INTRODUÇÃO
O presente artigo tem a finalidade de desmitificar o ideário comum de que todo crime que envolva indígenas ou praticados em suas terras são de atribuição da Polícia Federal. Com isso o trabalho auxiliará autoridades na tomada de decisões, bem como informar ao público em geral sobre a atribuição das polícias em crimes que envolvam indígenas (definidos no art. 3º da Lei 6.001/1973) ou ocorridos em suas terras.
Este trabalho não visa tratar sobre procedimentos policiais em ocorrências envolvendo indígenas, mas apenas sobre a atribuição de qual órgão policial deverá agir nas ocorrências em análise neste texto de acordo com a legislação pátria. A despeito de saber da importância de se escrever sobre procedimentos policiais envolvendo indígenas, devido à ausência de textos neste sentido, é um tema que será estudado em um próximo artigo.
O conhecimento de qual órgão policial tem a atribuição para investigar ou tomar providências em situações delituosas que envolvam índios ou em suas terras é de grande importância, pois uma atuação rápida pode preservar vidas, bem como preservar elementos informativos importantes para comprovar a autoria e/ou a materialidade de um crime. Os policiais devem ter plena ciência de suas atribuições para que não haja excesso ou ausência do Estado na prestação do serviço público.
É possível citar o exemplo de grupos indígenas que bloqueiam uma rodovia federal com a finalidade de protestar por qualquer motivo. Neste caso a atribuição para realizar o policiamento no local seria da Polícia Rodoviária Federal (PRF) ou da Polícia Federal?
Imagine uma situação em que a Polícia Militar (PM) seja acionada para resolver uma briga entre dois índios por questões passionais e os policiais tenham dúvidas se é possível sua atuação, uma vez que envolvem indígenas e a atribuição seria, em tese, da Polícia Federal.
Da mesma forma, ainda utilizando o exemplo acima, imagine que da briga envolvendo os dois índios por questões passionais, um deles vem a matar o outro. A Polícia Civil (PC) é acionada para tomar as primeiras providências estabelecidas no art. 6º do Código de Processo Penal (CPP). Contudo, os policiais civis, por considerarem que o delito tenha o envolvimento de índios, deixam de realizar seus trabalhos acreditando que seria atribuição da Polícia Federal tomar tais providências.
Em investigação criminal, segundo o princípio da oportunidade, é sabido que o fator tempo é de fundamental importância para a elucidação de um delito. Quanto maior o lapso temporal, mais difícil para se descobrir quem são os autores ou buscar materialidade delitiva.
Além do mais, vários órgãos solicitam o apoio à Polícia Federal quando o assunto a ser abordado envolve indígenas, seja de forma individual ou coletiva, seja o índio como autor ou vítima de crimes, ou também em casos de delitos cometidos em terras indígenas.
Pelas razões acima, este artigo visará desmitificar a ideia que todas as ocorrências envolvendo indígenas seriam de atribuição da Polícia Federal, sejam os índios como autores ou vítimas e até em suas terras.
No primeiro capítulo será tratado sobre a origem do ideário de que toda ocorrência envolvendo indígenas ou seus territórios seriam de atribuição da Polícia Federal. Neste tópico também será definida a natureza jurídica das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.
Já no segundo capítulo e seus dois subtópicos, será tratado sobre a atribuição da Polícia Federal conforme a Constituição Federal com o foco específico na atuação da PF em relação aos indígenas e suas terras.
No terceiro e último capítulo de desenvolvimento será tratada a definição de atribuições dos órgãos de segurança pública nos casos envolvendo indígenas com base nas atribuições constitucionais da PRF, Polícia Ferroviária Federal (PFF), Polícia Civil e Polícia Militar.
Por fim, a conclusão do trabalho trará um resumo do que foi debatido neste artigo de forma que será distinguido a atuação de polícias administrativas (PRF, PFF e PM) das polícias investigativas (PF e PC).
1 ORIGEM DO IDEÁRIO DE QUE TODA OCORRÊNCIA ENVOLVENDO INDÍGENAS OU SUAS TERRAS SERIA ATRIBUIÇÃO DA PF
Como dito acima, há uma crença na sociedade brasileira, inclusive nas forças policiais que apenas a Polícia Federal poderia atuar em ações criminosas envolvendo indígenas ou em suas terras. Neste contexto é interessante citar o escólio de Vitorelli (2016, p. 39), o qual ensina que:
[T]al argumento se enraizou no período da ditadura militar, em que os ativistas costumavam se abrigar em prédios da Universidades Federais, sustentando a afirmação de que as forças estaduais não podem adentrar em edifícios federais. Na época, é claro, era conveniente esposar essa posição, já que as Universidades sempre foram espaço de oposição à ditadura, envidando esforços para proteger seus integrantes e correligionários.
De acordo com essa corrente, o prédio ou local que serve ou abriga um interesse da União se equipararia ao Território Federal previsto no art. 18, § 2º da CRFB/1988, a saber:
Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.
(...)
§ 2º Os Territórios Federais integram a União, e sua criação, transformação em Estado ou reintegração ao Estado de origem serão reguladas em lei complementar.
Neste sentido, ensina Foureaux (2013) que:
[O]s territórios federais são descentralizações administrativo-territoriais da União, constituindo uma autarquia, nos termo do art. 18, § 2º da CF.
No Brasil não existem mais territórios federais. Até 1988, com o advento da Constituição, existiam três, quais sejam: Roraima, Amapá e Fernando de Noronha.
Os territórios de Roraima e Amapá foram transformados em Estados Federados pela CRFB/1988 (art. 14 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias - ADCT) e o território de Fernando de Noronha se reincorporou ao estado de Pernambuco (art. 15 da ADCT).
Além da natureza jurídica dos territórios ser de descentralização administrativo-territorial, como dito por Foureaux (2013), é possível perceber que a criação dos territórios federais necessita de regulação por lei complementar (art. 18, § 2º), recebem recursos da União que deverão ser submetidos ao Congresso Nacional (art. 33, § 2º da CRFB/1988), bem como deverá ter uma Câmara Territorial própria (art. 33, § 3º da CRFB/1988), o que não ocorre com as terras indígenas.
Desta maneira, pode-se concluir que as terras tradicionalmente ocupadas por indígenas não são Territórios Federais nem há qualquer forma de equiparação. A natureza jurídica de tais terras é de bem da União, as quais são entregues a posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, nos termos do art. 20, XI e art. 231, § 2º da CRFB/1988.
2 DAS ATRIBUIÇÕES DA POLÍCIA FEDERAL
Diferentemente de outros países como os Estados Unidos da América, o Brasil optou por trazer a nível constitucional a organização dos órgãos de segurança pública. Neste sentido, no capítulo III do título V da CRFB/1988 inicia o tema.
O art. 144 da CRFB/1988 dispõe sobre os órgãos responsáveis pela segurança pública, bem como suas atribuições. Em relação à Polícia Federal, a Carta Magna trouxe um rol taxativo, enquanto as atribuições das polícias civis e militares seriam residuais, ou seja, o que não se aplica aos outros órgãos citados seria da PC ou da PM.
Neste caso, para que haja atuação (seja preventiva ou repressiva) da PF, é necessário que seja algum assunto envolvendo o disposto no § 1º, do art. 144 da Carta Magna, a saber:
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
I - polícia federal;
(...)
§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a:
I - apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei;
II - prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência;
III - exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras;
IV - exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União. (g.n.)
No rol citado é possível encontrar funções de natureza administrativa (inciso III) e função de cunho investigativo (inciso I, II e IV). No caso específico envolvendo indígenas é possível que haja atribuição da PF para atuar com base em dois incisos do § 1º do art. 144 da CFRB/1988 que são os incisos I e IV (funções investigativas), o que será estudado em dois subtópicos distintos a partir de agora.
2.1 Das atribuições da PF contidas no inciso I do § 1º do art. 144 da CRFB/1988
É importante citar que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios possuem natureza jurídica de bens da União conforme pode ser visto no art. 20, XI da CRFB/1988. Em relação à natureza jurídica desses bens, pode ser classificada como bens públicos de uso especial uma vez que estão afetados especificamente ao uso das comunidades indígenas.
Com base no parágrafo anterior, pode se pensar que todo crime cometido em terras indígenas é da atribuição da PF, uma vez que o delito ocorreu em um bem da União. Contudo, caso ocorra, por exemplo, um crime de homicídio entre índios por questões passionais em terras indígenas, isso não é razão, por si só, para a atração da atribuição da Polícia Federal. Esse entendimento pode ser feito a partir do que vem a ser bens, serviços e interesse da União citados no inciso I do § 1º do art. 144.
O art. 109, IV da CRFB/1988 também traz os vocábulos bens, serviços e interesses da União para firmar a competência da Justiça Federal para julgar crimes. Lima (2020, p. 505) quando ensina sobre a competência no processo penal, afirma que tais ofensas devem ser diretas a pelo menos um dos três valores citados (bens, serviços e interesses). As ofensas indiretas devem ser julgadas pela justiça estadual e consequentemente investigadas pela polícia judiciária estadual (polícias civis) que possuem atribuições residuais.
No caso acima, o crime cometido tem como vítima uma pessoa dentro de terras da União. Isso não ofende diretamente o bem, serviço ou interesse da União. Pela mesma razão, crimes contra patrimônio de particular cometidos em campi de universidades federais (que são autarquias federais) não atraem a atribuição para a PF, nem a competência para Justiça Federal, pois não são bens diretamente da União atingidos e sim de particulares.
A atribuição da Polícia Federal seria atraída, por exemplo, na hipótese em que um fazendeiro desmatasse parte da terra tradicionalmente ocupada pelos índios para ter pasto com a finalidade de criar gado ou então invadisse essas terras para qualquer finalidade. Nesta hipótese é possível verificar uma ofensa direta a um bem da União, que no caso são as terras tradicionalmente ocupada pelos indígenas.
2.2 Das atribuições da PF contidas no inciso IV do § 1º do art. 144 da CRFB/1988
No caso do inciso IV do § 1º do art. 144 da CRFB/1988, a previsão é que Polícia Federal exerce, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União. Por essa razão, é necessário saber da competência da Justiça Federal para se chegar às atribuições da Polícia Federal com base no dispositivo analisado.
A Carta Magna enumerou de maneira taxativa em seu art. 109 quais são as atribuições da Justiça Federal, de forma que esta é uma justiça especializada e qualquer outro assunto, que também não se enquadre na Justiça Eleitoral, do Trabalho e Militar deverá ser julgada pela justiça estadual de cada estado ou do Distrito Federal (DF) por terem competência residual. Assim, cita-se o art. 109 da CRFB/1988, inciso XI que versa diretamente ao tema proposto neste trabalho, a saber:
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
(...)
XI - a disputa sobre direitos indígenas.
(...) (g.n.)
Neste ponto se indaga o que vem a ser disputa sobre direitos indígenas e sua interpretação é de fundamental importância para se definir se a atribuição investigativa de um delito envolvendo indígenas é da Polícia Federal ou da Polícia Civil. Vitorelli (2016, p. 356) afirma que foram formadas duas posições distintas com prevalência atual da segunda corrente, a saber:
1 toda ação versando sobre situações atinentes a índios deve ser julgada pela Justiça Federal, haja vista que todo processo contém, em regra, uma lide, um conflito e, portanto, uma disputa de direitos indígenas;
2 somente as questões que envolvam interesse da União, fruto da combinação do art. 109, incisos IV e XI com o art. 231 da CF/88, ou que tenham como motivação a disputa de direitos atinentes à coletividade indígena, deslocam a competência da Justiça Estadual para a Justiça Federal
Avena (2020, p. 1330) se filia a segunda corrente e afirma que:
[...] não é o fato de ser índio o sujeito ativo ou o sujeito passivo da conduta delituosa que atrai a competência federal, sendo necessário que fique caracterizado estar o delito relacionado à disputa sobre direitos indígenas. Enfim, exige-se que o crime atinja interesses gerais da população indígena, assumindo caráter transindividual, incluindo-se não apenas as questões alusivas às terras, mas também aquelas ligadas à organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. (g.n.).
No mesmo sentido Lima (2020, p. 554) ensina que:
[...] não se pode querer atribuir a competência à Justiça Federal pelo simples fato de recair sobre a FUNAI a tutela sobre os índios, nem tampouco pelo fato de o art. 37 da LC 75/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público da União) atribuir ao MPF a defesa de direitos e interesses dos índios e das populações indígenas, nem tampouco pelo fato de caber à FUNAI a tutela sobre os índios.
Há decisões do Supremo Tribunal Federal neste sentido, inclusive no caso envolvendo o índio Galdino em que a corte decidiu pela competência da Justiça Estadual para julgar homicídio cometido por 5 (cinco) pessoas contra um índio em Brasília/DF em 19 de abril de 1997 (STF, 2ª Turma, HC 75.404/DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 27/04/2001).
O Superior Tribunal de Justiça já teve a oportunidade de decidir sobre o que seria a disputa de direitos indígenas e se filiou à segunda corrente citada, a saber:
PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. SUPOSTO CRIME DE HOMICÍDIO PRATICADO POR ÍNDIO CONTRA ÍNDIO. INEXISTÊNCIA DE DISPUTA SOBRE DIREITOS INDÍGENAS. APLICABILIDADE SÚMULA 140/STJ. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.
I - Nos termos do artigo 109, XI, da Constituição Federal, será da competência da Justiça Federal processar e julgar "disputa sobre direitos indígenas".
II - Via de regra, crime praticado por índio ou contra ele, será processado e julgado pela Justiça Estadual, salvo comprovação efetiva de que a motivação se refere a disputa de direitos indígenas.
III - In casu, o suposto homicídio praticado por índio contra outro não teve conotação de disputa de seus direitos indígenas, não sendo relevante, para fins de competência, a crença pessoal do autor que alega ter praticado o crime em virtude de "feitiço", porquanto tal fato não atinge direitos coletivos, ou seja, o crime não foi praticado para atingir a cultura indígena.
IV - A jurisprudência deste col. Superior Tribunal de Justiça se firmou nesse sentido, somente havendo interesse da União quando existir relevante interesse da coletividade indígena. Precedentes. Agravo regimental desprovido.
(AgRg no CC 149.964/MS, Relator Ministro FELIX FISCHER, Terceira Seção, julgado em 22/03/2017, DJe 29/03/2017).(g.n.)
Neste ponto, é interessante ressaltar que a decisão do STJ utiliza o termo via de regra. Desta maneira, como a competência para julgamento dos delitos envolvendo indígenas ou praticados em suas terras, em regra, é da Justiça Estadual, por consequência lógica, a atribuição para investigar, em regra, é da Polícia Civil uma vez que a ela é atribuída a função de exercer a polícia judiciária, com exceção das atribuições da Polícia Federal e dos crimes militares (art. 144, § 4º da CRFB/1988).
Neste mesmo sentido é o enunciado da súmula 140 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) o qual afirma que [C]ompete à Justiça Comum Estadual processar e julgar crime em que o indígena figure como autor ou vítima.
Atualmente, é comum a conduta de comerciantes que se apropriam de cartões de benefícios de programas sociais de indígenas como condição para compra no estabelecimento comercial.
Sobre este tema o Tribunal Regional Federal da 1ª Região já teve a oportunidade de se manifestar em abril de 2020 em um conflito negativo de competência e decidiu pela competência da Justiça Estadual para julgar crimes que não demonstram violações aos direitos indígenas de cunho coletivo, in casu:
PENAL E PROCESSUAL PENAL. CRIMES DE APROPRIAÇÃO E ESTELIONATO CONTRA ÍNDIGENAS. INEXISTÊNCIA DE DISPUTA SOBRE DIREITOS INDÍGENAS. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL. SÚMULA 140/STJ. RECURSO IMPROVIDO. REMESSA DOS AUTOS À JUSTIÇA ESTADUAL.
1. Hipótese em que a denúncia, por apropriação indébita e estelionato (arts. 168, § 1º, II, e 171 CP) contra quatro indígenas, devidamente identificados, veio a ser rejeitada por incompetência da Justiça Federal, porque não configurada hipótese de disputa sobre direitos indígenas. (art. 109, XI CF).
2. Não há, de fato, nos autos, demonstração de violação aos direitos indígenas, previstos na Constituição ou no Estatuto do Índio, de cunho coletivo, que expresse e justifique o interesse da União, capaz de ensejar a competência da Justiça Federal. Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar crime em que o indígena figure como autor ou vítima (Súmula 140 - STJ).
3. Na falta de identificação de direitos indígenas, como vis atractiva do interesse da União e (por consequência) da competência da Justiça Federal, não merece alteração a decisão recorrida, salvo no ponto em que, em vez de determinar a remessa dos autos à Justiça Estadual, optou pela rejeição da denúncia.
4. De fato, para receber ou rejeitar a denúncia, é indispensável que haja a competência como requisito de validade do processo (art.395, II CPP). Somente o juiz que tenha competência pode praticar o ato processual. Na sua falta, não pode praticá-lo, devendo remeter os autos ao juízo competente.
5. Recurso em sentido estrito desprovido. Remessa dos autos (de ofício) à Justiça Estadual.
(RSE 0000658-2.2018.4.01.3201/AM, Relator Des Federal OLINDO MENEZES, 4ª Turma do TRF1, julgado em 28/04/2020) (g.n.)
Frisa-se que o caso analisado acima poucos indígenas eram vítimas, apenas quatro. Situação diferente se toda ou grande parte da comunidade indígena fosse afetada pela ação dos autores dos crimes de apropriação e estelionato. Nesta situação, deve ser analisado o caso concreto para se definir a atribuição para investigação e competência para julgamento.
É importante citar que não há óbice se durante a investigação realizada pela Polícia Civil existirem indícios que demonstram um dano coletivo à comunidade indígena, a investigação seja encaminhada à Polícia Federal. Mas ressalta-se que, à princípio, os crimes cometidos por índios ou contra índios ou também em terras indígenas são de atribuição da Polícia Civil e competência para julgamento da Justiça Estadual e não ao contrário.
Acerca da competência da Justiça Federal para julgar crimes que envolvam disputa sobre direitos indígenas, cita-se Villares apud Vitorelli (2016, p. 360), a saber:
A definição da competência reside assim na definição do entendimento sobre o que sejam disputa sobre direitos indígenas. (...). Parece pacífico que direitos indígenas sejam aqueles que envolvem o direito de toda a coletividade, do povo indígena, da etnia ou da comunidade. Por essa razão, todo crime de genocídio contra os índios é da competência da Justiça Federal. Invariavelmente estará presente em sua motivação e nas circunstâncias o propósito de atentar contra uma etnia. Mesmo os crimes com motivação individual podem ser julgados pela Justiça Federal, bastando que, para tal, tenham uma motivação ou circunstância que o incluam num significado de disputas por direitos indígenas. Dessa forma, um crime de homicídio cuja vítima é um líder indígena que luta pelo reconhecimento ou preservação dos recursos naturais da terra de seu povo deve ser julgado pela Justiça Federal.
Conforme percebido no texto acima, a expressão disputa sobre direitos indígenas não é uma expressão objetiva. Para extrair o seu real significado, é necessário fazer um esforço cognitivo sendo possível que haja divergências em sua interpretação. Contudo, o Villares pontua situações claras em que a competência para julgamento e atribuição para investigação deve ser da esfera federal. Uma no caso de genocídio e outro na situação de um homicídio cuja vítima é um líder indígena e que a motivação para o delito seja a disputa dos direitos indígenas, esta situação já foi julgada pela terceira seção do STJ, a qual também entendeu que a competência para julgamento seria da Justiça Federal, a saber:
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. PEDIDO DE BUSCA E APREENSÃO DE ARMAS. INVESTIGAÇÃO DE TENTATIVA DE HOMICÍDIO PRATICADA POR INDÍGENAS E MOTIVADA POR DISPUTA EM RELAÇÃO À DEFINIÇÃO DO CACIQUE DA TRIBO TEKOHA. AMEAÇAS DO EX-CACIQUE DIRECIONADAS A TODOS OS MEMBROS DA COMUNIDADE QUE APOIASSEM O NOVO LÍDER. INTERESSE COLETIVO DA COMUNIDADE INDÍGENA. NÃO INCIDÊNCIA DO ENUNCIADO 140 DA SÚMULA DESTA CORTE. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL.
1. Ao estabelecer a competência da Justiça Federal para julgar os crimes relacionados à disputa sobre direitos indígenas (art. 109, XI, da CF), a Carta Magna colocou sob a jurisdição federal o julgamento de toda e qualquer controvérsia relacionada a direitos dos índios, assim como a direitos dos povos indígenas, neles inclusos os descritos no art. 231, quais sejam, aqueles sobre a organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, além dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam.
2. Inserida no sistema constitucional de garantia dos direitos de minorias, a disputa por direitos indígenas mencionada no inciso XI do art. 109 da CF não se restringe a questões envolvendo interesses econômicos, mas abrange, também, direitos relativos à forma de constituição, organização social das comunidades indígenas e definição de lideranças.
3. Como decorrência, não se aplica o enunciado n. 140 da Súmula do STJ quando o crime envolvendo direitos indígenas implicar em ofensa a interesses coletivos da comunidade indígena.
4. Se a motivação dos delitos investigados gira em torno de disputa pela liderança da aldeia, abrangendo, inclusive, ameaças de morte proferidas pelo ex-cacique a todos os que apoiassem o novo líder, evidencia-se o nítido interesse coletivo da comunidade indígena na solução da controvérsia, e, por consequência, a competência da Justiça Federal para julgamento do feito (art. 109, XI, c/c art. 231, CF/88).
5. Precedentes desta Corte: CC 123.016/TO, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Terceira Seção, julgado em 26/6/2013, DJe 1/8/2013; CC 129.704/PA, Rel. Ministra MARILZA MAYNARD - Desembargadora convocada do TJ/SE - Terceira Seção, julgado em 26/3/2014, DJe 31/3/2014; CC 99.406/RO, Rel. Ministro JORGE MUSSI, Terceira Seção, julgado em 13/10/2010, DJe 20/10/2010; HC 124.827/BA, Rel. Ministra LAURITA VAZ, Quinta Turma, julgado em 1/9/2009, DJe 28/9/2009 e CC 93.000/MS, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, Terceira Seção, julgado em 8/10/2008, DJe 14/11/2008.
6. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo Federal da 1ª Vara de Guaíra (Seção Judiciária do Paraná), o suscitante, para julgar o presente pedido de busca e apreensão.
(CC 140.391/PR, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 28/10/2015, DJe 06/11/2015) (g.n.)
No caso acima julgado pelo STJ, a despeito de existir apenas uma vítima do delito de homicídio, esta era cacique da aldeia e a razão para o cometimento do crime foi fundada numa nítida disputa de liderança o que envolve toda a coletividade daqueles indígenas.
É importante salientar que o Projeto de Lei n. 2057/1991 (dispõe sobre o estatuto das sociedades indígenas) o qual tramita na Câmara dos Deputados, prevê em seu artigo 9º a competência da Justiça Federal para julgar os casos sobre disputa de direitos indígenas, bem como os crimes praticados contra índios, suas sociedades, suas terras e seus bens, além dos crimes praticados pelos índios. No parágrafo único deste dispositivo, o projeto firma a atribuição da Polícia Federal para atuar como polícia judiciária da União.
O projeto iniciou no ano de 1991 e até hoje não tem data marcada pelo Poder Legislativo para sua continuidade. Além disso, a constitucionalidade dos dizeres é questionável uma vez que a própria CRFB/1988 trouxe um rol taxativo de competências da Justiça Federal e atribuições da PF. Por isso, acredita-se que uma lei não pode ampliar essas atribuições investigativas, a qual só poderia ser modificada por emenda à Constituição.
Assim, conclui-se que a atribuição da Polícia Federal para investigar crimes que envolvam disputa de direitos indígenas, devem ser crimes que atentem contra a coletividade indígena, seus costumes, suas tradições e suas línguas. A doutrina e a jurisprudência também citam casos de crimes cometidos de forma individual mas que atinge diretamente a coletividade indígena.
3 DA ATUAÇÃO DA PRF E DAS POLÍCIAS ESTADUAIS OCORRÊNCIAS ENVOLVENDO INDÍGENAS OU SUAS TERRAS
Como foi visto anteriormente, a CRFB/1988 não atribuiu, em regra, atuação especial da Polícia Federal nos assuntos atinentes a ocorrências envolvendo indígenas, a não ser nos casos já citados que são casos específicos. Além disso, o ordenamento jurídico pátrio, em nenhum momento proibiu a atuação dos outros órgãos de segurança pública em ocorrências envolvendo indígenas ou suas terras.
Vitorelli (2016, p. 39) afirma que [...] não foi atribuída à polícia federal qualquer competência específica no que tange aos índios, do mesmo modo que inexiste vedação de atuação das polícias militares e civis na apuração de crimes a eles relacionados(SIC)".
Assim, como dispõe o art. 144, § 2º da CRFB/1988, compete à PRF o patrulhamento ostensivo das rodovias federais. Desta forma, respondendo à indagação realizada na introdução deste trabalho, caso um grupo de indígenas bloqueiem uma rodovia federal com a finalidade de protestar por qualquer motivo, o policiamento do local deve ser realizado pela Polícia Rodoviária Federal devido a sua atribuição constitucional. Da mesma forma, um homicídio cometido em uma rodovia federal, por ou contra um indígena, a atribuição de polícia administrativa será da PRF.
Insta salientar que a CRFB/1988 traz a previsão da Polícia Ferroviária Federal (PFF) a qual tem por atribuição realizar o policiamento ostensivo das ferrovias federais. Neste ponto, a mesma razão jurídica citada para a PRF se aplica a PFF.
Em relação à Polícia Militar, a CRFB/1988 atribui a função de realizar o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública (art. 144, § 5º). Assim, caso haja a quebra da ordem pública a PM deverá ser acionada, seja para atender um delito de homicídio por questões passionais, uma discussão entre indígenas, perturbação do sossego alheio ou até mesmo para atender um delito de genocídio em aldeia indígena.
Lazzarini (1999, p. 21) assevera que:
A exegese do artigo 144 da Carta, na combinação do caput com seu § 5, deixa claro que na preservação da ordem pública, a competência residual de exercício de toda atividade policial de segurança pública, não atribuída aos demais órgãos, cabe a Polícia Militar.
A discussão sobre a disputa de direitos indígenas prevista no art. 109, XI da CRFB/1988 será importante para se definir o órgão para investigação ou julgamento do delito e não para a atuação da polícia administrativa. A atuação administrativa de polícia sempre caberá à PRF, PFF ou PM.
Já em relação à Polícia Civil, a Carta Magna também trouxe no art. 144, § 4º que devem exercer as funções de polícia judiciária e apurar as infrações penais, exceto as militares e as de atribuições da Polícia Federal.
Dessa forma, verificar no caso concreto se o crime envolve disputa de direitos indígenas será fundamental para se definir a atribuição investigativa é da Polícia Civil ou da Polícia Federal.
Como dito acima, verificar no caso concreto se existe disputa de direitos indígenas não é uma tarefa simples. É necessário um início de investigação com pelo menos entrevista das pessoas envolvidas para se chegar à conclusão se o caso se refere ou não à atribuição da Polícia Federal.
Desta forma, caso haja um homicídio entre indígenas por questões passionais, a qual não envolva a coletividade indígena, caberá à polícia judiciária estadual investigar o delito e tomar todas as providências descritas no art. 6º do CPP. Conforme já dito acima, não há nenhum problema em se transferir a atribuição da Polícia Federal no caso de se demonstrar, durante o amadurecimento da investigação, indícios de que o crime tenha atingido a coletividade dos indígenas.
CONCLUSÃO
O presente artigo teve a finalidade de desmitificar a crendice jurídica (expressão utilizada por Vitorelli 2016, p. 38) acerca da possibilidade de atuação das polícias estaduais, PRF e PFF em face de indígenas, bem como em suas terras.
Verificou-se que a atribuição constitucional de polícia administrativa pode ser realizada normalmente pelas polícias ostensivas (PRF, PFF e PM) nas atuações envolvendo indígenas pois a CRFB/1988 não trouxe nenhuma vedação à atuação destes órgãos.
Em relação à atribuição para investigação de crimes envolvendo indígenas é necessário destacar dois pontos. Primeiro, se o crime for contra as terras tradicionalmente ocupadas por indígenas, caberá à Polícia Federal sua investigação com base no art. 144, § 1º, I da CRFB/1988.
Segundo, se for qualquer outro crime praticado por ou contra indígena, será necessário verificar se conduta envolve disputa de direitos indígenas. Se a resposta for positiva, caberá a atuação da Polícia Federal, caso contrário, caberá à Polícia Civil. Lembrando que os crimes cometidos por indígenas, em tese, são de atribuição das polícias estaduais/distritais.
Por fim, verificou-se que este é um tema pouco debatido, talvez até mesmo por não ser recorrente na atividade policial. Contudo, quando acionados para tratar de alguma ocorrência envolvendo indígenas ou suas terras, é comum o policial se deparar com dúvidas sobre de quem seria a atribuição para agir.
Assim, espera-se que este trabalho seja debatido e criticado de forma que as forças policiais e outros órgãos públicos se informem sobre o assunto e este texto não seja um ponto final neste tema tão carente de bibliografias, mas sim uma vírgula.
REFERÊNCIAS
AVENA, Roberto. Processo Penal. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2020.
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 12 nov. 2021.
BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Brasília, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em 13 nov. 21
BRASIL. Decreto-Lei n. 3.688, de 03 de outubro de 1941. Lei de Contravenções Penais. Brasília, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3688.htm. Acesso em 13 nov. 21
BRASIL. Decreto-Lei n. 3.689, de 03 de outubro de 1941. Código de Processo Penal (CPP). Brasília, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm. Acesso em 12 nov. 21
BRASIL. Lei n. 6.001, de 19 de dezembro de 1973. Dispõe sobre o Estatuto do Índio. Brasília, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6001.htm. Acesso em 12 nov. 21
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 2.057, de 29 de outubro de 1991. Dispõe sobre o Estatuto das sociedades indígenas. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node01c40inv5dc04i1a3kptv661x1m18796130.node0?codteor=1685910&filename=PL+2057/1991. Acesso em 12 nov. 2021
FOUREAUX, Rodrigo. Atuação da Polícia Militar em campi de universidades federais, 2013. Disponível em: https://rodrigofoureaux.jusbrasil.com.br/artigos/121942855/atuacao-da-policia-militar-em-campi-de-universidades-federais. Acesso em 12 nov. 2021.
LAZZARINI, Álvaro. Estudos de direito administrativo. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal: volume único. 8ª ed. Salvador: Ed. Juspodivm, 2020.
VITORELLI, Edilson. Estatuto do Índio: Lei n. 6.001/1973. 3ª Ed. Salvador: Ed. Juspodivm, 2016.