Resumo
A pandemia do Coronavírus e as necessárias medidas de restrição que visam reduzir a sua propagação têm impactado, e muito, as relações jurídicas contratuais. Por se tratar de um acontecimento completamente imprevisível e inevitável, poucos contratos trouxeram soluções expressas sobre como deveriam proceder na execução de suas atividades, até porque se trata de uma realidade completamente diferente daquela do firmamento do contrato. Ocorre, no entanto, que o próprio ordenamento jurídico brasileiro já traz remédios para situações em que a execução perfeita do contrato se torna problemática, como as alegações de caso fortuito e força maior e da onerosidade excessiva, além da impossibilidade de cumprimento. Este trabalho busca explicar como esses institutos se aplicam à nova realidade imposta pela pandemia do Coronavírus, além de levantar os riscos de uma possível extinção de contratos em massa. Para tanto, o trabalho parte da análise de conceitos e críticas doutrinárias referentes aos dispositivos legais, das novas proposições legislativas e das recentes decisões judicias para entender a forma como o Judiciário tem tratado do assunto. Assim, o presente artigo expõe a necessidade de se priorizar, nesse momento tão conturbado, a revisão contratual em detrimento da resolução, de forma a evitar maiores impactos econômicos no país.
Palavras-chave: Pandemia. Contratos. Onerosidade excessiva. Revisão. Resolução.
1 INTRODUÇÃO
Em março do ano de 2020 a Organização Mundial de Saúde OMS reconheceu a doença do Coronavírus (Covid-19) como uma pandemia. Em razão disso, vários decretos federais, estaduais e municipais impuseram medidas de restrição a fim de conter a rápida propagação do vírus que já ceifou mais de 110 mil vidas.
O isolamento social e a necessidade de se restringir o funcionamento de estabelecimentos comerciais de vários setores têm causado muitos impactos nas relações jurídicas de natureza contratual. Vários contratos tiveram suas cláusulas revistas de forma amigável, a partir do consenso de ambas as partes para readequar prazos, valores, e as demais condições de execução firmadas antes da pandemia. Outros contratos, no entanto, tiveram de ser rescindidos, seja pela impossibilidade de seu adimplemento, seja pela falta de consenso entre as partes ao pactuarem novas condições.
Com a superveniência do Coronavírus, muitos contratantes têm buscado alegar a ocorrência de caso fortuito e força maior ou que, em decorrência da pandemia, as prestações as quais se obrigaram se tornaram excessivamente onerosas, a fim de pleitear judicialmente a resolução dos contratos e se eximir de suas responsabilidades, ainda que possível a revisão consensual dos termos para realização parcial das obrigações.
Essa falta de cooperação e compromisso que leva os contratantes a priorizarem a extinguirem dos contratos em detrimento da sua manutenção e readequação têm exigido dos nossos juristas e legisladores uma atenção especial para evitar a banalização da força vinculante dos contratos, do pacta stunt servanda.
2 BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DOS CONTRATOS
O cerne da concepção de contrato sofreu poucas alterações ao longo dos séculos no ordenamento jurídico brasileiro, sendo conceituado pelo histórico jurista e legislador Clóvis Beviláqua - autor do projeto de Código Civil que viria a ser promulgado em 1916 como acordo de vontades para o fim de adquirir, resguardar, modificar ou extinguir direitos (BEVILÁQUIA, 1977, p.194).
O contrato é, portanto, de forma sucinta, uma espécie de negócio jurídico firmado por duas ou mais pessoas (bilateral ou plurilateral), em acordo mútuo, por livre e espontânea vontade, que gera vínculo jurídico entre as partes. Pablo Stolze reforça já sob a égide do Código Civil de 2002, em tempos muito diferentes daqueles vividos por Beviláqua que não se poderá falar em contrato, de fato, sem que se tenha por sua pedra de toque a manifestação de vontade. Sem querer humano, pois, não há negócio jurídico. E, não havendo negócio, não há contrato (GAGLIANO, 2019, p.58). Abstrai-se dessa afirmativa um elemento presente na essência de todas as conceituações de contrato: a autonomia da vontade das partes.
O Código Beviláqua (Código Civil de 1916, que passou a levar o nome de seu autor) foi concebido sob uma forte influência do jusnaturalismo e do liberalismo. Os três grandes institutos do direito privado contrato, família e propriedade passaram a ser legislados e interpretados pela concepção liberal e individualista da mínima interferência do Estado na esfera privada. Sob o apogeu do princípio do pacta sunt servanda, em que o contrato faz lei entre as partes, pairava a ideia de que o contrato era imutável, justamente por ter sido construído e firmado pela vontade e consenso das partes, como leciona Orlando Gomes:
A moderna concepção do contrato como acordo de vontades por meio do qual as pessoas formam um vínculo jurídico a que se prendem se esclarece à luz da ideologia individualista dominante na época de sua cristalização e do processo econômico de consolidação do regime capitalista de produção. O conjunto das idéias então dominantes, nos planos econômico, político e social, constituiu-se em matriz da concepção do contrato como consenso e da vontade como fonte dos efeitos jurídicos, refletindo-se nessa idealização o contexto individualista do jusnaturalismo, principalmente na superestimação do papel do indivíduo. (GOMES, 2009, p.7)
O desequilíbrio contratual restou evidente nas relações envolvendo contratantes de diferentes classes sociais. Naturalmente, a suposição de que a igualdade formal dos indivíduos asseguraria o equilíbrio entre as partes decaiu ao longo da transição do Estado Liberal para o Estado Social (GOMES, 2009). Esta transição teve como marco o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) e o seu deslocamento para o topo do ordenamento jurídico brasileiro, exercendo o papel norteador de toda legislação infraconstitucional.
A Constituição Cidadã de 1988 trata em seu bojo de institutos do direito privado antes disciplinados exclusivamente pelo Código Civil. Não quer dizer, porém, que as normas deixaram de pertencer ao Direito Privado, mas que passaram a ser lidas, elaboradas e interpretadas à luz da Constituição Federal, obedecendo os princípios e limites por ela impostos. A este fenômeno se deu o nome de constitucionalização do Direito Civil, conforme os ensinamentos de Luis Roberto Barroso:
Nesse ambiente, a Constituição passa a ser não apenas um sistema em si com a sua ordem, unidade e harmonia mas também um modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do Direito. Este fenômeno, identificado por alguns autores como filtragem constitucional, consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados. Como antes já assinalado, a constitucionalização do direito infraconstitucional não tem como sua principal marca a inclusão na Lei Maior de normas próprias de outros domínios, mas, sobretudo, a reinterpretação de seus institutos sob uma ótica constitucional. (BARROSO, 2007, p. 20-21)
O Código Civil vigente promulgado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em 2002 reflete de forma clara a mudança de concepção a respeito da intervenção do Estado na esfera privada a fim de se promover a justiça social. O novo diploma procurou afastar-se do sentido individualista que norteava o Código anterior, adotando, inclusive, o princípio da socialidade, fazendo prevalecer os valores coletivos sobre os individuais (GONÇALVES, 2018).
A função social do contrato, princípio constitucional previsto expressamente no art. 421 do Código Civil de 2002, não elimina a autonomia da vontade das partes contratantes, mas condiciona a eficácia do contrato ao respeito aos interesses sociais e à dignidade humana. Neste sentido, o princípio do pacta sunt servanda continua prevalecendo. Entretanto, embora os contratos devam ser cumpridos em sua integralidade por ambas as partes, a lei prevê hipóteses de nulidade de cláusulas contratuais que lesam normas de ordem pública e de interesse social.
Além disso, o próprio Código prevê a possibilidade de revisão e resolução judicial dos contratos por motivos de caso fortuito, força maior e onerosidade excessiva, institutos que serão tratados mais a frente.
2.1 Sobre a extinção dos contratos
O objetivo das partes que firmam um contrato é a sua extinção natural, ou seja, a execução e a satisfação integral das obrigações e direitos nele consignados, respeitando seus deveres de lealdade e confiança, assistência, informação, decorrentes do princípio da boa-fé objetiva (GAGLIANO, 2019). Entretanto, muitos contratos chegam ao fim sem atingir seu objetivo, ou seja, sem o adimplemento das obrigações pactuadas. A doutrina costuma distinguir essas duas ocasiões como extinção normal - aqueles contratos que se extinguem pelo simples cumprimento de ambas as partes , e extinção anormal, que suscita qualquer problema em relação à forma e aos efeitos, seja por causas anteriores ou contemporâneas à formação do contrato ou por causas supervenientes.
2.1.1 Da extinção contratual por causas anteriores ou contemporâneas à sua celebração
O professor Carlos Roberto Gonçalves traz como uma das causas de extinção anormal do contrato anterior a sua formação a constatação de defeitos decorrentes do não preenchimento de seus requisitos, que afetam a sua validade, acarretando a nulidade absoluta ou relativa (anulabilidade) (GONÇALVES, 2018, p.825). Sendo assim, o contrato pode vir a ser anulado ou sequer produzir efeitos desde a sua formação se constatado algum problema relacionado à (in)capacidade das partes, o livre consentimento, o objeto, ou à forma.
Outras hipóteses de extinção contratual por causas anteriores ou contemporâneas à sua celebração são: a existência de cláusula resolutiva, que pode ser expressa, operando de pleno direito (art. 474 CC/02), ou tácita, que autoriza o lesado a pleitear a resolução com perdas e danos (art. 475 CC/02); a constatação de um vício oculto da coisa (que faculta a redibição); e a expressa previsão de direito de arrependimento, previsto no art. 420 do CC/02.
2.1.2 Da extinção contratual por causas supervenientes à sua celebração
O contrato pode vir a ser extinto em razão de fato posterior à sua formação por: morte de algum dos contratantes (ocorre a dissolução em contratos personalíssimos); resilição, que se dá pela iniciativa de uma ou ambas as partes; rescisão, identificada pela doutrina como a forma de extinção de contratos em que tenha ocorrido lesão ou celebrados sob estado de perigo (GAGLIANO, 2019, p.282); e resolução, que é a modalidade de extinção que se fundamenta no inadimplemento/descumprimento do que foi pactuado, seja por inexecução culposa ou involuntária, absoluta ou relativa.
Aqui reside, enfim, institutos que visam atenuar a rigidez do princípio do pacta stunt servanda, pontos que carecem de aprofundamento para o desenrolar deste artigo: 1) a resolução contratual involuntária em razão de superveniência de caso fortuito ou força maior; 2) a teoria da imprevisão e a onerosidade excessiva.
2.1.2.1 Resolução ou revisão contratual por caso fortuito ou força maior
Os acontecimentos inevitáveis e/ou imprevisíveis posteriores à celebração do contrato que venham a impossibilitar parcial ou totalmente a execução das obrigações pactuadas são denominados como caso fortuito ou força maior. Sobre isso, o art. 393 do Código Civil de 2002 traz a seguinte redação:
Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir. (BRASIL, 2002).
Verifica-se, portanto, que o Código trata de ambas as hipóteses como um conceito único. A distinção ficou a cargo da doutrina, com descreve Pablo Stolze (2019):
a característica básica da força maior é a sua inevitabilidade, mesmo sendo a sua causa conhecida (um terremoto ou uma erupção vulcânica, por exemplo); ao passo que o caso fortuito, por sua vez, tem a sua nota distintiva na sua imprevisibilidade, segundo os parâmetros do homem médio. Nesta última hipótese, portanto, a ocorrência repentina e até então desconhecida do evento atinge a parte incauta, impossibilitando o cumprimento de uma obrigação (um atropelamento, um roubo). (GAGLIANO, 2019, p. 285)
Conforme o dispositivo supramencionado, o contratante que ficou impossibilitado de cumprir sua obrigação de forma involuntária não responde pelo pagamento de perdas e danos, salvo se tiver se responsabilizado por isso expressamente. Complementa ainda Gonçalves (2018):
A resolução opera de pleno direito. Cabe a intervenção judicial para proferir sentença de natureza declaratória e obrigar o contratante a restituir o que recebeu. O efeito da resolução por inexecução decorrente do fortuito e da força maior é retroativo, da mesma forma como ocorre na resolução por inexecução culposa, com a diferença que, na primeira hipótese, o devedor não responde por perdas e danos. Todavia, deve restituir o que eventualmente tenha recebido, uma vez resolvido o contrato. (GONÇALVES, 2018, p 833)
A impossibilidade, explica o autor, deixa de ser involuntária se o devedor concorre para sua ocorrência. Além disso, a mesma deve ser total, pois se a inexecução for parcial as partes devem priorizar a revisão e adequação do contrato às novas condições, tendo em vista o princípio da preservação do contrato, consagrado pelo ordenamento jurídico brasileiro. A impossibilidade há de ser, ainda, definitiva, pois se for temporária deverá acarretar somente a suspensão do contrato. Neste caso, somente se justifica a resolução [...] se a impossibilidade persistir por tanto tempo que o cumprimento da obrigação deixa de interessar ao credor (GONÇALVES, 2019, p.833).
Conclui-se, portanto, que a superveniência de acontecimento inevitável e/ou imprevisível que impossibilite a execução da obrigação pactuada não gera automaticamente a resolução contratual. As condições do contrato devem ser revisadas para se verificar a possibilidade de sua execução parcial ou adequação aos novos parâmetros impostos pelo acontecimento. Não sendo isso possível, a resolução se opera de pleno direito.
2.1.2.2 A teoria da imprevisão e a revisão ou resolução contratual por onerosidade excessiva
Embora tenha sofrido muita resistência pelos adeptos à ideologia liberal do séc. XX, a teoria da imprevisão foi ganhando espaço devido à necessidade clara de se manter uma justiça/equilíbrio contratual em tempos de tanta instabilidade global, como a ocorrência de duas grandes guerras mundiais e a potencial ocorrência de uma terceira ao longo do século, acontecimentos que provocaram graves crises econômicas em todo o mundo. O pacta stunt servanda deveria, portanto, ser repensado. (GAGLIANO, 2019)
Assim, nasce com a teoria da imprevisão a cláusula rebus sic stantibus, cláusula implícita nos contratos comutativos, de trato sucessivo e de execução diferida [...], pela qual a obrigatoriedade de seu cumprimento pressupõe a inalterabilidade da situação de fato (GONÇALVES, 2018, p.715). Se, em razão de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis houver alteração substancial na situação ou realidade fática da época em que foi realizado o contrato, tornando-se excessivamente oneroso para o adimplemento da parte, este poderá requerer a resolução ou revisão dos termos contratuais.
Praticamente ignorada pelo Código de 1916, a teoria da imprevisão e o instituto da onerosidade excessiva passaram a ser expressamente tratados no ordenamento jurídico inicialmente pelo Código de Defesa do Consumidor:
Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
[...]
V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas (BRASIL, 2020).
A sua adoção pelo Código Civil de 2002, no entanto, tem gerado muitas críticas. Não pela teoria e pelo instituto em si, mas pela forma como foram inseridos no dispositivo legal. O artigo 478, por exemplo, exige para que haja a aplicação deste fundamento não só que o acontecimento extraordinário e imprevisível torne a prestação excessivamente onerosa, mas que também traga extrema vantagem para a outra parte. Ora, a teoria portanto deve deixar de ser aplicada quando a onerosidade excessiva atinge ambas as partes?
Carlos Roberto Gonçalves acredita que o requisito da extrema vantagem para o outro contraente é inadequado para a caracterização da onerosidade, que existe sempre que o efeito do fato novo pesar demais sobre um, pouco importando que disso decorra ou não vantagem ao outro(GONÇALVES, 2018, p.835). O professor Pablo Stolze também critica a redação do texto legal, mas acredita que, se tratando de uma cláusula geral, cabe ao juiz efetivar sua aplicação de acordo com o caso concreto (GAGLIANO, 2019). Em edição atualizada por Junqueira de Azevedo e Crescenzo Marino, a obra de Orlando Gomes (2009) busca apaziguar as críticas ao dispositivo:
A lei acrescenta, em terceiro lugar, que à excessiva onerosidade da prestação seja correlata a "extrema vantagem" da outra parte. O requisito tem sido muito criticado, mas é compreensível na medida em que o fundamento da revisão e resolução por onerosidade excessiva é justamente o desequilíbrio entre as prestações, isto é, a perda de reciprocidade entre elas. E este desequilíbrio é sem dúvida mais evidente quando há, de um lado, onerosidade excessiva, e, de outro, vantagem extrema. Contudo, a apuração da extrema vantagem da parte credora da prestação tomada excessivamente onerosa não deve ser realizada com muita rigidez, sob pena de inviabilizar a aplicação da figura em análise (GOMES, 2009, p.215).
Outra crítica contundente que se faz ao Código de 2002 é por não ter priorizado a revisão em detrimento da resolução contratual. O art. 479 prevê que a resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato, ou seja, a revisão somente será possível se o réu se oferecer a alterar as condições pactuadas, o que não condiz com o princípio da conservação dos contratos e da segurança jurídica.
Em suma, há que se observar quatro requisitos para pleitear a resolução do contrato por onerosidade excessiva: 1) vigência de um contrato comutativo de execução diferida ou de trato sucessivo; 2) ocorrência de fato extraordinário e imprevisível; 3) alteração substancial da situação de fato existente no momento da execução, em confronto com a que existia à época da celebração; 4) nexo causal entre o evento superveniente e a consequente excessiva onerosidade (GONÇALVES, 2018).
Entende-se, enfim, que quando a situação não puder ser solucionada com a revisão das condições do contrato para readequá-lo à nova realidade fática, admite-se a extinção deste em decorrência do fato imprevisível e extraordinário superveniente que onerou excessivamente uma das partes. Entretanto, a ocorrência dessa desequilíbrio não dissolve o contrato de pleno direito diferentemente de como se dá nas ocorrências de caso fortuito e força maior , mas depende de declaração judicial mediante sentença.
3 PROPOSIÇÕES LEGISLATIVAS PARA OS TEMPOS DE PANDEMIA
Quando, inesperadamente, o Coronavírus chegou ao Brasil, tinha-se em mente o complicado período que viria. Quando ficou clara a fácil disseminação do vírus, com o aumento vertiginoso de casos e consequentes mortes, quem pôde se fechou em casa, adotando a quarentena.
O comércio fechou, os shoppings não abriram as portas, os ambulantes pararam de circular, os autônomos viram suas rendas diminuirem, assim como as empresas, que tiveram que demitir milhares de brasileiros. Tal fato ocorreu no mundo todo, em maior ou menor proporção.
Com a menor circulação de pessoas, a moeda começa a parar de circular e a economia decai, criando uma crise não só sanitária, mas também financeira.
Nesse aspecto, quando ficaram claros os rumos que o Brasil seguia na pandemia, se tornando o epicentro mundial, um medo se tornou recorrente, principalmente no mundo jurídico: o adimplemento dos contratos. Como as partes lidarão com os contratos em meio a tantas dificuldades passou a nortear o imaginário dos juristas.
Deste modo, na esteira de regular os contratos durante o período pandêmico, juristas passaram a discutir as implicações dos contratos, o inadimplemento, a resolução, revisão ou suspensão; colocando os Parlamentos de diversos países para pensarem em uma alternativa legislativa que reduzissem os números de quebras contratuais.
A título exemplificativo, a Alemanha aprovou, no final de março, um pacote de medidas para adaptar a legislação à pandemia, no qual interveio no Direito Civil, Empresarial, Falimentar e Recuperacional; além de outros não objetos dos contratos (RODRIGUES JÚNIRO, 2020).
No Brasil, tramitou a Proposta Legislativa n° 1.179/2020 (PL 1.179/20), de autoria do senador mineiro Antonio Anastasia, intitulada de Regime Jurídico Emergencial e Transitório (RJET). O texto normativo traz alterações significativas no Código Civil para o tempo em que perdurar a pandemia, editando normas de suspensão da prescrição e decadência, das pessoas jurídicas de direito privado, a resilição, resolução e revisão dos contratos, sobre as relações de consumo, das locações de imóveis urbanos, do usucapião, dos condomínios edilícios, além do regime concorrencial, dos direitos de família e sucessões e das diretrizes da política nacional de política urbana.
As mais substanciais alterações nas relações contratuais trazidas na PL, foram o Capítulo da resilição, resolução e revisão dos contratos (arts. 6° e 7°), e da locação de imóveis urbanos (arts. 9° e 10), que detinham as seguintes redações:
CAPÍTULO IV
Da Resilição, Resolução e Revisão dos Contratos
Art. 6º As consequências decorrentes da pandemia do Coronavírus (Covid-19) nas execuções dos contratos, incluídas as previstas no art. 393 do Código Civil, não terão efeitos jurídicos retroativos.
Art. 7º Não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos dos art. 478, 479 e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou substituição do padrão monetário.
§1° As regras sobre revisão contratual previstas no Código de Defesa do Consumidor e na Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991 não se sujeitam ao disposto no caput deste artigo.
§ 2° Para os fins desta Lei, as normas de proteção ao consumidor não se aplicam às relações contratuais subordinadas ao Código Civil, incluindo aquelas estabelecidas exclusivamente entre empresas ou empresários.
[...]
CAPÍTULO VI
Das Locações de Imóveis Urbanos
Art. 9º Não se concederá liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo, a que se refere o art. 59 da Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991, até 31 de dezembro de 2020.
§ 1° O disposto no caput deste artigo aplica-se apenas às ações ajuizadas a partir de 20 de março de 2020.
§ 2° É assegurado o direito de retomada do imóvel nas hipóteses previstas no art. 47, incisos I, II, III e IV da Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991, não se aplicando a tais hipóteses as restrições do caput (BRASIL¹, 2020).
Analisando os dispositivos, a Teoria da Imprevisão dos Contratos estaria bastante limitada com o art. 7°, visto que incluiu efeitos da pandemia como fatos previsíveis, esquecendo-se de que a pandemia tem prazo indeterminado e extensão de danos ainda incalculáveis.
Como esperado, a PL 1.179/20 foi aprovada no Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente, transformando-se na Lei n° 14.010, de 10 de junho de 2020. Todavia, o texto não foi integralmente aceito pelo Chefe do Executivo Federal, os dispositivos citados foram vetados pelo Presidente da República, com as seguintes justificativas:
Capítulo IV, arts. 6º e 7º
[...]
Razões dos vetos
A propositura legislativa, contraria o interesse público, uma vez que o ordenamento jurídico brasileiro já dispõe de mecanismos apropriados para modulação das obrigações contratuais em situação excepcionais, tais como os institutos da força maior e do caso fortuito e teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva.
Art. 9º
[...]
Razões do veto
A propositura legislativa, ao vedar a concessão de liminar nas ações de despejo, contraria o interesse público por suspender um dos instrumentos de coerção ao pagamento das obrigações pactuadas na avença de locação (o despejo), por um prazo substancialmente longo, dando-se, portanto, proteção excessiva ao devedor em detrimento do credor, além de promover o incentivo ao inadimplemento e em desconsideração da realidade de diversos locadores que dependem do recebimento de alugueis como forma complementar ou, até mesmo, exclusiva de renda para o sustento próprio. (BRASIL³, 2020)
Os vetos não foram bem vistos, uma vez que a justificativa não foi amparada pela inconstitucionalidade, mas tão somente pelas convicções do Presidente da República, sem um caráter técnico visível.
Apesar de duvidosos, os vetos manteriam a Teoria da Imprevisão dos Contratos. Desta forma entende o professor Thiago Neves, no podcast SupremoCast:
[...] o estado de calamidade instaurado é um caso fortuito ou uma força maior, seja diretamente, seja indiretamente, porque há efeitos indiretos aí [...] Por conta da pandemia, nós tivemos atos legislativos, atos executivos de governos locais, decretando fechamento de espaços, lock down, etc., e ai é fato do príncipe. E ai [...] você vai transmudar [...] a invocação, por exemplo do caso fortuito ou da coisa maior, pela pandemia em si [...] porque na verdade, por conta da pandemia, gerou-se um ato e a causa direta e imediata do desequilíbrio foi [...] um ato do poder executivo ou do legislativo que fechou [...]. Foi a pandemia em si? A pandemia levou a edição do ato que mandou fechar, então na verdade é o ato do príncipe. [...] O veto ao artigo 6° pode dar a ideia de que "olha então a pandemia não é caso fortuito ou força maior", então [...] pode gerar algumas incongruências.
Agora em relação ao art. 7°, [...] embora eu não concorde com as razões do veto, eu acho que era um dispositivo, a meu sentir, equivocado, [...] porque o art. 7° [...] fala que não se considera imprevisível aumento da inflação, variação do câmbio e alteração da moeda. Então esses 3 eventos [...] não são considerado fatos imprevisíveis. [...] a defesa que se faz é que temos uma jurisprudência consolidada de que, no Brasil, aumento da inflação, variação do dólar e mudança de moeda não é fato imprevisível. Concordo, é verdade, mas isso é dentro do nosso ambiente de normalidade, da realidade brasileira, de que o aumento da inflação é fato normal, fato esperado, variação do dólar é fato esperado, agora isso é esperado em decorrência de uma pandemia? [...] alguém imagina, como aconteceu com o dólar, que em duas semanas houve o aumento de 40% do dólar, isso é esperado? Não, então isso é um evento imprevisível. Nesse caso, eu acho que o veto ao art. 7° foi adequado, não em ponto de vista técnico, das razões do veto, mas o artigo [...] não deveria realmente ter sido mantido, porque ele ia gerar uma catástrofe para algumas pessoas, porque esses desequilíbrios repentinos causados pela pandemia são imprevisíveis. Então não dá para você aplicar aqui um raciocínio comum [...] da realidade econômica brasileira, em que de fato esses eventos são esperados, mas em caso de uma pandemia não (SUPREMOCAST, 2020).
Outro ponto que merece destaque, foi o veto do dispositivo que impedia o despejo nas ações envolvendo locação. Isto porque o momento é de grave crise econômica, o que faz com que algumas pessoas não consigam adimplir com o combinado mensal do aluguel firmado. De ressaltar que a recomendação da Organização Mundial da Saúde é para que as pessoas se mantenham em isolamento o máximo possível, de forma que um despejo vai contra tais medidas, tanto pelo movimento causado, quanto pela possível ausência de local para ir nesses casos.
Outrossim, as chances de conseguir um novo locatário em meio a pandemia, ou o despejado conseguir uma nova residência, visto sua inadimplência no imóvel anterior, são baixas dentro da situação social e financeira atual.
Conforme estipulado na Constituição, o veto presidencial foi analisado pelo Congresso Nacional, o qual achou por bem rejeitar os vetos dos arts. 4°, 5°, 7° e 9° da RJET. Assim, os dispositivos que seriam de grande importância para o momento persistem à exceção do art. 7°, que ainda enfrenta resistência dos estudiosos.
De ressaltar que a RJET gera diversas discussões no âmbito jurídico, de certo que seus efeitos poderão ser sentidos ainda em um futuro próximo, visto a suspensão dos prazos prescricionais e decadenciais, bem como dos prazos de aquisição por usucapião.
Outrossim, há discussões sobre seu período de vigência, já que a norma geral é até o dia 30 de outubro de 2020, mas vários dispositivos da lei dispõe sobre exceções à regra.
Ademais, consagrou-se a norma por não revogar nenhuma lei em vigência, tão somente alterar momentaneamente pontos aos quais são indispensáveis para a manutenção da vida civil nos tempos de pandemia.
Todavia, ainda que não tenha sido positivado, o judiciário pode, com base no caso concreto e no momento, indeferir pedidos liminares de despejo.
No sentido de minimizar os impactos econômicos que sofrem as companhias de viagens e de eventos, incluindo shows, foi editada a Medida Provisória n° 948, de 8 de abril de 2020, que dispõe sobre o cancelamento de serviços, de reservas e de eventos dos setores de turismo e cultura; em que desobriga o reembolso no caso do cancelamento desses serviços, desde que remarquem, disponibilizem crédito ou venham a formalizar outro acordo com o consumidor.
Ponto duvidoso da Medida Provisória instaura-se no art. 5°, em que caracteriza as relações de consumo como hipóteses de caso fortuito ou força maior, não ensejando assim danos morais, multas ou outras penalidades.
Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, ao analisar tal trecho, emana o seguinte ensinamento:
A relação jurídica, por definição, jamais constituirá caso fortuito ou força maior. Tais são qualificações de eventos supervenientes cujos efeitos em concreto projetam-se sobre a relação, como visto. Ainda mais grave, porém, é a inconstitucional tentativa de afastamento de direito fundamental à reparação de danos morais, por meio de Medida Provisória. A estapafúrdia previsão vai de encontro à tutela preferencial da pessoa humana e ao princípio da reparação integral. (MONTEIRO FILHO, 2020, p. 299)
Com a pandemia ainda em curso e sem expectativas de uma diminuição do registro de casos, com vacinas ainda em fase de testes, ainda que promissores, novas propostas legislativas podem surgir, mesmo para prorrogar o RJET, ou disciplinar novas demandas da sociedade.
4 RESOLUÇÃO E REVISÃO CONTRATUAL E O ADVENTO DO CORONAVÍRUS
Quando ficou claro que a pandemia causada pelo Coronavírus era realmente séria e iria se espalhar pelo país, autoridades políticas implementaram medidas para que, quem pudesse, ficasse em casa, evitando a propagação.
Assim, a sociedade se trancou e o comércio fechou, o que gerou um certo receio em quem tinham contratos não resolvidos, principalmente os de execução diferida.
De início, diversos juristas passaram a entender que a pandemia era um caso fortuito ou força maior, ou ainda poderia gerar onerosidade excessiva, a partir da teoria da imprevisão; e que, por isso, os contratos estavam sujeitos à revisão obrigatória, e não o sendo feito, à resolução
Passado o susto inicial, foi melhor refletida a questão. Se todos os contratos, que ainda não foram resolvidos pelo seu cumprimento, fossem afetados pela pandemia, instauraria uma segurança jurídica nos negócios jurídicos que abalaria ainda mais fortemente a economia.
Assim, em um segundo momento, passou-se a entender que sim, a pandemia é fato imprevisível superveniente, mas não é qualquer contrato que é diretamente influenciado por ela, de forma que nem todos podem alegar o caso fortuito, força maior ou onerosidade excessiva. Deve-se, então, analisar o caso concreto.
Os institutos que podem ser arguidos para a resolução e revisão dos contratos são: o caso fortuito ou a força maior (art. 393, CC); a onerosidade excessiva (arts. 477 e 478, CC); e a impossibilidade de cumprimento (arts. 234, 248 e 250, CC).
Ainda que sustentados, devem ser analisados com cautela, visto que as relações contratuais são fundamentais para a sociedade. deste modo, entende o professor Anderson Schreiber:
Há, nos dois casos, um erro metodológico grave, que se tornou comum no meio jurídico brasileiro: classificar os acontecimentos em abstrato como "inevitáveis", "imprevisíveis", "extraordinários" para, a partir daí, extrair seus efeitos para os contratos em geral. Nosso sistema jurídico não admite esse tipo de abstração. O ponto de partida deve ser sempre cada relação contratual em sua individualidade (SCHREIBER, 2020).
Assim, com o cuidado de verificar o caso em concreto e suas particularidades, as revisões e rescisões contratuais podem ocorrer de forma extrajudicial ou judicial.
4.1 Pela via extrajudicial
Os contratos são a máxima expressão da vontade humana. Firmado sob o princípio da pacta sunt servanda, os contratos criam obrigações, que se tornam leis entre as partes.
Assim, criado pela vontade das partes, nada mais legítimo que as partes determinem os rumos do negócio jurídico firmado. Logo, quando evidenciado a necessidade, os envolvidos no contrato devem conversar sobre os problemas que foram apresentados na execução de suas obrigações, ainda que por motivo alheio a sua vontade.
A revisão extrajudicial dos termos do contrato é então a primeira medida que deve ser tomada entre as partes, para a adequação de pontos que são sensíveis, que não podem ser executados da forma que inicialmente prevista, ou qualquer questão controversa. Assim como negociado inicialmente, pode ser adequado para que o fim não se frustre.
No caso de não haver um consenso entre as partes, podem optar pela extinção do contrato, de forma que, de acordo com os termos do contrato e as leis vigentes, podendo pagar a respectiva multa ou retornando ao estado anterior de firmado o negócio.
Por fim, caso não entrem em acordo tanto pela revisão, quanto pela rescisão, podem as partes recorrer a ajuda de um terceiro para intervenção na relação. Esse terceiro pode vir de forma extrajudicial, a partir do modelo de arbitragem, em que expõe a situação a alguém que não faz parte da relação, que julgará o fato e decidirá pelas partes.
Outro método, menos invasivo, é a mediação, em que uma pessoa irá mediar as partes para que encontrem a solução para a problemática apresentada.
No dia a dia já era possível ver que vários contratos se desentendiam com o tempo, não pareciam mais um bom negócio. Em uma situação anormal, esse sentimento pode ser ainda mais aflorado.
Mas não pode a pandemia ser, única e exclusivamente, o causador do descumprimento de contratos, deve haver um nexo causal entre as consequências da pandemia e descumprimento, revisão e mesmo extinção contratual, visto que a máxima é a conservação dos negócios jurídicos firmados.
Ainda que alegados, devem ser analisados com cuidado, para que não causa insegurança jurídica ou deixe uma das partes em grande desvantagem para com a outra.
Deve-se, como já informado, primeiro optar pela revisão do contrato, observar se há como suspendê-lo, para que possa ser cumprido no futuro, ou que, em caso de contrato diferido, novas parcelas e novos prazos sejam determinados. A extinção normal do contrato é o horizonte que não se deve perder de vista. Em último caso, apenas quando a relação jurídica restar-se insustentável, deve-se procurar a rescisão do contrato.
4.1.1Contrato Normativo
Em meio a turbulência vivida, especialmente se tratando dos contratos e seu cumprimento, surge uma nova conceituação que pode auxiliar nas demandas que preveem a revisão contratual, ou mesmo quando se deseja a extinção anormal, o contrato normativo.
Nas palavras de Erminro Ferreira Neto, "[...] contratos normativos são negócios jurídicos pelos quais as partes, desde já, pactuam as condições dos negócios que possam vir a ajustar no futuro" (FERREIRA NETO, 2020).
Nessa espécie de contrato, haverá uma hipótese fática de que, se realizado negócio jurídico, este deverá seguir as normas preestabelecidas.
Outrossim, deve-se diferenciar da figura do contrato preliminar, de origem italiana. Bem como o contrato normativo, o contrato preliminar vincula um negócio jurídico à decisões preexistentes. Todavia, nesse caso há a obrigação de construção do negócio jurídico no futuro, não somente uma mera hipótese (FERREIRA NETO, 2020).
Os conceitos devem ser melhor debatidos no Brasil, mas de início não há nada que o impeça de, principalmente durante a pandemia, instaura-se na rotina jurídica, uma vez que há dois pontos que merecem relevância:
A primeira: contratos normativos viabilizam o exercício da autorregulação para fazer frente aos problemas jurídicos que decorrem da pandemia.
Em um momento de difíceis consensos políticos no país, o manejo de contratos normativos pode viabilizar reações a este difícil período que não dependam do Poder Público. Esta fuga para o Direito Privado é uma tendência que não pode ser ignorada na formatação de soluções institucionais para a crise que já se encontra instalada entre nós.
[...]
A segunda contribuição proposta é: contratos normativos viabilizam a formação coordenada de contratos e consórcios para desenvolvimento de vacinas, medicamentos e para sua correspondente distribuição (FERREIRA NETO, 2020).
Deste modo, pautado na autonomia da vontade, tal contrato deve ser inserido no ordenamento jurídico brasileiro, para auxiliar na redução dos danos causados pela pandemia no direito privado, visto que abre uma nova possibilidade de revisão contratual, pela qual as partes compactuam um possível novo negócio jurídico.
4.2 Pela via judicial
Quando as relações sociais falham e negociação não é possível entre as partes, recorre-se ao judiciário como última instância para resolução da lide.
Nesse sentido, o judiciário tem papel residual em relações privadas, isto é, apenas o que não consegue ser resolvido na via extrajudicial chega à análise dos magistrados, visto que em toda relação privada impera a autonomia da vontade.
O legislador, compreendendo que, no Brasil, as relações privadas chegavam com muita frequência nos tribunais, editou, entre outros motivos, a Lei n° 13.874/2019, conhecida como Lei da Liberdade Econômica, que alterou o art. 421 do Código Civil Brasileiro, que passou a vigorar com a seguinte redação:
Art. 421.A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato.(Redação dada pela Lei nº 13.874, de 2019)
Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.(Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019) (BRASIL, 2002).
Restou claro que o Estado, mesmo por meio do judiciário, deve intervir o mínimo possível em relações privadas, sobretudo na excepcionalidade da revisão contratual.
Se a revisão contratual, que é mais benéfica para alcançar o fim do contrato e manter as relações jurídicas estabelecidas, é medida excepcional, de tal forma é também a resolução contratual, menos quando constatado vício de forma ou do negócio em si.
Apesar disso, o Brasil tem uma cultura jurídica forte, de modo que leva ao judiciário o conhecimento de matérias privadas, sem que os interessados discutam previamente. Tal tradição deve ser quebrada para que a mínima intervenção seja realmente aplicada.
Outrossim, ainda que chegue nas mãos do juiz, este deve analisar sob o princípio da conservação dos contratos. Em casos extraordinários como a pandemia , inequívoco é o fator de imprevisão dos acontecimentos, mas não é o simples acaso que enseja a revisão ou resolução contratual baseados no caso fortuito ou força maior e onerosidade excessiva.
De início, o magistrado deve analisar detalhadamente o caso concreto, visto que partes podem aproveitar desse momento para desfazer negócios que não foram tão vantajosos quanto pensaram.
Analisado os fatos e compreendido que o caso é passível de caracterização dos institutos descritos acima, e visto sua possibilidade, deve o magistrado optar sempre pela revisão do contrato, pelo princípio da conservação dos contratos.
Só em medida excepcional que se deve, em último caso, extinguir um contrato, e mesmo nesses casos, se observado vícios ou impossibilidade da execução, evitando utilizar a onerosidade excessiva e o caso fortuito ou força maior.
No caso da onerosidade excessiva, o Código Civil preceitua a resolução nesse caso. Ora, o próprio código confronta o princípio da conservação dos negócios, uma vez que a onerosidade excessiva pode ser, a maioria das vezes, revisado para que sejam equiparadas as obrigações.
Deste modo, bem agiria o magistrado se prezasse pelo negócio jurídico firmado e apenas revisasse a cláusula controversa.
4.2.1 Decisões judiciais
Como informado, o brasileiro tem uma cultura judiciária forte. Em pouco tempo de pandemia já haviam as primeiras decisões judiciais acerca de revisões contratuais.
Há decisões em que, analisando os fatos e a planilha financeira das partes, o magistrado entendeu pela redução do valor do aluguel, conforme indica Jonas Sales, como na 1ª Vara Federal de Curitiba, que suspendeu "[...] o pagamentos de aluguéis a Infraero referente à locação de espaço comercial no aeroporto internacional Afonso Pena" (SALES, 2020).
De mesmo modo, um restaurante em São Paulo teve o aluguel reduzido em 30%, enquanto durar a pandemia. No mesmo sentido, em Brasília, um escritório conseguiu comprovar, por planilha financeira, que a redução do aluguel do escritório no prédio onde está sediado não registra grandes perdas para o locatário, enquanto colabora com o escritório (SALES, 2020).
Todavia, o mesmo não foi possível com a Editora Abril, que, de acordo com o juiz, utilizou de argumentação genérica e absoluta para informar prejuízo, o qual não foi aceito pelo magistrado (SALES, 2020).
Mayara Osna, Murial Waksman e Haroldo Verçosa trazem outros interessantes julgados , como o da 21ª Câmara de Direito Privado do TJSP, em consumidores pretendiam a suspensão de contrato de execução continuada alegando onerosidade excessiva.
Na questão, o Desembargador Décio Rodrigues entendeu:
[...] que "não cabe redução da prestação ou alteração do modo de pagamento com fundamento na Teoria da Onerosidade Excessiva do Código Civil (art. 480 do CC), porquanto a atual retração da atividade econômica ensejada por distanciamento social não teve o condão de impor extrema vantagem para a parte ré (art. e 478 do CC), que continua sendo credora de parcela de valor igual àquele vigente antes da crise sanitária. Afirmou, ainda, não ser aplicável o disposto no artigo 317 do Código Civil, vez que não sobreveio desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução (OSNA; WAKSMAN; VERÇOSA, 2020, p. 9-10).
Na análise de casos concretos, percebe-se que o judiciário têm tido o cuidado necessário em analisar caso a caso, compreendendo o quanto a pandemia afeta diretamente aqueles que solicitam revisão ou resolução contratual, de modo que, beneficiando uma das partes, não desampare a outra.
5. CONCLUSÃO
Os contratos são a base da sociedade civil. A partir deles, os seres humanos conseguiram firmar importantes acordos e negócios. Com o tempo, as relações foram ficando mais complexas, novos institutos foram criados e os contratos passou a ser um dos elementos do direito privado.
Firmado sob a autonomia da vontade e o princípio da pacta sunt servanda, os contratos estabilizam a sociedade, geram obrigações e movimentam a economia.
Se em momentos tranquilos, as relações privadas já conseguem abduzir diversos problemas, em situações extraordinárias vários outros problemas são escancarados e a inadimplência das obrigações pode ser maior ainda.
Para isso, o Direito Civil Brasileiro detém diversos institutos para resguardar as partes do contrato que se deparam com situações inesperadas e imprevisíveis, prevendo as hipóteses de caso fortuito ou força maior, da onerosidade excessiva e da impossibilidade de execução, de forma que as partes não fiquem desamparadas .
Diante da pandemia do Coronavírus, muito se falou da aplicação irrestrita desses institutos, alegando que o simples fato da imprevisão de um vírus de fácil disseminação, juntamente com a decretação de quarentena justificaria a inadimplência dos contratos.
Entendendo, a partir do princípio da conservação dos contratos, que a quebra contratual criaria uma enorme insegurança jurídica, os juristas compreenderam que só é possível aplicar tais dispositivos quando analisado o caso concreto e verificado que a pandemia afetou diretamente as cláusulas do contrato.
Verificado-se tal ponto, é importante prezar ao máximo pela conservação dos contratos já firmados, de modo que as partes, em mais uma manifestação plena de suas vontades, renegociem as cláusulas, revisando os termos contratados.
Somente em última hipótese deve-se apelar para a extinção anormal. O fim dos contratos pode ter consequências trágicas, não só para as partes, mas para a sociedade como um todo, visto que é a perda de uma obrigação que pode girar a economia.
Outrossim, as partes devem priorizar os acordos extrajudiciais, visto que a intervenção do Estado na esfera privada deve ser mínima.
Não obstante tal preceito, o desacordo entre as partes chega ao judiciário, que vem, dentro do possível, analisando o caso concreto e verificando a ocorrência estrita dos institutos que possam gerar a revisão ou resolução contratual, não aceitando argumentações genéricas.
De tal modo, deve o judiciário priorizar pela manutenção dos contratos, optando pela revisão de suas cláusulas, de modo que as obrigações possam ser, ainda que posteriormente, cumpridas.
REFERÊNCIAS
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