perpetrada contra esta. Embora a defesa tenha alegado que tal registro teria sido arquivado, foi mantida a fundamentação da valoração negativa da personalidade pelo STJ, pois entendeu que a matéria não tinha sido debatida nas instâncias inferiores. Contudo, vislumbra-se do julgado que as agressões reiteradas ou contínuas que a vítima experimentou foi determinante para a valoração da personalidade do agente e não da conduta social.

Não é necessário, contudo, pela tese afirmada neste trabalho, que a violência corresponda essencialmente a crime tipificado na legislação e que haja o registro de ocorrência policial para que seja possível a valoração negativa da personalidade. A constatação de condutas corriqueiras e abusivas correspondentes a violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral contra a mulher, produzidas conforme a legislação processual, é bastante para assegurar ao julgador da existência do estado de permanência e durabilidade e, por final, valorar a personalidade do agente, caso não seja utilizada para valorar a sua conduta social.

Embora os registros de ocorrência policial sejam elementos concretos que atestam o estado de permanência ou de durabilidade da violência que a vítima sendo submetida pelo agressor, existem outros meios de provas capazes de constatar essa reiteração. Exemplo disso são os relatos de testemunhas e da vítima produzidos em juízo. Daí a importância de se conseguir extrair dos relatos das testemunhas arroladas o máximo de elementos fáticos que comprovem não só a materialidade do crime, mas também outros elementos capazes de valorar negativamente a personalidade e/ou conduta social do agente, variavelmente.

 

4. DA NÃO CARACTERIZAÇÃO DA HIPÓTESE DE CONTINUIDADE DELITIVA

O crime continuado, previsto no artigo 71 e parágrafo único do Código Penal[17], consiste em uma ficção jurídica criada por motivos de política criminal do qual deve ser aplicado quando usado em benefício do réu e desprezada quando a ele for prejudicial.

Conceitualmente crime continuado, ou continuidade delitiva, é a modalidade de concurso de crimes que se verifica quando o agente, por meio de duas ou mais condutas, comete dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, local, modo de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro[18].

Embasada pela teoria da ficção jurídica, devem ser consideradas como delito único as ações levadas a efeito pelo agente que consistiriam, todas elas, infrações penais, caso fossem analisadas individualmente, conforme determinado no Código Penal[19]. O objetivo é evitar a aplicação de penas somadas umas com as outras pela prática de delitos de mesma natureza, o que pode redundar no encarceramento excessivamente prolongado.

Rogério Greco lista os requisitos do crime continuado. São eles: a) mais de uma ação ou omissão; b) prática de dois ou mais crimes, da mesma espécie; c) condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes; d) os crimes subsequentes devem ser havidos como continuação do primeiro[20].

Ainda, para a caracterização da continuidade delitiva, são considerados crimes da mesma espécie aqueles previstos no mesmo tipo penal, conforme já decidido pelo Superior Tribunal de Justiça[21] e mantido nos julgados mais recentes:

No caso dos crimes de roubo majorado e latrocínio, sequer é necessário avaliar o requisito subjetivo supracitado ou o lapso temporal entre os crimes, porquanto não há adimplemento do requisito objetivo da pluralidade de crimes da mesma espécie. São assim considerados aqueles crimes tipificados no mesmo dispositivo legal, consumados ou tentada, na forma simples, privilegiada ou tentada, e, além disso, devem tutelar os mesmos bens jurídicos, tendo, pois, a mesma estrutura jurídica. Perceba que o roubo tutela o patrimônio e a integridade física (violência) ou o patrimônio e a liberdade individual (grave ameaça); por outro lado, o latrocínio, o patrimônio e a vida. (AgRg no HC 609.131/SP, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 24/08/2021, DJe 30/08/2021). (grifei)

Ademais, caso seja reconhecido o concurso de crimes em caso de continuidade delitiva, o julgador exasperará a pena após a fixação da pena, que ocorre seguindo as regras do artigo 68 do Código Penal, que consagra o sistema trifásico da dosimetria da pena (primeira, segunda e terceira fase). Ou seja, a exasperação da pena por razão do reconhecimento da continuidade delitiva se daria em um quarto momento da dosimetria da pena, por assim dizer.

Note-se que para a configuração da continuidade delitiva é exigido a ocorrência de vários crimes de mesma tipificação penal decorrentes de várias condutas praticadas em condições semelhantes de tempo lugar, maneira de execução e outras semelhantes (conexão temporal, espacial, modal e ocasional).

Neste ponto, a análise da continuidade delitiva difere-se da análise do estado de permanência ou durabilidade da violência doméstica praticada contra a mulher, visto que, nesta, não é exigido que essas práticas configurem crimes em si. Aqui, o exame é feito para fins de avaliação da conduta social, no que se refere ao papel desempenhado pelo agente no seu aspecto social, familiar e laboral, e da personalidade do agente, pelo seu padrão de pensar, sentir e agir, na primeira fase da dosagem da pena.

Não é de interesse, para fins de valoração da conduta social e da personalidade do agente, as condutas que cumprem os requisitos do exame da continuidade delitiva, que uma vez verificada a sua ocorrência deve ser aplicada em benefício do réu. Os vetores da fase inicial da dosagem se satisfazem com as condutas tidas como capazes de trazer abalo a integridade corporal, moral, sexual, patrimonial ou psicológico da mulher sem que sejam consideradas condutas criminosas praticadas nas mesmas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhanças, conduto, sem deixar de guardar relação com o fato ou com o agente criminoso.

Por se tratarem de fases diferentes da dosimetria da pena, a análise e uso de uma circunstância em uma determinada fase do sistema trifásico impede que esta mesma circunstância seja usada novamente em uma outra fase da dosagem da pena. Evita-se com isso o chamado bis in idem, que seria o uso do mesmo duas vezes.

Repare que estamos limitando uso repetido na dosagem da pena (dosimetria) e não na aplicação da pena, que possui conceito mais amplo, pois engloba a própria dosimetria, a fixação do regime prisional, a possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade e de suspensão condicional da pena e efeitos da condenação, fases posteriores à dosagem da pena. Nesse caso, seria possível o uso da reincidência delitiva para agravar a pena intermediária, na segunda fase da dosagem, e para fixar o regime inicial mais gravoso da que a pena em concreto o exige, por exemplo.

Portanto, a análise da conduta social e da personalidade do agente, nos moldes aqui analisados, revela-se fator essencial da individualização da pena. Isso porque o direito penal procura, nos princípios de sua ciência, as balizas necessárias que repudiam tanto o excesso quanto a carência justamente por possuir estreita ligação com a ideia de justiça.

E é exatamente isso que consiste no princípio da proporcionalidade, que serve para estabelecer o equilíbrio de interesses contrapostos, conforme aduz Schmitt[22], embora não seja um princípio explícito na Constituição da República, nem do Código Penal, o que não retira a importância de tal princípio para o Direito.

 

5. CONCLUSÃO

A conduta social e a personalidade do agente são vetores examinados que primeira fase dosimétrica e revestem-se de elementos que não sejam inerentes ao tipo penal que, por sua vez, trata-se do mérito da ação penal.

A violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral contra a mulher, conforme elencadas no artigo 7º, da Lei nº 11.340/2016, quando evidenciado a sua ocorrência em estado duradouro ou de permanência, podem ensejar na valoração negativa da conduta social e a personalidade do sentenciado. Nesse sentido, é possível, em tese, a aplicação do artigo 59 do Código Penal cominado com artigo 7º, e seus incisos, da Lei nº 11.340/2006.

Por inexistir conceitos rígidos entre a conduta social e a personalidade, a violência doméstica ocorrida em estado de permanência ou de durabilidade, quando constatada pelas provas produzidas nos autos, pode ensejar na valoração negativa tanto da conduta social quanto da personalidade do sentenciado.

Essa valoração pode ocorrer quer em um ou outro vetor, quer em ambos, necessitando apenas que o julgador fundamente sua decisão com elementos distintos que foram apurados nos autos, sob o contraditório e ampla defesa.

As condutas tidas como capazes de trazer abalo a integridade física, moral, sexual, patrimonial ou psicológico da mulher e que podem ser examinadas para fins de exasperação da pena-base são aquelas que não deixam de guardar relação com o fato ou com o agente criminoso ao mesmo tempo não que sejam consideradas crimes praticados nas mesmas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhanças, o que poderia ser avaliado para aplicação do instituto da continuidade delitiva em favor do réu.

Dessa forma, não há que falar em continuidade delitiva, pois a diversas formas de violência domésticas e familiar contra a mulher, elencadas no artigo 7º da Lei Maria da Penha, são originadas de condutas que não necessariamente configuram crimes, mas sim daquelas pelas quais recaiam reprovação social sobre a conduta social e personalidade do agente.

 

REFERÊNCIAS

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal - Parte Geral. Vol. 1. 19ª. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2017.

Jurisprudência em teses do Superior Tribunal de Justiça. Boletim nº 20, publicado em 17 de setembro de 2014, sobre crime continuado II. Disponível em: <https://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:rh7Pvn-VkZ0J:https://www.stj.jus.br/publicacaoinstitucional/index.php/JuriTeses/article/download/11250/11379+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br>. Acesso em: 21 de out. 2021.

LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada: volume único. 8ª ed. rev., atual. e ampl. Salvador: JusPodivm, 2020.

MASSON, Cleber. Código Penal comentado. 2ª ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014.

NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da Pena. 6ª ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

SCHMITT, Ricardo Augusto. Sentença Penal Condenatória: Teoria e Prática. 13ª. ed. rev. e atual. Salvador: Editora JusPodivm, 2019.

VIANNA, Túlio; MATTOS, Geovana. A inconstitucionalidade da conduta social e personalidade do agente como critérios de fixação da pena. Disponível em: <http://bivicce.corteconstitucional.gob.ec/bases/biblo/texto/KONRAD/2008_ADC.pdf#page=303>. Acesso em: 20 de out. 2021.

ZAGO, Lourenço. Violência doméstica lateral: é necessário denunciar. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/57351/violencia-domestica-lateral-e-necessario-denunciar>. Acesso em: 19 de out. 2021.

  1. CF, art. 226, § 8º. O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

  2. Por exemplo: Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, assinado pela República Federativa do Brasil, em Nova Iorque, em 31 de março de 1981 e promulgada pelo Decreto 26/94.

  3. Lei 11.340/2006, art. 24-A. Descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta Lei: Pena detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos.

  4. Lei nº 11.340/2006, art. 4º. Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

  5. LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada: volume único. 8ª ed. rev., atual. e ampl. Salvador: JusPodivm, 2020, p. 1257.

  6. SCHMITT, Ricardo Augusto. Sentença Penal Condenatória: Teoria e Prática. 13ª. ed. rev. e atual. Salvador: Editora JusPodivm, 2019, p. 151.

  7. SCHMITT, 2019, p. 151.

  8. NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da Pena. 6ª ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 124.

  9. MASSON, Cleber. Código Penal comentado. 2ª ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014, p. 323.

  10. ZAGO, Lourenço. Violência doméstica lateral: é necessário denunciar. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/57351/violencia-domestica-lateral-e-necessario-denunciar>. Acesso em: 19 de out. 2021.

  11. SCHMITT, 2019, p. 155.

  12. MASSON, 2014, p. 323.

  13. VIANNA, Túlio; MATTOS, Geovana. A inconstitucionalidade da conduta social e personalidade do agente como critérios de fixação da pena. Disponível em: <http://bivicce.corteconstitucional.gob.ec/bases/biblo/texto/KONRAD/2008_ADC.pdf#page=303.> Acesso em: 20 de out. 2021.

  14. CP, art. 71 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

    Parágrafo único - Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do art. 75 deste Código. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

  15. MASSON, 2014, p. 362.

  16. GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal - Parte Geral. Vol. 1. 19ª. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2017, p. 758.

  17. GRECO, Rogério, 2017, p. 759.

     

  18. Jurisprudência em teses do Superior Tribunal de Justiça. Boletim nº 20, publicado em 17 de setembro de 2014, sobre crime continuado II. Disponível em: <https://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:rh7Pvn-VkZ0J:https://www.stj.jus.br/publicacaoinstitucional/index.php/JuriTeses/article/download/11250/11379+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br>. Acesso em: 21 de out. 2021.

  19. SCHMITT, 2019, p. 118.

 

Como citar os autores e este artigo:

MARTINS, R. R. J.; SOUSA, G. S. L.; ALECRIM, V. H. F. Dosimetria da pena na Lei Maria da Penha: O estado de permanência ou durabilidade das formas de violência doméstica como elemento para valoração negativa da conduta social e personalidade do agente. Disponível em: < https://jus.com.br/artigos/94486/dosimetria-da-pena-na-lei-maria-da-penha-o-estado-de-permanencia-ou-durabilidade-das-formas-de-violencia-domestica-como-elemento-para-valoracao-negativa-da-conduta-social-e-personalidade-do-agente>. Acesso em: (...).

 

Outros artigos publicados:

MARTINS, R. R. J. Dosimetria da pena: critérios para a fixação da pena privativa de liberdade e a desproporcionalidade na aplicação da pena. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/83173/dosimetria-da-pena-criterios-para-a-fixacao-da-pena-privativa-de-liberdade-e-a-desproporcionalidade-na-aplicacao-da-pena.

 

Sobre os autores
Rony Roberto José Martins

Bacharel em Direito pela Universidade do Distrito Federal (UDF) - 2019. Advogado, OAB / DF 65.763, especialista em dosimetria da pena.

Vitor Hugo Fernandes Alecrim

Pós-graduando em direito, inovação e tecnologia pela Faculdade CERS. Bacharel em Direito pela Universidade do Distrito Federal - UDF. Advogado, OAB / RJ 231.332. E-mail: vitorfalecrim@hotmail.com.

Guilherme Silva Lopes Sousa

Bacharel em Direito pela Universidade do Distrito Federal - UDF. Advogado, OAB / DF 67666. E-mail: guilhermesousa.jus@gmail.com.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Outros artigos publicados: MARTINS, R. R. J. Dosimetria da pena: critérios para a fixação da pena privativa de liberdade e a desproporcionalidade na aplicação da pena. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/83173/dosimetria-da-pena-criterios-para-a-fixacao-da-pena-privativa-de-liberdade-e-a-desproporcionalidade-na-aplicacao-da-pena.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!