A recente aprovação no Senado Federal da PEC dos Precatórios (PEC 23/2021) traz grandes preocupações e suscita inúmeros questionamentos sobre sua constitucionalidade. Os debates no Congresso partem de uma premissa correta e de um falso dilema. A premissa é de que é indispensável a ajuda do Estado Brasileiro às inúmeras famílias em estado de pobreza, situação essa agravada pela pandemia, estagnação da economia, políticas públicas desastrosas e incompetência gerencial do atual governo. O falso dilema: É preciso escolher entre pagar dívidas e ajudar essas famílias. Não haveria alternativa? Apenas essa solução? Estudos já demonstraram que esse dilema é falso e que a solução proposta traz mais prejuízos do que benefícios, seja pelo aumento do endividamento público, como pela queda da credibilidade do país e suas instituições.
Mesmo que verdadeiro fosse o dilema, pergunta-se: Qual a necessidade de, além do calote, um texto constitucional protegendo os compradores de precatório? Qual o benefício para as famílias necessitadas decorrente da institucionalização de garantias para atravessadores que se alimentam da desesperança das pessoas? Nenhum. Aproveitou-se o estado de calamidade para resolver um problema do mercado financeiro. Qual o problema? As pessoas não se interessavam pelas propostas de compra de precatório com deságio, pois, afinal, a União era um devedor solvente, capaz de honrar suas dívidas. Como fazê-las mudar de ideia? Tornando a União caloteira. Com todo o respeito aos poucos parlamentares que se interessaram pelo assunto e que dialogaram com estudiosos e entidades da sociedade civil, a síntese é uma só: a União se auto conceituou no texto da Constituição como caloteira; fato inédito no mundo. Dívida deve ser paga. Precatórios são dívidas derivadas de decisões judiciais que deveriam ser cumpridas. A falta de pagamento de dívida é calote.
O esforço de alguns Senadores permitiu avanços em relação ao aprovado na Câmara. Infelizmente, esses avanços não foram suficientes para evitar o enorme estrago que virá. Porém, é preciso enaltecer a rejeição pelo Senado da proposta de securitização da dívida. Tratava-se de tentativa de transferir para o mercado financeiro a cobrança de tributos, criando um risco de um orçamento oculto e de difícil controle. Além disso, o Senado propôs a inclusão no art. 6º da CF do direito a uma renda básica familiar para todo brasileiro em estado de vulnerabilidade social, ainda que seus critérios (valor, periodicidade, público-alvo) devam ser definidos em lei própria. Foi também incluída regra pela qual o espaço fiscal criado com teto de gasto está carimbado, obrigando o Executivo a usá-lo exclusivamente para fins de programas de renda mínima e custeio da seguridade social. Em ano eleitoral, essa amarra é benvinda.
Vamos à essência do texto da PEC que saiu do Senado:
a. Foi chancelada, com a inserção do art. 107-A no ADCT, a proposta do Governo Federal - já avalizada pela Câmara que cria um teto de gastos com pagamentos de precatórios até 2026. Esse teto corresponde ao valor total dos precatórios da União pago em 2016. Esse teto é, propositadamente inferior à média de gastos nos últimos cinco anos.
b. O texto aprovado no Senado reduz para 2026 a duração do calote inicialmente previsto para vigorar até 2036 na proposta original do Executivo e aprovada na Câmara. Isso, evidentemente, não evitará a formação da bola de neve que se formará com os créditos que ultrapassam o teto; na prática, apenas encurta o tamanho da montanha pela qual essa bola de neve rolará. Atenua, mas não resolve.
c. Restou mantido o valor gasto com precatórios em 2016 como referência para cálculo do teto. Em valores atuais, esse teto equivale a cerca de 44 bilhões de reais, atualizáveis pelo IPCA nos exercícios seguintes. Contraditoriamente, os precatórios deixam de ser atualizados conforme a inflação e passam a sofrer a variação da SELIC. Lembrando: SELIC = Sistema Especial de Liquidação e Custódia. Corresponde à taxa média de juros cobrados na economia brasileira. Ou seja, nenhuma relação direta com a inflação.
d. Foi proposta a inclusão no art. 6º da Constituição (inserido no capítulo dos Direitos Sociais): Todo brasileiro em situação de vulnerabilidade social terá direito a uma renda básica familiar, garantida pelo poder público em programa permanente de transferência de renda, cujas normas e requisitos de acesso serão determinados em lei, observada a legislação fiscal e orçamentária. Valor, periodicidade, público-alvo e demais requisitos serão definidos em lei própria. Não se trata de um dispositivo autoaplicável. Note-se que esse mesmo artigo 6º é o que garante a todo brasileiro lazer, saúde, segurança, moradia etc., direitos esses ainda longe de estarem efetivados em nossa sociedade.
e. Altera a data limite atual (1º de julho de cada ano) para inclusão de precatórios no orçamento público, passando para 2 de abril de cada ano. Logo, a janela para inscrição de créditos no orçamento de 2023 será menor do que nos demais anos.
f. Mantida a possibilidade de uso de precatórios adquiridos por terceiros como moeda de compra de bens, direitos, autorizações e outorgas públicas. Ficou explicitado com a expressão adquiridos de terceiros que essas opções se estendem ao mercado financeiro e intermediadores. Cabe lembrar que esse crédito adquirido por valor inferior ao inscrito no orçamento pode ser usado pelo valor de face para essas aquisições. É o mesmo que se uma pessoa comprasse um cheque de 100mil pagando apenas 50mil ao portador e usasse esse cheque para comprar um bem da União que vale 100mil.
g. Permite compensação de débitos com os valores de precatórios por parte dos entes públicos. Soa estranho a possibilidade de se usar precatórios para compensar obrigações decorrentes do descumprimento de prestação de contas ou de desvio de recursos. Ou seja, uma possível dívida decorrente de improbidade administrativa praticada por um agente poderia ser paga com valores do próprio orçamento público (os precatórios são pagos, evidentemente, com recursos públicos). É preciso ficar atento ao uso que será dado para essa permissão.
h. O texto prevê ainda que o valor anual do teto com precatórios deve ser adequado conforme a estimativa de gastos com RPVs. Portanto, se o teto em determinado ano for de 50 bilhões e a previsão de RPVs desse mesmo exercício for de 30 bilhões, restam apenas 20 bilhões para os demais créditos.
i. Estabelece uma ordem de preferência entre os créditos de origem judicial para fins de incidência do teto máximo. Serão pagos, nessa ordem, os créditos:
i. Requisições de Pequeno Valor (RPVs)
ii. Precatórios alimentares prioritários de idosos e portadores de doenças ou pessoas com deficiência.
iii. Demais precatórios alimentares até o máximo de 180 salários-mínimos.
iv. Precatórios de natureza alimentícia acima de 180 salários-mínimos.
v. Demais precatórios
j. Prevê um percentual de renúncia de 40% para fins de acordo envolvendo precatórios não pagos por conta do teto. Note-se que a CF não garante que haverá acordo. O que o artigo diz é que, em havendo acordo, o pagamento com deságio será feito. Portanto, esse acordo pressupõe concordância de todos os lados, credores, AGU e pasta econômica.
k. A redação original da Câmara previa que não haveria sequer expedição de precatórios acima do teto. O texto do Senado corrige essa anomalia, prevendo que o teto incide apenas no momento do pagamento e não na expedição. Isso evita o que seria uma despesa oculta que não seria incluída no orçamento, na medida em que sequer ocorreria expedição do precatório. Dessa forma, ao menos, fica garantida a inclusão integral das dívidas judiciais nos controles de gastos. O pagamento ... é outra coisa.
Dos avanços havidos no Senado, dois merecem especial atenção: [1] a sistemática para pagamento dos precatórios represados por conta do teto e [2] a preservação dos credores de créditos alimentares.
· O calote tem efeitos imediatos?
O texto até então em discussão não respeita os precatórios já expedidos, ou seja, afetará atos jurídicos perfeitos, pois o calote se operará já em 2022. Porém, graças a uma forte articulação de partidos de oposição, circunstancialmente, no ano de 2022 os precatórios de natureza alimentar estão preservados.
O texto do Senado retira precatórios do FUNDEF do teto de gastos. Isso é de fundamental importância para que os precatórios de natureza alimentar previstos para 2022 sejam pagos. Para que se tenha uma ideia de valores, o teto para 2022 será de R$ 44 bilhões. No orçamento de 2022 já estão previstos os seguintes tipos de créditos, conforme orientação repassada por assessorias técnicas no próprio Senado:
* R$ 20 bi em RPVs
* R$ 12 bi em precatórios preferenciais
* R$ 7 bi em precatórios do FUNDEF
* R$ 8 bi com os demais precatórios alimentares
* R$ 26 bi em precatórios não alimentares
No total, isso representa 73 bilhões, dos quais, 40 se referem a RPVs e precatórios alimentares. Retirando-se os precatórios do FUNDEF do teto, o valor sujeito a limite baixa de 73 para 66 bilhões. Estando os gastos limitados a 44 bilhões, as RPV e os precatórios alimentares (somam R$ 40 bilhões) estão preservados para 2022. O saldo de R$ 4 bi será usado para pagar uma pequena parcela dos créditos não-alimentares (que somam 26 bi). Logo, ficará para 2023 um passivo de R$ 22 bilhões.
· A insegurança dos credores de créditos alimentares e a sistemática para pagamento de precatórios represados
Os debates da semana passada demonstraram que vários Senadores externaram preocupação em corrigir um defeito na proposta original que foi sintetizado na tribuna por um parlamentar: Não podemos dar com uma mão e tirar com duas. A frase se refere ao fato de que 90% dos credores de dívidas judiciais federais são pessoas físicas com créditos alimentares pagos através de requisições de pequeno valor (RPV) [1].
Em geral, as RPVs englobam dívidas judiciais de benefícios previdenciários (INSS) ou salariais (servidores) e correspondem nos últimos anos a mais de 90% do total de credores. Portanto, são pessoas que necessitam desses créditos para sua subsistência. Não seria razoável bancar os programas sociais às custas desses credores e dos demais que esperam o pagamento de créditos alimentares. Porém, o texto final não dá segurança necessária de que essa temível hipótese não se concretizará.
Apesar do estabelecimento de uma ordem de preferência entre credores, o texto[2] ainda suscita dúvidas, pois permite interpretar que RPV e precatórios prioritários e alimentares deixarão de ser pagos para garantir o pagamento dos não-alimentares represados no ano anterior. Por outro lado, uma interpretação sistêmica pode conduzir ao entendimento de que RPVs estarão resguardadas a cada ano, inclusive porque a projeção dos gastos com esse tipo de crédito é considerada para fins de cálculo do limite de precatórios. Na dúvida, melhor seria uma redação que afirme categoricamente que os precatórios não-alimentares não pagos em ano anterior somente seriam pagos no ano seguinte depois de que sejam satisfeitos os créditos de pequeno valor, alimentares e prioritários previstos no §8º.
Portanto, o texto aprovado destoa dos discursos dos Senadores que demonstravam preocupação com os mais necessitados justamente por conta da ausência de previsão de uma prioridade efetiva a esses pequenos e numerosos credores, os quais serão preteridos pelos créditos não alimentares que ficaram para trás no orçamento anterior por conta do teto.
Ainda sobre as RPVs, cabe alertar para a possibilidade de mais um duro baque no futuro próximos, já que a definição dos limites desse pequeno valor cabe à lei ordinária, ou seja, podem ser alterados a qualquer momento com votação simples no parlamento. Ou seja, o limite atual de 60 salários-mínimos para definir uma RPV pode ser reduzido para R$ 6.433,57 (valor do teto do benefício do regime geral de previdência) que é o valor mínimo de requisições de pequeno valor previsto na Constituição. As emendas apresentadas com o objetivo de proteger esses pequenos credores através da inclusão no texto da Constituição dos atuais 60 salários-mínimos não foram admitidas, o que já sinaliza de que a preocupação com os pequenos credores pode não passar de discurso retórico.
Por fim, registre-se que o Senado aprovou a criação de uma comissão mista do Congresso com um objetivo estéril e dúbio do ponto de vista Constitucional: promover exame analítico dos atos, fatos e políticas públicas com maior potencial gerador dos precatórios e sentenças judiciais contrárias à Fazenda Pública da União. Ao mesmo texto que propõe o calote no pagamento de dívidas judiciais, chega a ser risível a afirmação de que se esteja buscando medidas legislativas a serem adotadas com vistas a trazer maior segurança jurídica no âmbito federal. Existe insegurança jurídica maior que a inclusão do calote na Constituição através do desrespeito a ordens judiciais pelo próprio réu?
[1] Fonte: Conselho da Justiça Federal - https://daleth.cjf.jus.br/atlas/internet/rpvs_precatorios.htm).
[2] Art. 107-A § 2º Os precatórios que não forem pagos em razão do previsto neste artigo terão prioridade para pagamento em exercícios seguintes, observada a ordem cronológica e o disposto no § 8º deste artigo.