Muito se tem escrito e comentado a respeito do Sistema Financeiro da Habitação nos últimos tempos, principalmente a partir das recentes medidas implementadas pelo Governo Federal, as quais buscam estimular o desenvolvimento do setor imobiliário nacional através do barateamento do custo do bem imóvel para o consumidor final e a ampliação da oferta de crédito no mercado. Da análise do noticiário veiculado, percebe-se claramente o quase eterno descontentamento dos mutuários da habitação em relação ao contrato de financiamento entabulado entre eles e a instituição financeira respectiva. Não raras vezes, lêem-se reportagens e entrevistas com severas críticas aos bancos e à sua suposta avidez incessante por lucros e capital, sua dita insensibilidade para com as dificuldades econômicas pelas quais passam aqueles que com eles contratam e a indiscriminada utilização de normas legais a princípio abusivas. Entretanto, tem-se por necessário proceder à análise da questão também sobre o ponto de vista das instituições financeiras, contemplando, assim, o aclamado princípio do contraditório, além de possibilitar o esclarecimento de alguns pontos relevantes do tema à sociedade.
O sonho da casa própria sempre foi pauta de acaloradas discussões e debates sociais de extrema importância, os quais redundaram em inúmeras e nem sempre bem sucedidas leis para regular a matéria. A primeira delas foi a Lei 4.380/64, que já em seu art. 1º estabelecia ao Governo Federal a incumbência de "estimular a construção de habitações de interesse social e o financiamento da aquisição da casa própria, especialmente pelas classes da população de menor renda". Nada obstante, apenas com a Emenda Constitucional 26 de 2.000 é que se acrescentou a moradia como um dos direitos sociais básicos previstos no rol do art. 6º da nossa Carta Política. Nesse entremeio, e até a presente data, pôde-se verificar uma verdadeira fúria legiferante; um emaranhado de decretos, leis e circulares criados na tentativa de regulamentar o sistema financeiro da habitação no Brasil e fazer valer o ideal de conferir a todos a oportunidade da casa própria. Contudo, como se pode notar dos mencionados noticiários, não logrou o Estado brasileiro satisfazer os anseios da população que, no embalo de uma crítica rasa e fácil, despeja seu inconformismo contra os bancos financiadores desse sonho, por vezes distante.
Em sua grande maioria, os pedidos formulados pelos mutuários nas ações judiciais de revisão de contratos de financiamento firmados nos moldes do SFH referem-se aos índices aplicados pelos bancos na correção do saldo devedor e das prestações, aos juros pactuados, à ordem de amortização e à constitucionalidade da execução extrajudicial exercida contra clientes inadimplentes. Com efeito, alegam que a atualização do saldo devedor dos contratos se dá, inadvertidamente, por meio de índices distintos dos apurados para inflação (Taxa Referencial – TR x INPC), que os juros aplicados são abusivos e que as prestações aumentam constantemente, impossibilitando a continuidade do pagamento dentro dos prazos acertados. Por óbvio, a conseqüência é a inadimplência e a execução do contrato com a possível retomada do imóvel que, como cediço, constitui a garantia concedida ao agente financiador. Assim, premidos, os mutuários encaminham ao Poder Judiciário enxurradas de medidas que, inobstante guardem extrema relevância, são, em boa parte, desprovidas de amparo legal.
Como notório, a atividade bancária apresenta-se como uma das submetidas à mais atenta vigilância do Estado, restando extremamente regulamentada e minuciosamente fiscalizada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) e pelo Banco Central do Brasil (BACEN), nos termos do que dispõe a Lei 4.595/64. Como sabido, por serem órgãos da Administração Pública, referidas instituições só podem fazer aquilo que a lei determina, de modo que as circulares e portarias delas emanadas e destinadas aos bancos em atividade no Brasil têm fortíssimo embasamento legal e caráter obrigatório, sendo vedado aos destinatários dessas normas optar pelo seu descumprimento, sob pena de arcarem com seriíssimas sanções administrativas. Com isso, o que se quer demonstrar é que a grande maioria das cláusulas contratuais impugnadas judicialmente pelos mutuários encontra previsão no ordenamento pátrio, não estando as instituições financeiras cometendo qualquer ilícito. De fato, a utilização da TR como índice de reajuste do saldo devedor e prestações nos contratos que prevêem correção pelo mesmo indexador da caderneta de poupança encontra respaldo na Lei 8.177/91 (arts. 11 e 18, §2º) e na súmula 295 do STJ; a ordem de amortização consistente em primeiramente atualizar o saldo para posteriormente amortizá-lo já está sedimentada na jurisprudência da referida Casa, (REsp n. 467.440/SC da relatoria da Ministra Nancy Andrighi). Os juros pactuados, por sua vez, são um dos menores das carteiras de produtos oferecidas pelos bancos e raramente superam o percentual de 12% a/a. Por fim, a compatibilidade do Decreto-Lei 70/66 (norma por intermédio da qual se procede à execução extrajudicial do contrato com a retomada mais célere do imóvel dado em garantia) com a Constituição da República já foi inúmeras vez declarada pelo c. STF (AI-AgR 514565/PR, AI-AgR 509379/PR, da relatoria dos Ministros Ellen Gracie, Carlos Velloso, respectivamente).
Os artigos de lei e as decisões acima mencionadas corroboram a idéia aqui defendida, no sentido de que as medidas perpetradas pelos bancos nos financiamentos habitacionais regidos pelo SFH têm amplo respaldo legal e jurisprudencial. Alguns magistrados, convencidos dessa situação, chegam a afirmar em suas decisões que as questões aqui tratadas são de cunho político, não jurídico. Anote-se:
"Conclui-se, portanto, que o problema do Sistema Financeiro da Habitação é político-econômico, e não jurídico. Não há ilegalidades no contrato de financiamento. A forma como o empréstimo foi estruturado – com longo prazo para pagamento e parcelas atreladas à remuneração do mutuário – é que é falha, e, portanto, deve ser revista, mas pelo Governo Federal e não pelo Poder Judiciário". (sentença proferida nos autos nº 0024.03.142473-2)
Na mesma linha de pensamento, o e. Tribunal Regional Federal da 1ª Região vem seguidamente negando provimento a recursos de mutuários que ajuízam ações sem observar as exigências da nova Lei 10.931/04, especificamente seu art. 50, que determina o pagamento do valor incontroverso da prestação do financiamento diretamente aos bancos e o depósito do valor controvertido para ver afastada a incidência dos nefastos efeitos da mora em eventual discussão judicial do contrato. Veja-se:
"Para suspender os efeitos da inadimplência nas ações em que se discutem cláusulas de financiamento habitacional, deve a parte autora efetuar o depósito, em juízo, do valor controvertido das prestações, e os valores incontroversos deverão ser repassados diretamente à credora, tudo nas mesmas condições e valores previstos no contrato. Essas diretrizes jurídicas decorrem das normas inscritas no artigo 50 da Lei 10.931/2004, o qual, não obstante encerrar preceito excessivamente rigoroso, há de prevalecer, porquanto emanado do legislador ordinário competente e, ao que se sabe, não foi argüida e declarada sua inconstitucionalidade. (...) Constitucionalidade da execução extrajudicial prevista no Decreto-Lei 70/66 declarada pelo Supremo Tribunal Federal (RE 223.075/DF)". (AGA 2006.01.00.001216-9/MG, Des. Fed. Fagundes de Deus – DJ 07.12.06)"
Não se quer, aqui, fazer qualquer juízo de valor das decisões proferidas, mas chamar atenção para o fato de que os bancos, de fato, apenas fazem valer aquilo que está previsto na legislação vigente, exercitando regularmente um direito que lhe é atribuído. Se as políticas públicas habitacionais são equivocadas e as leis criadas para atender a demanda da população apresentam-se, após anos de demanda judicial, como catalisadores dos problemas que ensejaram sua criação, não há de se atribuir responsabilidade aos bancos, data venia.
De toda forma, há, ainda, aqueles que divulgam críticas à postura adotada por juízes e/ou tribunais que supostamente exercem seu mister com apego extremado à letra da lei, olvidando, por vezes, o relevantíssimo aspecto social envolvido na questão ora discutida. Entretanto, temos que a mitigação da força da lei pelo constante apelo à interpretação extensiva pode levar a uma grave e indesejável insegurança jurídica. Se cada magistrado brasileiro pretender atribuir à norma positiva clara e imperativa uma exegese particular e de extremada conotação política, social e/ou econômica, dar-se-á ensejo à solidificação da cultura do "juízo político" que não necessariamente observa a lei vigente, mas os interesses maiores ou menores em jogo na causa discutida. Dessa maneira, os reclames da sociedade deixam de ser atendidos, a população se perde na falta de segurança acerca do posicionamento adotado pelos operadores do direito e a lei acaba não "colando", esvaziando o brocardo "dura lex, sed lex".
Indubitável que a situação daqueles que pleiteiam sua casa própria não é nada fácil nos dias de hoje. Todavia, o que se quer demonstrar é que a crítica que ecoa fácil sobre os bancos nem sempre tem fundamento legal e encobre problemas de proporções similares, consubstanciados na incapacidade legislativa, na incompetência do Estado para adoção de políticas públicas habitacionais eficientes, na cisma de se negar vigência à lei e fazer do Judiciário instituição incumbida de legislar. E nesse turbilhão, desamparado, o mutuário... Por isso, além da necessidade de fazer com que os órgãos de representação civil engrossem o coro por reformas que atendam os anseios sociais, imperioso seja feito o esforço inicial para retirar da inércia a cultura nacional de somente procurar um advogado quando os problemas já se apresentam graves ao extremo e o desespero te acompanha de mãos dadas. Os brasileiros precisam desenvolver a idéia da advocacia preventiva! A contratação de um profissional gabaritado para análise das situações várias que permeiam a aquisição de um imóvel, como no caso o contrato de financiamento, certamente não impede a ocorrência de dissabores futuros. Entretanto, dá ao cidadão a possibilidade de pugnar a revisão de cláusulas antes mesmo de firmado o contrato, previne-o das conseqüências da obrigação que está prestes a assumir, permite-lhe melhor planejar seus atos e eventualmente desistir de um sonho que no momento se lhe apresenta inatingível.