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A mulher enquanto metáfora do Direito Penal

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Agenda 01/01/2000 às 01:00

4. A relação das mulheres com o Direito Penal

4.1. As bruxas e as vítimas

A lei, principalmente a penal, é norma a qual se infringe de forma ativa ou passiva (ação ou omissão) dependendo do tipo o comportamento exigido é designado como dever. Ao se agir em desconformidade com a lei está se violando o dever (HART, 1994:34). Na história, os primeiros sinais de desobediência das mulheres à lei surgem por volta do século XI. Não que anterior a essa época as mulheres não tenham delinqüido, o que ocorre é que por volta dos anos de 1210 surgem tipos específicos da delinqüência feminina. Como se a lei ao preservar e prescrever determinadas condutas como certas e erradas o faça separando aquelas tipicamente masculinas e tipicamente femininas, mas é uma separação realizada através de um olhar masculino. Como se percebe, ao longo da história, as condutas femininas são diretamente vinculadas à sexualidade e ao mundo privado.

As primeiras noticias da criminalidade feminina estão estritamente relacionadas com a bruxaria e com a prostituição. Comportamentos que vão de encontro a padrões estabelecidos, que provocam e descumprem o papel pré-determinado à mulher. Quando a Igreja, sentindo-se ameaçada frente ao crescimento de novas concepções que contestavam os dogmas, a riqueza, a castidade, resolve tomar atitudes mais severas inicia-se a tão romântica "caça às bruxas". São Domingos de Gusmão foi incumbido de algumas missões e, em 1216, Inocêncio III entregou-lhe a presidência de um Tribunal. Dessa forma, aos poucos, foi nascendo o que se passou depois a designar por inquisição, como uma instituição oficial e permanente para toda a Igreja, consolidando-se em 1231, através do Papa Gregório IX (CAMPOS, p. 10. 1995).

Todo o romantismo acerca da feitiçaria, o preconceito, mas principalmente sua prática, sempre estiveram relacionadas intimamente à natureza feminina e, por extensão, à idéia de que toda a mulher era uma feiticeira em potencial. Esse estereótipo surgiu por volta de 1400, e manteve-se, pelo menos no direito criminal, até final do século XVII. No século XVI e XVII a mulher tinha quatro vezes mais possibilidades de que o homem de ser acusada do crime de feitiçaria e de ser executada por essa razão (CAMPOS, 1995). Aqui é importante fazer referência a observação de Vera de Andrade (1995), quando evidencia que apesar de existir um tipo penal, no caso a bruxaria, as formas dos aparelhos penais coibirem essa prática se dá em proporção diferenciada para mulheres e homens. Vera trabalha prioritariamente com questões de classes, o fato da maioria da população carcerária brasileira ser de pobres, negros e semi analfabetos, bem como, de crimes com roubo, furto e atualmente pequenos tráficos, não significa que estes crimes existam em maior quantidade (17), e que somente este perfil de cidadão cometa delitos, mas, como no caso das "bruxas" não que houvessem mais "bruxas" do que "bruxos", mas, como a idéia da feitiçaria estava relacionada ao universo feminino, assim, os aparelhos do sistema buscavam o estereótipo correspondente aquele tipo de delito com mais intensidade .

A constituição de um estereótipo (18) para a bruxaria, de ser entendida como uma conduta prioritariamente feminina, evidencia que tanto o discurso jurídico quanto seus meios de operacionalidade não são imparciais ou neutros, e a existência dessa parcialidade resulta num tratamento ou paternalista, de proteção ao papel da mulher, ou de severidade. Mas, a benevolência ou a severidade de tratamento independente da instância do poder judiciário - aplicação ou execução de norma - uma vez que estão intimamente ligados ao tipo de conduta das mulheres. Se a conduta é de acordo com o comportamento esperado (19), é mais brando o tratamento. Se a conduta foi avessa ao comportamento determinado, como a bruxaria, que está diretamente relacionada ao exercício de poder, ou atualmente o tráfico ou roubo, atitudes entendidas como tipicamente masculinas, o tratamento, por parte do controle formal é mais severo.

          4.2. As prostitutas e as cortesãs

A necessidade de preservar a família, a fidelidade e a castidade, concomitantemente ao processo de "maturação da virilidade masculina". Propiciavam o álibi perfeito para a existência da prostituição. Essa ao mesmo tempo que marginal, é alternativa para uma "pseudo" preservação da moral familiar. Havia o processo de institucionalização da prostituição. As formas de tolerância e de repressão, a respeito da prostituição e as instituições criadas para controlar e para proteger a família e a sociedade, informam de maneira clara sobre a disposição dos papéis sexuais e sobre as formas de identidade masculina e feminina que sucessivamente vão surgindo (FARGE e DAVIS, 1991: 461).

A prostituição expõe outra face da criminalidade feminina, a dos comportamentos que agridem primeiro e principalmente, os padrões culturais e, posteriormente, a lei, padrões estes previstos apenas para mulheres.

A prostituta passa a compor o revel e o oposto da mulher ideal, da mãe de família, da esposa submissa, ao mesmo tempo que passa a despertar admiração, uma vez mulher pública e refinada (20). No entanto, a Reforma e a Contra-reforma (séc. XVI) passam a condenar a fornicação masculina, a polêmica religiosa modifica as relações dos cônjuges, é eliminada a justificação social das casas de prostituição. A prostituição deixa de ser espetáculo e passa a ter sua prática normatizada. Condenando e estigmatizando, quer-se eliminar a prostituição como que a uma praga cancerosa (RAGO, 1992).

Surgem as casas de Convertidas ou Arrependidas, instituições específicas para mulheres. Essas instituições serviram de canalizadores para o imaginário social, uma vez que a sociedade civil, através das elites, bem como as autoridades religiosas, desprendiam esforços para a manutenção dessas casas, ajudando no processo de "reintegração" dessas mulheres ao social, através da utilização de seus serviços como criadas (21). Em Paris, sécs. XVII e XVIII, a prostituição foi particularmente perseguida pelo aparelho policial, as prostitutas eram presas ou exiladas. No Brasil as atitudes que os médicos e policiais tomaram em relação à prostituição foram plenamente justificadas pelas teorias científicas (22), vigentes no período, atestando a inferioridade física e mental da mulher e, especialmente, da prostituta, a quem se referiam freqüentemente através da metáfora de micróbio (RAGO, 1992).

A criminalidade feminina é entendida como específica, relacionada com um ambiente familiar comum, pode-se afirmar que está em volta de determinismo ideológicos, que via de regra refletem toda uma cultura social de que a mulher pertence a uma esfera doméstica, privada e não pública. O crime no feminino será tomado no seu sentido mais abrangente, tendo como referência as normas de comportamento do tempo. Incrimina-se a natureza feminina, a eterna pecadora Eva, embriagada pelo desejo do homem.

Muitos delitos ou crimes nunca afloraram (crimes cometidos por mulheres ou crimes cujas vítimas foram mulheres), isso em decorrência de dissimulações que desistimulavam as queixas ou ainda o hábito de resolver as questões por acordo, mesmo os crimes mais graves. As lettre de cachet (23) não especificavam o crime e a pena, sendo assim, entendiam outros motivos da prisão feminina, salvo os explícitos ao longo da história, como a feitiçaria e a prostituição, ou os crimes cometidos contra a mulher ficavam extremamente obscuros.


5. As mulheres enquanto metáfora do direito penal

5.1. Aspectos gerais

Existem várias instâncias da sociedade que servem para o processo de manutenção e organização das relações sociais, tais como a família, a igreja, a escola, os meios de comunicação de massa, instâncias não formais, não legais, mas dotadas de poder (24). Além dessas formas de controle, criadas por um grupo específico e determinante para manter o seu ideal de sociedade, a sexualidade sempre foi referência para muitas questões sociais. Na antigüidade era a partir da sexualidade feminina que se sustentavam as idéias de inferioridade da mulher, isso em decorrência de uma biologia própria. Para Foucault (1992) a sexualidade é marco que proporciona a sustentação do poder, ou seja, ela serve de meio de manutenção, de enraizamento do poder, fazendo com que as tentativas de desprender-se sejam dificultadas pelos vínculos de repressão, principalmente a idéia paternalista de proteção à sexualidade feminina, a natureza dócil e submissa da mulher e a relação com a reprodução.

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Essa forma de exposição e estudo em relação à mulher, pouco permitiu tratar do "ser mulher", da "maneira de ser mulher". O não olhar ao "eu" feminino é identificado nas políticas do sistema prisional, que reproduzem o modelo masculino, sem se deter a diferença existente e principalmente na extensão que o cárcere gera. O que não é identificado apenas em relação à criminalidade feminina, na mulher encarcerada, mas também no processo de estigmatização e dificuldades que as companheiras e esposas do preso enfrentam, tampouco o problema das filhas e mães dos presos, que também constituem a parte feminina dessa relação. Para o Professor Alessandro Baratta (1996) a diferença, a especificidade não se torna pressuposto para a criação da norma (e do discurso jurídico-penal), nem para os mecanismos utilizados para operacionalizá-la, mas faz com que a diferença acentue ou prejudique os referidos exercícios, que contribua para a violação da norma.

No Brasil a visita íntima às mulheres é vista como benefício e não como direito (25), existem apenas duas penitenciárias femininas que garantem este cumprimento, uma é no Rio Grande do Sul e outra em São Paulo. Também não são todas que cumprem a Lei de Execuções Criminais, quanto à previsão de existência de creches para os filhos com idade inferior a seis (6) anos que não tenham com quem ficar.

Muitos problemas são oriundos de uma construção política sustentada na separação do público e privado, da qual as necessidades do privado foram estruturadas a partir da perspectiva dos personagens público, do que estes entendiam ser necessário e importante para o privado, dessa forma a existência quase que exclusiva da previsão da sexualidade em detrimento de uma análise de toda a antropologia feminina.

Uma vez que as necessidades das mulheres não são contempladas na sua totalidade (e isso abrange as duas facetas do envolvimento das mulheres como sistema penal) resulta uma análise limitada e por conseqüência estigmatizada da criminalidade feminina e da mulher em situação de violência.

          5.2. As mulheres presas

A análise da criminalidade feminina sempre se limitou ao que se pode chamar de "delitos de gênero", como infanticídio (art.123 CP), aborto (art.124 CP), homicídios passionais (art. 121 CP), exposição ou abandono de recém nascido para ocultar desonra própria (art.134 CP), furto (art. 155 CP), além da idéia de que a conduta criminosa estivesse estritamente relacionada com os delitos dos companheiros e maridos, ou seja, há poucos estudos, referências e políticas criminais direcionadas às mulheres; fazendo com que a idéia da menor delinqüência feminina seja vista com inferioridade ou tontice, afinal, como argumenta Raúl Zaffaroni (1995:24) os meninos também delínqüem menos.

Percebe-se que ao longo da década o tipo de crimes realizado por mulheres tem progressivamente se equiparado aos tipos considerados como crimes "próprios de homens". No primeiro trimestre de 1997 (26) o principal delito cometidos pelas mulheres era tráfico, sendo responsável por 34,2% das causas de prisão, um aumento de 2% em comparação com 1995 (27). Seguidos por homicídios (22,36%) e roubos (17,10%). Em 1995 os homicídios representavam apenas 16,43% do total das condenações, enquanto que roubo e furto se igualavam em 19%.

Ao senso comum é reservada ou ressaltada a problemática interna do cárcere, da violência, da violência sexual, as humilhações, as condições materiais precárias e insalubres, muito mais resultado da administração, da operacionalidade, do que das brechas do discurso jurídico-penal, ou da própria história de formação da prisão. Há a realidade de questões que se tornam latentes ao reiterar o papel da mulher.

O sistema punitivo não possui uma coerência na forma de executar a pena. Em todo o momento percebe-se o peso político, os vícios e axiomas dos responsáveis, o que gera constantes mudanças em toda a estrutura administrativa, exigindo que as mulheres, bem como os homens, se adaptem as ideologias dos novos diretores.

Existe um protecionismo discriminatório quando se trata de questões que envolve a sexualidade feminina, sendo a mulher presa desestimulada em sua vida sexual devido a burocratização para o acesso à visita conjugal (28). Do total das presas apenas 13% recebem visita íntima, entre os motivos por não receberem a visita, 38% responderam que é porque são sozinhas, 22% porque é muito difícil de conseguir e 14% por terem vergonha.

Através de uma análise comparativa dos procedimentos das visitas íntimas nos presídios masculinos e femininos de Porto Alegre, se observou grande discrepância no que diz respeito à autorização de visita dos cônjuges dos presos não casados oficialmente. Na prisão masculina tal procedimento é informal, basta à companheira uma declaração por escrito de sua condição para que tenha acesso às visitas conjugais até oito vezes ao mês, duas vezes por semana. Já na casa de detenção feminina a visita é regulamentada por uma portaria da Instituição. Para a apenada ter direito à visita do companheiro, este deverá comparecer às visitas familiares semanais, sem possibilidade de relação sexual, por quatro meses seguidos e ininterruptos. Caso não falte nenhum dia, ainda dependerá da anuência do diretor da penitenciária para que a presa tenha direito a visita íntima por no máximo duas vezes ao mês.

A prisão, muitas vezes acentuando ou desencadeando a dependência e a solidão afetiva (LARRAURI, 1996), faz com que muitas mulheres mudem em relação a sua sexualidade, e essa mudança não decorre de opção ou de processos naturais; durante a permanência no cárcere tornam-se homossexuais circunstanciais. Há um rompimento do instinto sexual. Uma reportagem sobre a casa de Tatuapé em São Paulo, revela que 80% das mulheres com até um ano de prisão, se pudessem escolher, teriam relação sexual apenas com homens. O índice cai para 48% entre aquelas que estão há mais de quatro anos, a média fica em 58%. A situação em Tatuapé se agrava, porque não existe visita íntima; assim, não podem se relacionar com seus maridos ou namorados e acabam se envolvendo com quem está acessível (ISTO É, 19 de março de 1997).

O enclausuramento feminino gera várias externalidades que não são percebidas à primeira vista. Uma delas é a perda da referência materna pelas crianças, filhos de mães presas, por vezes já sem o referencial paterno em casa, ficam sem o referencial da mãe, e fazem da rua o seu espaço de convivência e de socialização (SILVA, 1997). A maioria das mulheres presas são "chefes de família", além disso 89% das condenadas do Madre Pelletier são mães. Apesar da Penitenciária de Porto Alegre ser uma das únicas do Brasil a cumprir o dispositivo da Constituição Federal quanto a existência de creches nas casas prisionais, apenas 17% das mães estão com os filhos. As crianças são sentenciadas a perderem os vínculos famílias. Aquelas que tem idade acima de 6 anos e nenhum parente que possa se responsabilizar por elas são encaminhadas à FEBEM. Do total de mulheres entrevistadas 56% afirmam que a principal mudança ocorrida depois da prisão foram os problemas de relacionamento com os filhos, principalmente a distância e a dificuldade de visita, 6,35% salientaram que a situação financeira piorou muito. A representatividade de apenas 4,4% da população total carcerária resulta num menor número de prisões e provoca, além de um pior acomodamento, o distanciamento da sua região o que prejudica determinantemente as visitas e por conseqüência seu principal elo com a sociedade - a família.

Uma das conseqüências de ter a Escola Positiva como mentora do Código Penal brasileiro do início do século é que, com ele, foram traduzidas todas as concepções da época, dando ao crime o lugar marginal do social. Da maneira como os estudos foram montados é infindável a criação de tipos sociais delinqüentes estigmatizados (final do século XIX e princípio do século XX), acentuando o processo de marginalização tanto do criminoso como dos familiares (CANCELLI, 1994).

A dificuldade de reinserção, comum a homens e mulheres, é agravada pelas poucas alternativas de trabalho, ou quando existem, são ofertas costumeiramente "femininas", como bordado, costura, ou trabalhos de limpeza e cozinha, que não auxiliam na qualificação para uma posterior reintegração à sociedade.

Essas questões retratam a atual realidade vivenciada no cárcere feminino, problemas oriundos de uma história calcada, não na má-fé dos executores, mas na não previsão da necessidades do todo feminino.

          5.3.A violência doméstica

No Brasil, a situação de vulnerabilidade das mulheres à agressão física e moral perpetrada por seus familiares, em especial maridos ou companheiros, é muito grave. Tradicionalmente tem-se a tendência de naturalizar a violência doméstica, o que supostamente legitima tratá-la como um problema exclusivamente de foro privado, gerando uma tácita aprovação ao fato e ao comportamento de banalização da sociedade em geral.

A partir do final dos anos 70 começaram a surgir denúncias crescentes acerca da violência doméstica, com relatos de espancamentos, ameaças e mesmo homicídios de mulheres. Muitos destes casos eram tratados pelo Judiciário como "legítima defesa da honra", nos quais homens ofendidos tinham uma autorização tácita da sociedade para matar suas mulheres, com absolvições judiciais ou processos intermináveis. Além disso há a cifra negra da violência doméstica. A que aciona o Judiciário camuflada em pedidos de pensão de alimentos, guarda, investigação de paternidade, decorrentes de separações motivadas por ambientes violentos; em separações ou divórcios incentivados pela violência do casal. E aquela que nem chega a acionar os aparelhos do Estado, que vive e sobrevive no "silêncio" da vida privada, na violência moral, psicológica, na violência física que não consegue ser provada.

Em 1982 foi criado o SOS - Mulher, de São Paulo, uma iniciativa não governamental de ajuda solidária a mulheres em situação de violência. O número de denúncias foi tão expressivo, e as dificuldades encontradas para encaminhamento junto aos órgãos de segurança pública foram tantas, que tornou-se necessária a formulação urgente de políticas na área. Assim, surgiu a "delegacia da mulher", como uma forma de atendimento específico da violência contra as mulheres dentro do aparato policial, ligada à Secretaria de Segurança Pública. A primeira delegacia da mulher só surgiu em 1985 na cidade de São Paulo. Tais instituições não tem o caráter discriminatório, mas sim, a função de suprir a lacuna da diferença, ou seja, uma vez a não previsão do sistema para questões dessa natureza surge a necessidade de criar formas alternativas, possibilitando, assim, uma melhor noção da realidade e, por conseqüência a possibilidade de criar medidas concretas e eficazes para o atendimento ao conflito de urgência, bem como facilitar o trabalho de prevenção.

A Constituição Federal de 1988, no parágrafo 8º do artigo 226, passa a admitir a violência doméstica, além de agregar ao Estado a responsabilidade de coibi-la: O Estado assegurará assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, cirando mecanismos para coibir a violência no âmbito privado de suas relações.

A tutela de bens jurídicos existe para a garantia da coexistência social, significa que a segurança jurídica se salvaguarda através da custódia de bens jurídicos. O que ocorre é que as relações privadas não implicam em risco para a segurança jurídica ou para a coexistência social, não havendo, assim, a necessidade de punir o/a agressor/a doméstica/o (MARTINEZ, 1990: 44).

Como alternativa para minimizar a crise vivida pelo Justiça, como o problema da morosidade e da saturação do Judiciário, obteve-se a aprovação da Lei 9099/95 que instituiu os Juizados Especiais Criminais, já previstos na Constituição Federal no seu art. 98, I. Os Juizados Especiais Criminais foram criados visando proporcionar uma simplificação da Justiça Penal, possibilitando soluções mais rápidas minimizando o ônus na demora processual. Isso corresponde a uma desformalização do processo criminal, através de mecanismos rápidos, simples e econômicos para aquelas infrações de menor potencial ofensivo, ou seja, o mínimo de morosidade para decidir fatos típicos de ínfima expressão do ponto de vista da reprovabilidade social. Proporcionando, dessa forma, ao sistema judicial desprender mais atenção à investigação e o julgamento de graves atentados aos valores tutelados pelo direto. Ocorre que atualmente, face a natureza da violência contra a mulher, quase que a totalidade da demanda de violência que chega aos aparelhos do Estado são encaminhadas aos Juizados Especiais Criminais, eis que são tratadas como violações de menor potencial ofensivo (por exemplo: os delitos de ameaça, lesões leves dolosas e culposas, maus tratos, constrangimento ilegal, abandono moral e intelectual). No entanto, cabe a pergunta: O que são infrações de menor potencial ofensivo, ou fatos de ínfima expressão do ponto de vista da reprovabilidade social? A norma, bem como a doutrina, não conceituam infrações de menor potencial ofensivo, apenas determina, segundo o artigo 61 da lei 9099/95, que são: as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima de um ano. A relação entre a violência doméstica e os juizados especiais criminais surge porque a maioria dos delitos cometidos contra a mulher tipificam-se naqueles de pena máxima de um ano, ou seja, são de competência dos Juizados Especiais Criminais.

A regra é entender o direito penal como um meio de repressão (antevisão da sanção), de proteção a bens jurídicos e, assim, determinador de condutas (dever ser). Nos casos de violência entre os casais o sistema penal é acionado, prioritariamente, como instrumento de obtenção de segurança, meio utilizado para erradicar a violência familiar e gerar proteção, todavia, como afirma Milton Cairoli Martinez (1990:44): O sistema se ocupa em encarcerar o sujeito ativo, aquele que viola o bem jurídico, mas não se ocupa em nada com o sujeito passivo, titular do bem jurídico transgredido. O que reitera o papel limitado do direito penal para atender conflitos que não compõem o seu sistema, já que a "ocupação em encarcerar o sujeito ativo" depende da valoração dada pelo sistema para a gravidade de determinado tipo penal, ou seja, não basta haver o tipo. Não é porque existe nas cadeias a maior concentração de pessoas condenadas tráfico e roubo que crimes como o artigo 149 do Código Penal: Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, ou contra o meio ambiente, ou, ainda, o crime de adultério, não sejam cometidos. Ocorre que o sistema, de uma forma geral, não está sensibilizado e/ou capacitado para perseguir crimes como esses ou, no caso, violência contra a mulher.

Sobre a autora
Samantha Buglione

assessora da Themis – Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, mestranda em Direito

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BUGLIONE, Samantha. A mulher enquanto metáfora do Direito Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 38, 1 jan. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/946. Acesso em: 22 nov. 2024.

Mais informações

Texto elaborado através de pesquisa de iniciação científica - CNPq/Pibic, a ser publicado na Revista Discursos, no primeiro semestre de 2000

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