Resumo: A fase de cumprimento de sentença merece uma releitura no tocante aos princípios que regem sua condução. Deve ser superada a ideia de que também na fase de cumprimento de sentença o magistrado esteja sujeito ao princípio da inércia porque, uma vez deduzido o pedido de cumprimento de sentença a parte confere ao julgador todos os instrumentos necessários para o atingimento, de forma mais célere e efetiva possível, do objeto imediato postulado, que é, a satisfação da obrigação. O direito à efetiva tutela executiva, isto é, a satisfação in natura da obrigação, possui assento constitucional que deve ser observado pelos magistrados.
Palavras-chave: Princípio; inércia; impulso oficial; efetividade; celeridade; direito fundamental.
Abstract: The sentence compliance phase deserves a rereading regarding the principles that govern its conduct. The idea that the magistrate is also subject to the principle of inertia must also be overcome, since, once the request for compliance with the sentence has been deducted, the party grants the judge all the necessary instruments to achieve it, in a faster way. and effective as possible, of the postulated immediate object, that is, the satisfaction of the obligation. The right to effective executive protection, that is, the natural satisfaction of the obligation, has a constitutional seat that must be observed by the judges.
Keywords: Principle; inertia; official impulse; effectiveness; celerity; fundamental right.
Sumário: Introdução. 1. O princípio da inércia. 2. O princípio da congruência (correlação ou adstrição). 3. O princípio do impulso oficial. 4. Do postulado normativos da razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade da sua tramitação. 5. Do direito fundamental à tutela executiva: atenção ao princípio da efetividade. 6. Da compreensão do pedido deduzido na fase de cumprimento de sentença. O interesse público do Estado em encerrar a relação jurídico-processual. 7. Da inexistência de violação de normas e princípios em razão da atuação proativa do magistrado em sede de execução. Conclusão. Referências.
Introdução
O princípio da inércia é baluarte do direito processual civil no ordenamento jurídico pátrio. Ressalvadas raras exceções[1], é vedado ao magistrado agir de ofício, exigindo-se prévia provocação da parte interessada. Assim, somente após provocado, e devidamente delimitada a ação (princípio do dispositivo), é que poderá atuar o juiz, dando curso ao trâmite natural do processo. É de se destacar, contudo, que o encadeamento de atos processuais que seguem à propositura da lide independe da vontade das partes porque, uma vez deflagrado o trâmite processual, o processo fica sujeito ao princípio do impulso oficial (art. 2º do CPC). É que a partir daí se sobrepõe ao interesse particular o interesse do Estado em dar fim à demanda judicial (preferencialmente, com análise do mérito).
Esses três pilares elementares (princípio da inércia, princípio dispositivo e a regra do impulso oficial) acabam por reforçar a imprescindível imparcialidade que deve tomar a pessoa do julgador quando da subsunção da norma à hipótese posta em julgamento. A imparcialidade garante a lisura do processo, pondo a salvo a figura do magistrado que julgará os fatos postos e provados (ou não) nos autos, isento de preferências pessoais. Tal distanciamento robustece a sentença exarada, agregando virtudes que acabam por facilitar a pacificação social, fim último do processo.
Agora, esse estado de inação, de adstrição ao pedido e a simples atenção à forma do procedimento estabelecido previamente pela lei merece releitura constitucional em se tratando de cumprimento de sentença[2]. Isso porque na fase executiva não mais se busca a formação de um juízo de certeza sobre uma situação duvidosa e beligerante. As dúvidas que pairavam sobre o direito da parte já foram solvidas. Há um título executivo líquido, certo e exigível, constituído em favor do polo credor em detrimento do executado. Não há como se conceber que as partes estão equiparadas na relação. Ao contrário: há uma espécie de subordinação do devedor (mais precisamente do seu patrimônio) aos interesses do credor. E essa subordinação é deveras acentuada em se tratando de cumprimento de sentença, porquanto absolutamente restritas as hipóteses de impugnação do crédito pretendido. Isso porque o direito creditício perseguido se encontra imutável face à incidência dos efeitos da coisa julgada.
Ademais, a fase executiva é informada por princípios e regras tão caros quanto os princípios e normas que alimentam a fase cognitiva, dentre eles o direito à satisfação do crédito, o princípio da primazia do interesse do credor em detrimento do devedor e, somado a eles, o princípio da celeridade processual e da efetiva prestação jurisdicional, que apenas são concretizados substancialmente com a extinção da execução pelo adimplemento.
O presente artigo visa, portanto, adentrar no exame desses contrapontos, propondo, ao final, uma visão atual acerca dos princípios que devem reger a fase de cumprimento de sentença, dando concretude ao direito constitucional à tutela executiva.
1. O princípio da inércia.
O princípio da inércia, também denominado pela doutrina como princípio da demanda ou da iniciativa entre as partes, está positivado no Código de Processo Civil (CPC) no art. 2º.
A definição do princípio está contida em duas máximas latina: nemo iudex sine actore e ne procedat iudez ex officio. Como bem explica Moacyr Amaral dos Santos, quando um sujeito titular de um direito o exerce, há a assunção da iniciativa de instaurar um processo, por meio do qual o órgão jurisdicional conhecerá e decidirá sua pretensão. Nisso consiste o princípio da iniciativa das partes, também conhecido como princípio da inércia (SANTOS, 1993, p. 76).
É corriqueiro na doutrina que esse princípio possua emprego também no processo executivo lato sensu[3]. E tal orientação doutrinária ganhou reforço com a edição do atual CPC. Isso porque o princípio da inércia, que já era previsto no Codex de 1973, foi realocado para o Livro I, que trata das normas processuais civis, mais precisamente para o capítulo Das normas fundamentais do processo civil. Ou seja, o seu realojamento para a parte geral indica uma potencial incidência para todas as fases e procedimentos do processo civil, dentre as quais se inclui a fase de cumprimento de sentença.
O ilustre processualista Araken de Assis sintetiza a questão ao afirmar que à semelhança do processo de conhecimento, a relação processual cujo objeto é a pretensão originada do efeito executivo da sentença condenatória, ou de documento a ela equiparado (art. 784 do NCPC), inicia por demanda da parte e se desenvolve por impulso do juiz (art. 2º). É indubitável que o cumprimento de título judicial se subordina a requerimento do vitorioso (ASSIS, 2017, p. 140).
É de se reforçar, por fim, que a atenção a esse princípio, assim como ao princípio da congruência examinado no capítulo vindouro, tem por desiderato direto resguardar a imparcialidade do Estado-juiz, garantindo a emissão de um juízo de valor sobre o litígio posto em debate de forma mais isenta possível[4].
2. O princípio da congruência (correlação ou adstrição).
O princípio da correlação, da congruência ou da adstrição, deriva do princípio dispositivo. Diz respeito aos limites das matérias que são postas sob exame do juiz. Encontra respaldo legal no art. 492 do CPC.
Segundo esse princípio, o juiz ficará limitado (adstrito) ao pedido da parte, de maneira que apreciará e julgará a lide nos termos em que foi proposta, sendo-lhe vedado conhecer de questões não suscitadas pelos litigantes. Prevalece, portanto, o princípio dispositivo na instituição da relação processual e na definição do objeto sobre o qual recairá a prestação jurisdicional (THEODORO JÚNIOR, 2014, p. 36).
Assim como é direito da parte provocar o Estado-juiz (princípio da inércia), também se encontra dentro da sua alçada delimitar o campo de atuação do magistrado, o que se concretiza por meio da(s) causa(s) de pedir e do(s) pedido(s) articulado(s).
É de se ressaltar, ainda, que o réu também exerce certa influência nessa limitação objetiva da demanda, porquanto as matérias veiculadas em defesa também podem vir a agregar objetos de prova e de matérias de direito que demandarão pronunciamento judicial. Sobre esse aspecto, oportuno transcrever as lições Rogério Cruz e Tucci: Assim, como o jurisdicionado detém o monopólio no que respeita à propositura da demanda, evidentemente que nesse poder insere-se a sua identificação, ou seja, a limitação imposta ao julgador de decidir apenas quanto ao fato ou fatos componentes da causa petendi, sem embargo da necessária análise daqueles aportados pelo réu. O thema decidendum vem, portanto, fixado pela prevalência da vontade das partes.[5]
Em resumo, o princípio da correlação limita horizontalmente a atuação do juiz, impedindo que ele decida questão diversa da pretendida (extra petita), além da pedida (ultra petita) ou aquém da deduzida (citra petita).
3. O impulso oficial.
O impulso oficial não é propriamente um princípio, mas, sim, uma regra legal. Sintetiza a ideia de que, uma vez deflagrado o processo, ele seguirá seu curso normal até a prolação de uma sentença, preferencialmente de mérito.
É se de registrar que o procedimento não está à livre disposição das partes. As regras, formas e prazos, salvo algumas exceções, estão pré-estabelecidas pelo legislador, de modo que ao juiz cabe observar e garantir que se cumpra a ritualística e as formas que estão pré-concebidas.
Esse impulso decorre do fato de que, uma vez instado o Estado, nasce o interesse público de solver o conflito social denunciado à autoridade judiciária. E o interesse público não se resume a pôr fim à contenda: o que se busca é a resolução de mérito do litigio anunciado, que a sentença seja justa, que ela seja proferida dentro de um tempo razoável e, em arremate, que seja transposto para o mundo fenomênico o direito reconhecido. Colhe-se da doutrina que instaurada a relação processual, predomina o interesse público, do Estado, de desenvolvê-la para no mais breve prazo dar-se por concluída a função jurisdicional com a composição da lide (SANTOS, 1993, p. 77-78).
4. Do postulado normativo da razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade da sua tramitação.
A lentidão do Poder Judiciário é inegável. Porém, cuida-se de uma afirmação simplista e que desconsidera toda a complexidade do ato de julgar, além de desprezar o fato de existir um número ínfimo de juízes em comparação ao número de processos em trâmite[6].
Críticas à parte, uma vez que não são objeto desse estudo, diante dessa verdadeira crise institucional, o legislador constituinte optou por elencar como princípio constitucional a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade da sua tramitação (art. 5º, LXXVIII, CF). Essa previsão trouxe novas luzes para a morosidade processual, passando o Poder Judiciário como um todo a desenvolver meios e instrumentos a tornar mais célere a tramitação processual. O tempo passou a ter status de princípio constitucional.
A previsão veio em boa hora. De fato, jurisdição tardia não é Direito, e, sim, a concretude de uma injusta. A ninguém interessa uma Justiça que não garanta ao jurisdicionado a prestação jurisdicional dentro de um tempo razoável e de forma mais efetiva possível. A não atenção a esse postulado enfraquece o Judiciário enquanto poder, alimenta vozes que buscam a autotutela, além de desmoralizar a própria democracia como valor institucional do Estado de Direito. Portanto, é dever de todos os operadores do Direito contribuir para que o processo se desenvolva de forma mais célere possível, evitando o manejo de incidentes infundados, pedidos desarrazoados ou contrários a questões já decididas em definitivo por órgãos superiores. Aliás, essa vertente foi reforçada com o vigente Código de Processo Civil que positivou a boa-fé processual (art. 5º), apontando-a como baluarte da atuação dos agentes do processo.
Considerando que o tempo foi alçado a princípio constitucional, é mister que a própria interpretação do Direito e mais precisamente das normas que regem o processo sejam relidas sob essa ótica. Cabe ao interprete aplicar o direito de forma otimizada no desiderato de garantir que a pretensão deduzida seja feita de modo mais célere possível, desde que, óbvio, observado o devido processo legal.
Justamente essa premissa de tempo e da efetivação da tutela jurisdicional é que nos leva ao próximo capítulo.
5. Do direito fundamental à tutela executiva: atenção ao princípio da efetividade.
O princípio da efetividade consubstancia-se na concretização da prestação jurisdicional. Em se tratando de cumprimento de sentença, ela se dá por meio da satisfação preferencialmente in natura do direito reconhecido por sentença na fase precedente. Tal princípio pode ser visto por duas óticas de acento constitucional: pelo viés do postulado da razoável duração do processo e pelo postulado do devido processo legal.
O postulado da razoável duração do processo, ao prever os meios que garantam a celeridade da tramitação processual, estipula o princípio da efetividade por meio de adoção de métodos de otimização, racionalizados e voltados a maior efetividade do exercício da atividade jurisdicional, sem prejuízo do atingimento de seus objetivos mais amplos (BUENO, 2007, p. 141-143). Pode ser citada como exemplo a semana de conciliação promovidas pelo Conselho Nacional do Judiciário como método otimizado de resolução de conflitos.
Já pelo viés do devido processo legal, o princípio da efetividade visa garantir ao credor o direito fundamental à tutela executiva (DIDIER, et al., 2009, p. 47). Veja-se que o direito à prolação de uma sentença não se resume ao ato de sentenciar, ao provimento final. Deve-se também garantir que o direito reconhecido seja implementado, motivo pelo qual é impositivo que se garanta ao credor e principalmente ao Poder Judiciário a utilização de instrumentos capazes de dar efetividade a esse direito substancial, o que significa direito à efetivação em sentido estrito (MARINONI, 2003, p. 303). Nada adianta o reconhecimento do direito em uma sentença se o Estado-Juiz não possui meios de concretizá-lo. Ao fim, o que realmente se busca com a tutela jurisdicional é a transplantação do direito reconhecido no mundo jurídico para o mundo dos fatos.
Logo, se afere o grande relevo do princípio da efetividade e de sua particular incidência no âmbito do cumprimento de sentença. Isso porque a fase de cumprimento de sentença é destinada especialmente para concretizar o direito reconhecido na fase de conhecimento. Desse modo, todo o sistema processual executivo deve ser interpretado e aplicado voltado à materialização do direito posto na sentença. Quer dizer: a) a interpretação das normas que regulamentam a tutela executiva tem de ser feita no sentido de se extrair a maior efetividade possível no desiderato de concretizar a satisfação da obrigação; b) o juiz tem o poder-dever de deixar de aplicar uma norma que imponha uma restrição a um meio executivo, sempre que essa restrição não se justificar à luz da proporcionalidade, como forma de proteção a outro direito fundamental (como, por exemplo, a relativização da impenhorabilidade dos proventos); c) o juiz tem o poder-dever de adotar os meios executivos que se revelem necessários à prestação integral da tutela executiva (DIDIER, 2009, apud GUERRA, 2003, p. 103-104).
6. Da compreensão do pedido deduzido na fase de cumprimento de sentença. O interesse público do Estado em encerrar a relação jurídico-processual.
Consigno que não se propõe aqui a não atenção aos princípios da inércia, da correlação, ou de outros princípios que são reconhecidamente aplicáveis ao processo executivo. A proposição é de releitura desses princípios, face ao direito constitucional à tutela executiva, que se dá por meio do princípio da efetivação.
Dito isso, o primeiro aspecto que deve ser ressaltado é que não pode o juiz deflagrar a fase de cumprimento de sentença de ofício. Há impedimento legal para tanto: art. 528 do CPC. Logo, vigie o princípio da inércia, ainda que a execução seja dirigida pelo princípio da efetividade.
Agora, uma vez postulado o cumprimento, cabe ao juiz determinar todas as providências que entender necessárias a satisfação do crédito perseguido, independentemente de pedido expresso do exequente. De regra, os meios e instrumentos para a célere concretização do direito são de mais fácil acesso ao juiz, seja pela expertise, seja pela própria vivência forense.
Com efeito, a afirmação é impactante. Conferir ao juiz poder tão dilatado pode soar inquisitorial, contrário aos ditames do devido processo legal. Mas se cuida de constatação aparente, facilmente infirmada. De forma alguma defende-se a atuação do juiz ao arrepio da lei, suplantando direitos das partes, principalmente do executado. Porém, deve ser reconhecido sem ressalvas que o devedor na fase de cumprimento de sentença se encontra em uma situação de subordinação para com o exequente. O processo executivo é voltado a satisfazer o interesse do credor. Ainda que a satisfação desse interesse deva ser realizada de forma menos onerosa ao devedor, de modo algum isso equivale a uma cláusula geral de proteção ou de isenção. Logo, até mesmo as regras protetivas ao devedor devem ser lidas sob a ótica do credor. Constando-se abuso do direito de defesa do executado, ou que eventual restrição de seu direito patrimonial possa conviver harmonicamente com o direito creditício do exequente, há de prevalecer o interesse em favor de quem foi constituído um título executivo judicial.
Nisso consiste interpretar o sistema executivo sob a ótica do princípio da efetividade e sob o auspício do direito fundamental à tutela executiva. Cassio Scarpinella Bueno destaca a necessidade de o processo (sempre: método de atuação do Estado) e o direito processual civil como um todo ser pensado do ponto de vista de sua economicidade, seja em termos de tempo ou em termos de recursos, de técnicas ou de meios a serem empregados para atingimento de suas finalidades, visando, com isso, uma melhor e mais eficiente prestação da tutela jurisdicional (2007, p. 144-145).
Outrossim, é de se esclarecer que a perspectiva que se propõe também não engendra violação ao princípio do dispositivo ou da correlação. Veja-se que, quando é deduzido pedido de cumprimento de sentença, o credor postula um provimento mediato e outro imediato. Aquele, jaz na pura e simples satisfação da obrigação reconhecida judicialmente; este, no ato concreto objetivado (penhora de bens, arresto, busca e apreensão, etc.). Logo, não há qualquer vedação legal para que o magistrado adote, independentemente de requerimento expresso do credor, as providências que julgar pertinentes para a realização desse direito, desde que legalmente lícitas.
Tragamos um exemplo. O credor pugna pela deflagração do processo de cumprimento, requerendo a intimação do devedor para pagamento espontâneo em 15 dias. Quedando-se inerte o executado, pretende o credor a expedição de mandado de penhora de bens existentes na residência do devedor. Nessa situação, nada impede o juiz de indeferir ou relegar o pedido de penhora de bens que guarnecem a residência do devedor e determinar, inicialmente, a busca de ativos pelo Sisbajud e/ou busca de veículos pelo Renajud. Tais providências, de modo algum, podem ser consideradas como violadoras do princípio dispositivo, da correlação ou da inércia, assim como não podem ser taxadas como agir ilícito por parte do magistrado. Na verdade, ao adotar tais providências ele apenas está atendendo ao pedido mediato formulado pelo credor (satisfação do crédito), adotando as medidas mais racionais e otimizadas para, em um menor tempo possível e de forma menos custosa, concretizar o direito perseguido. Nisso também consiste a aplicação do princípio da efetividade.
Então, não se está propondo poderes absolutos tampouco se cogita de desrespeito ao devido processo legal. O que se procura é, de uma leitura constitucional e dirigida pelo princípio da efetividade, dar adequada interpretação às regras do processo executivo que sempre devem ser interpretadas em favor do credor e não em benefício do devedor.
É de se esclarecer que esse poder-dever do magistrado decorrente do direito constitucional a uma tutela executiva efetiva (no âmbito procedimental e substancial) não importa dizer que o juiz tudo pode ou que ele deve desconsiderar os requerimentos formulados pelo credor. Em absoluto! Apresentado um requerimento, é dever do juiz analisá-lo pontualmente, fundamentando as razões de decidir. Contudo, face ao princípio da efetividade, pode o magistrado indeferir a providência pleiteada ou relegar sua adoção, justificando que há outros meios e instrumentos mais eficazes, menos custosos e/ou menos onerosos ao devedor, que irão atender de forma ótima a pretensão deduzida.
A praxe forense traz inúmeros exemplos da aplicação concreta do princípio da efetividade. 1) A parte deduz pedido para que sejam oficiados os cartórios de registro de imóveis de determinada Comarca para verificar sobre a existência de bens de raiz em nome do devedor. Não obstante, é de conhecimento do juiz de que há uma ferramenta judicial que viabiliza uma consulta on-line em todos os cartórios do país sobre a existência de bens imóveis em nome do executado (Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis - SREI). Nesse caso, face à aplicação do princípio da efetividade, deve o juiz indeferir o pedido e determinar que a consulta seja realizada pelo SREI, otimizando o andamento processual, ainda que não haja pedido expresso da parte. 2) O credor pede que seja oficiado a Receita Federal para que seja informada a movimentação financeira do devedor nos últimos três anos, ou, ainda, para que sejam informadas eventuais contas bancárias em nome do executado. Essas providências não só podem como devem ser acessadas por meio do Sisbajud/Infojud, que prestam tais informações em prazos de regra inferiores a cinco dias, de forma informatizada. É de clareza solar que nada impede o juiz de determinar essas providências, ainda que não haja requerimento nesse sentido. 3) O magistrado tem conhecimento de créditos a serem recebidos pelo executado em outro processo que tramita na sua Vara. É dever do juiz, nessa situação, informar ao credor a existência desse crédito para que, querendo, adote as providências necessárias para o bloqueio/penhora desses valores. Incidem os princípios da efetividade, da cooperação e da boa-fé processual.
7. Da inexistência de violação de normas e princípios em razão da atuação proativa do magistrado em sede de execução.
Essa postura proativa do magistrado também não deve ser encarada como violadora da imparcialidade que deve guiar a atuação do juiz. Como já adiantado, a relação jurídico-processual existente na execução de título judicial é de subordinação do réu para com o credor. Outrossim, o direito de crédito é impassível de rediscussão (salvo as restritas hipóteses legais). Como regra geral, não tem o magistrado o dever de realizar pronunciamentos meritórios sob a obrigação executada, porquanto isso foi realizado, de forma exaustiva, na fase de conhecimento. Portanto, não há como se advogar que o princípio da imparcialidade possua idêntica incidência na fase cognitiva e executiva: ele é aplicável, mas em menor extensão.
Aduza-se que essa obrigação constitucional do magistrado em dar concretude ao provimento judicial não se confunde com o interesse patrimonial e particular do credor. Antes disso revela o compromisso do Estado com a democracia, uma vez que garante aos cidadãos que se socorrem do Poder Judiciário a autoridade de suas decisões. Além disso, reforça o fim último do processo que é a pacificação social, o qual apenas é realizada com a extinção do processo pelo cumprimento do título judicial.
Por fim, um último exemplo de aplicação do princípio da efetividade na fase executiva, recentemente reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça (EREsp 1582475/MG), malgrado não tenha o sodalício utilizado o termo.
O STJ se debruçou sobre a questão da impenhorabilidade do salário. É induvidoso que há norma legal prevendo a impenhorabilidade (art. 833, IV, CPC). Não obstante, foi atentado que, embora haja uma regra infra-legal de impenhorabilidade, a Constituição Federal confere ao credor o direito de satisfazer seu crédito. E, ao analisar esse conflito aparente, entendeu o STJ que, auferindo o devedor valores cuja restrição parcial não importariam malferimento ao mínimo existencial do executado e seus familiares, não haveria razão para se reconhecer a impenhorabilidade sobre a totalidade dos valores recebidos, senão apenas da parte indispensável para a manutenção da família e do próprio executado. Cuida-se de clara hipótese de intepretação das normas do processo executivo sob a ótica do princípio da efetividade.
Outrossim, essa atuação ativa ganhou reforço com aquilo que a doutrina passou a denominar meios atípicos de execução/coerção. Diz o art. 139, IV, do CPC, que caberá ao juiz determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária. Ou seja, ainda que sem menção expressa, já há, em certa medida, normas insertas no Código de Processo Civil que visam justamente dar substância ao princípio da tutela executiva efetividade.
Conclusão
A reforma constitucional que inseriu no ordenamento jurídico a razoável duração do processo como postulado normativo obriga os magistrados a revisitar conceitos elementares do processo. Princípios como o da inércia e da adstrição devem ser reinterpretados a partir de uma leitura constitucional do que se entende por prestação jurisdicional e célere.
Outrossim, deve ser ponderado que a efetividade da tutela executiva foi também galgada a princípio constitucional. Daí porque todo o arcabouço normativo que rege a fase de cumprimento de sentença merece uma interpretação vertical, tendo por enfoque o legítimo e constitucional direito de o cidadão ver satisfeito o direito que já lhe foi reconhecido na fase cognitiva. Isso importa dizer que as normas que regram o procedimento executivo devem ser interpretadas modo a privilegiar e concretizar o direito do credor. É justamente por conta dessa percepção que a jurisprudência atual admite a relativização da regra de impenhorabilidade sobre o salário em dadas hipóteses.
Assim, cabe aos magistrados apreenderem que o ordenamento jurídico fornece subsídios jurídicos e ferramentas processuais voltadas à concretização do princípio à tutela executiva efetiva. Chegou a hora de se priorizar a figura do credor que submeteu seus interesses ao auspício do Poder Judiciário e garantir a ele a concretização do direito reconhecido judicialmente. O processo executivo deve superar a imagem de inefetividade por meio de uso de instrumentos modernos de efetivação da obrigação, seja de forma direta ou por meio de coerção do devedor. E, para isso, não só pode como deve o juiz adotar as medidas que estão à sua disposição, ainda que ausente pedido específico do credor, uma vez que, deflagrada a fase de cumprimento, cabe ao magistrado eleger aquelas medidas que garantirão a satisfação da obrigação de forma menos custosa, mais célere e menos burocrática.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
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MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO Daniel. Novo Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. vol. 1. 17ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1994.
THEODORO, Humberto Jr. Curso de Direito Processual Civil. vol. I. 55ª ed. Rio de janeiro: Editora Forense, 2014.
TUCCI, Rogério Cruz. A Causa Petendi no Processo Civil. 2ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.
Deflagração do processo de inventário (art. 989 do Código Civil), arrecadação de bens jacentes (art. 1.142 do CC), dentre outros.
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Embora entenda que as conclusões que serão apresentadas também são aplicáveis ao processo de execução de título extrajudicial, malgrado a necessidade de certas adaptações, o presente trabalho limitar-se-á a tratar a fase de cumprimento de sentença.
Isto é, cumprimento de sentença e execução fundadas em título extrajudicial.
Nesse mesmo sentido, Humberto Theodoro Júnior (in Curso de Direito Processual Civil. vol. I. 55ª ed. Rio de janeiro: Editora Forense, 2014, p. 36-37).
A Causa Petendi no Processo Civil. 2ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. Pág. 183.
Há pouco mais de 18.000 juízes no país. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, tramitam mais de 78 milhões de processo no Judiciário. Isto é, mais de 4.000 processos por cada juiz, o que seguramente impacta na celeridade e qualidade da prestação jurisdicional.