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O superendividamento nas relações de consumo

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Agenda 06/12/2021 às 18:48

4. Efeitos da Pandemia Covid-19 no cenário do superendividamento no Brasil

O endividamento das famílias tem sido uma constante na sociedade de consumo atual, especialmente focada na concessão de crédito e em uma felicidade relacionada ao consumo, ideia reforçada por técnicas publicitárias agressivas que garantem o acesso ao bem- estar por meio da aquisição de bens e serviços. O superendividamento, situação extrema de endividamento crônico (WODTKE; SCHMIDT NETO, 2015, p. 40), encontra previsões no direito norte-americano (overindebtedness), alemão (Überschuldung), português (sobreendividamento) e latino-americano (sobreendeudamiento), além de ser abordado pela doutrina brasileira, de que são expoentes Marques e Cavallazzi (2006).

O superendividamento, para além de uma situação meramente econômica, é também um fenômeno social, que atinge a pessoa física que contrai crédito de boa-fé, vendo- se posteriormente impedida de quitar seus débitos e manter seu sustento e de sua família (CARPENA, 2010, p. 232). A configuração atual da sociedade é baseada no consumo, fato inegável. Entretanto, esse consumo não está atrelado tão-somente à satisfação de necessidades básicas do indivíduo. As ciências sociais têm fornecido importantes elementos para a compreensão dessa sociedade.

Baudrillard (2005) ressalta o valor de signo contido nos objetos, cuja posse confere status, e tal afirmação foi imprescindível pra as análises posteriores a respeito do consumo e da posição dos indivíduos. Assim, as mercadorias atualmente são concebidas não apenas como objetos que viabilizam a satisfação de necessidades e desejos, mas como senhas que possibilitam identidade, pertencimento e reconhecimento social, fazendo com que o consumo motor e motriz das relações sociais (HENNIGEN, 2010, p. 1177).

Bauman (1999) também relaciona consumo e exclusão. Segundo o autor, as desigualdades sociais foram aprofundadas pela sociedade de consumo, condenando todos a uma vida de opções, com a ressalva de que nem todos têm os meios de ser optantes, tornando a capacidade de consumir um critério de inclusão ou exclusão social. A sociedade de consumo interpela seus membros, julga-os e os avalia especialmente por sua conduta e capacidade enquanto consumidor. Por um lado, há os consumidores experientes, que consomem e descartam em alta velocidade e frequência e que estão sempre prontos a movimentar a economia. Por outro lado, há os consumidores falhos ou fracassados (HENNIGEN, 2010, p. 1178), que não possuem tais capacidades e condições, e para eles a exclusão é uma realidade (BAUMAN, 2007).

No Brasil, a realidade não é outra. Após anos de recessão e inflação, mudanças na estrutura social e econômica do país reduziram as desigualdades, ocasionando um aporte de consumidores ao mercado, desenvolvimento de novas empresas, crescimento de formalização de negócios e empregos, o Que indicava uma perspectiva promissora para a economia, levando o país a ser incluído no BRICS, grupo político também formado por Rússia, Índia, China e, posteriormente, África do Sul, que compartilhavam índices de desenvolvimento e situação econômica parecidas (DAQUINO; DURANTE, 2020).

Nas últimas décadas, aliado a uma política de expansão do crédito e estabilização da economia, o Brasil presenciou um aumento no número de endividados, influenciado especialmente pelo fornecimento de crédito, eis que, em uma sociedade hedonista como a brasileira, comprar se tornou uma atividade recreativa e terapêutica em que já não há mais necessidade de economizar antes de comprar (MOREIRA; BARBOSA, 2018).

Juridicamente, o endividamento se compõe pelo conjunto dos débitos de uma família, não importando se possuem origem em apenas uma dívida ou em diversas dívidas simultaneamente (situação denominada de multiendividamento). Por si só, o endividamento não é um problema quando ocorre num ambiente favorável de crescimento econômico, queda de juros e, sobretudo se não atingir camadas sociais com rendimentos próximos do limiar da pobreza (LIMA; BERTONCELLO, 2010, p. 26). Assume, entretanto, uma dimensão patológica, com repercussões econômicas, sociais, psicológicas e até médicas, quando o rendimento familiar não é capaz de suportar o cumprimento de compromissos financeiros (LIMA; BERTONCELLO, 2010, p. 27).

Assim, as consequências da falta de educação para o consumo e das práticas irresponsáveis tomadas pelos fornecedores acarretam danos tanto aos consumidores individualmente considerados quanto à sociedade como um todo, impedindo práticas menos abusivas no mercado de crédito e causando danos inclusive nas relações familiares e na saúde física e psicológica dos consumidores (LIMA, 2014). Ademais, somam-se também efeitos econômicos em termos de perda de produtividade, eis que as preocupações dos superendividados acabam por ferir sua liberdade e ocasionar uma queda de capacidade produtiva (SOARES, 2013). Esses efeitos certamente são sentidos no país, que possuía, em 2019, 63 milhões de inadimplentes, dos quais 32 milhões eram considerados superendividados (LEWGOY, 2019). Entretanto, diante da atual situação vivida pelo país e pelo planeta, há um agravamento da situação, conforme se passa a abordar.

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4.1 Pandemia e reflexos sobre o endividamento dos consumidores

A ocorrência de ondas revolucionárias que trouxeram impactos nos modos de vida e de organização político-econômica das distintas sociedades, repercutindo assim em trajetórias com formações históricas específicas, tensionadas por dinâmicas polarizadas no espaço e no tempo por tendências estruturais contrastantes, tanto, de evolução, quanto, de involução não é uma novidade. Houve ondas positivas, com expansão populacional (revolução agrícola, que permitiu ao homem a fixação em território e abandono do nomadismo; revolução industrial, que ampliou sistemas de produção e consumo; e revolução informacional, que tem alterado a conformação de uma dinâmica pós-moderna fundamentada em dinâmicas cada vez mais fluídas (TOFLER, 1981). Houve ainda ondas consideradas negativas, marcadas por uma contração populacional, marcadas por ondas bélicas e ondas de pragas e pandemias (SENHORAS, 2020, p. 31).

Atualmente, o mundo encontra-se definitivamente no segundo caso. A decretação do estado de emergência internacional, ocorrida pela 6ª vez desde 2009, demonstra uma resposta rápida da WHO à crise atual, fruto de aprendizado ocorrido nos últimos anos com a gripe aviária, MERS e SARS. (SENHORAS, 2020, p. 33). Entretanto, em que pese a importância de tais medidas, elas não são suficientes para mitigar totalmente os efeitos decorrentes da pandemia. Além de uma crise de saúde e sanitária, seus efeitos podem ser observados em todos os campos da sociedade: cultura, educação, trabalho e economia (DAQUINO; DURANTE, 2020).

Estes dois últimos, em uma união indissociável, apresentam reflexos importantes no país. Com a adoção de medidas de isolamento e a cessação acentuada de atividades laborais, o que se tem observado é uma queda no rendimento econômico da população, especialmente entre os trabalhadores da área de prestação de serviços e aqueles trabalhadores informais e autônomos. De mãos dadas com a queda no rendimento, anda a queda no consumo, motivada, entre outros fatores, pelas incertezas em relação à duração da pandemia e ao tempo necessário para a recuperação dos rendimentos (SENHORAS, 2020, p. 34).

Ademais, a queda brusca de rendimentos trouxe consigo um aumento do endividamento das famílias. Segundo a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), o endividamento das famílias atingiu 67,1% em junho, maior patamar desde que começou a ser computado, em 2010. Entre os motivos apontados para o aumento está a necessidade das famílias com ganhos de até 10 salários mínimos de recorrerem ao crédito para recompor seus rendimentos, pagar dívidas e manterem seu sustento nesse momento de pandemia (MENEZES, 2020).

O superendividamento atinge milhões de consumidores e se torna ainda mais dramático e imprevisível com a crise do Covid-19 e seus efeitos como a perda de emprego ou de fontes de renda usuais, exacerbando a vulnerabilidade do consumidor, o que exige uma atuação urgente e efetiva do Poder Público para não apenas harmonizar as relações de consumo, mas permitir o resgate dos consumidores superendividados ao mercado de consumo e, desse modo, beneficiar a própria economia nacional (MINSTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA, 2020).

Marques e Pfeiffer (2020), por seu turno, relembram que os acidentes da vida mais comum a gerarem o superendividamento são as doenças e a redução de renda e desemprego, fatores esses que se encontram combinados e potencializados na crise atual, havendo um aumento no risco de crescimento do superendividamento das famílias, especialmente porque a crise econômica tende a ser mais duradoura que a sanitária. Essa vulnerabilidade agravada dos consumidores também os torna mais propensos a aceitar ofertas de crédito desleais e excessivamente onerosas, o que demanda uma atuação firme e pontual do Poder Público na proteção da população e na manutenção do equilíbrio das relações de consumo, princípio da Política Nacional das Relações de Consumo positivado no art. 4º, III do Código de Defesa do Consumidor (DAQUINO; DURANTE, 2020). Assim, de se avaliar quais medidas podem e devem ser tomadas pelo Poder Público nesse sentido.

4.2 Políticas públicas de prevenção e tratamento do superendividamento

O direito do consumidor apresenta-se como um caminho de possibilidades para a prevenção e o tratamento do superendividamento dos consumidores, tanto na atual pandemia como nas situações regulares da vida. Entre essas possibilidades, o Projeto de Lei n. 3515/2015 apresenta-se como a mais indicada saída para a regularização da cena econômica dos consumidores e sua reinserção no mercado de consumo, o que agora se pretende demonstrar (DUARTE, 2021).

No contexto do Estado Social Democrático de Direito, pode-se depreender que as políticas públicas operam essencialmente no campo dos direitos fundamentais de segunda dimensão, também chamados de direitos sociais, uma vez que se busca uma atuação positiva do Estado para que eles sejam efetivados. Assim, deve o ente estatal empenhar-se em prol da coletividade, desenvolvendo um planejamento estratégico que envolva prioridades e metas governamentais. (SIQUEIRA JÚNIOR, 2012).

No Brasil, a elaboração do Código de Defesa do Consumidor (CDC) seguiu determinação constitucional específica do artigo 5º, XXXII da Carta de 1988, e do artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Isso porque tanto a doutrina quanto a jurisprudência da época reconheciam que o Código Civil de 1916 não correspondia mais às condições sociais e econômicas do país, considerando-se já irreversível a influência do processo de globalização nos contratos celebrados, uma vez que sua maioria se constituía de relações de consumo (PRUX, 2016, apud DAQUINO; DURANTE, 2020).

Nesse sentido, foi de Orlando Gomes a defesa por um código que estabelecesse um microssistema para as relações de consumo, em detrimento de uma grande codificação civil. (PASQUALOTTO, 2016). Assim, foi elaborado o anteprojeto do CDC por uma comissão de juristas presidida pela professora Ada Pellegrini Grinover. Promulgado em setembro de 1990, o Código assumiu papel principal no processo de renovação do direito privado brasileiro (MIRAGEM, 2019).

Entre suas conquistas, citam-se a regulação da qualidade dos produtos e dos contratos de adesão, bem como a consolidação do princípio da boa-fé nas relações entre fornecedores-experts e consumidores-leigos (MARQUES, 2016). Todavia, retomando-se as lições de Secchi (2013, p. 63), o ciclo de uma política pública deve passar também por uma avaliação. Nesse momento, examinam-se o processo de implementação e o desempenho da política pública, a fim de se verificar o estado da política e se houve redução do problema que a gerou.

No ponto, apresentam-se os desafios atuais impostos ao CDC. Isso porque, embora seja considerado visionário ao seu tempo, em 1990 não se podiam prever o crescimento exponencial das contratações à distância no comércio eletrônico, nem o fenômeno da expansão do crédito (LIMA; CAVALLAZZI, 2006). Passados 30 anos de sua promulgação, já seria esperada a necessidade de uma atualização. A conjuntura atual, no entanto, torna imperioso que se modernize a legislação consumerista como meio de enfrentar as adversidades econômicas advindas da pandemia de coronavírus.

Por fim, o encerramento do ciclo de uma política pública corresponde à sua extinção. Para tanto, existem três alternativas: (i) o problema é resolvido; (ii) o instrumento utilizado é constatado como ineficaz; ou (iii) o problema, mesmo que não esteja resolvido, perde a importância, deixando de estar na agenda. (SECCHI, 2013, p. 67) Não são hipóteses aplicáveis à realidade contemporânea do CDC, uma vez que o Código não apenas representa um marco civilizatório das relações de consumo, como também é o instrumento de combate aos novos problemas relativos ao tema. Entre eles, destaca-se o agravamento da situação de superendividamento dos consumidores em virtude da pandemia de Covid-19, motivo que tem levado setores da sociedade a se engajarem para propor políticas de mitigação desses efeitos.

Exemplo de tais iniciativas é a Proposta de Lei n. 1997/2020 (BRASIL, 2020), que institui um prazo dilatório para cumprimento, em contratos essenciais, bancários, securitários e planos privados de assistência à saúde, até o 12 de dezembro de 2020, em favor dos consumidores afetados economicamente pela pandemia de coronavírus. Dessa forma, estariam vedadas a incidência de multa, de juros de mora, de honorários advocatícios ou de outras cláusulas penais, que fossem relativas ao período desta moratória, bem como a utilização de medidas de cobranças de débitos previstas legalmente, incluindo-se a inscrição em cadastros de inadimplentes, antes das datas de vencimentos definidas (DAQUINO; DURANTE, 2020).

Trata-se de reconhecer a força maior ensejada pela pandemia de coronavírus nos contratos de consumo mencionados, o que não significa o fim da obrigação, mas somente a dilação razoável do prazo para seu cumprimento. O que se busca, portanto, é evitar o advento traumático de uma onerosidade excessiva que desequilibre economicamente os contratos de consumo. Em que pesem os efeitos positivos que o PL 1997/2020 possibilita, deve-se reconhecer o caráter pontual da medida, de alcance cronologicamente demarcado. É necessário, portanto, que se trabalhe com políticas públicas permanentes de proteção à figura do consumidor, a exemplo do PL 3515/2015 (MARQUES; BERTONCELLO; LIMA, 2020).

Sobre a autora
Tatiani Prieto de Souza

Graduanda do 10º período do Curso de Direito, pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), Itumbiara/GO.

Informações sobre o texto

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