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Ruído de ocasião e as limitações das decisões dos juízes

Agenda 10/01/2022 às 10:11

Por Christiano Sobral*


Você sabia que, o mesmo caso, apresentado ao mesmo juiz, em momentos diferentes, ou mesmo em horários diferentes, acabam sendo julgados de forma diferente?. Segundo pesquisas realizadas nos Estados Unidos, os juízes mudam seus julgamentos sobre um mesmo caso em mais de 50% das vezes.

Sim, isso é grave, mas também é natural. Afinal a mesma realidade foi identificada em médicos, psiquiatras e diversos outros tipos de analistas ou julgadores. Simplesmente não podemos nos isolar do efeito externo ao decidir.

Sua simples decisão de dar ou não uma esmola pode estar associada a seu estado de espírito, a um filme que acabou de ver, ou até a aparência do pedinte que bateu a sua porta. Não é por outro motivo que aumenta o número de pessoas nos sinais de trânsito brasileiro durante o período das festas de final de ano.

Quanto mais aberta a uma subjetividade, mas propensos a falhar, ou mudar, ao ser exposto ao mesmo contexto num segundo momento, nós seremos; por isso essa falha em nossa capacidade de julgar foi chamada de ruído de ocasião. O que difere, por exemplo, dos já estudados vieses cognitivos, que são uma tendência de que os julgamentos sigam sempre a mesma direção.

Por exemplo, tendemos sempre a ver pessoas mais idosas como mais sábias e honestas. Foi por isso até que me surpreendi muito ao ser assaltado por um homem que já havia ultrapassado seus 70 anos, mas guardava habilidade para transitar em uma bicicleta e para portar uma arma ao me abordar.

Ao avaliar o risco de que um transeunte venha a lhe agredir, certamente os menos idosos vão lhe gerar mais atenção; não é verdade? Isso não é um ruído, mas um viés; especificamente por se repetir da mesma forma para a maioria das pessoas.

Um ruído não tem direção certa, é apenas um desvio difícil de prever frente ao objetivo desejado. Não ocorrendo da mesma forma para pessoas diferentes, nem para a mesma pessoa em momentos diferentes.

Como já adiantei, o ruído não é parte apenas de quem tem a competência de julgar em processos judiciais, existindo forte nas decisões médicas também. Porém, neste campo, diferentes práticas já foram adotadas para minimizá-la.

Dentre elas está, por exemplo, o uso de algoritmos de inteligência artificial. Como foi o caso já alardeado do Watson da IBM, quando foi treinado para diagnosticar câncer de pele, e hoje vários outros robôs que fazem pré diagnósticos. Ferramentas que, fazendo uso de um viés humano - o da ancoragem - reduzem a possibilidade de que um médico julgue o resultado de forma muito distinta da máquina.

Na ancoragem, a informação recebida por quem deve decidir impregna e conduz a direção da decisão. Sendo, por exemplo, o motivo pelo qual quem fala um valor por primeiro em uma negociação, conduz a direção que ela toma.

Mas não é só por inteligência artificial que a medicina busca se proteger; ela também usa opções como fragmentar uma análise e se beneficiar da sabedoria das multidões. A primeira opção é, por exemplo, a usada por pediatras para medir a saúde de um recém nascido, havendo cinco características objetivas que elas precisam avaliar; como batimentos, temperatura corporal e até cor da pele. Isso, por si só, reduz o ruído ao dar valoração objetiva a cada característica observada.

Já a sabedoria das multidões está associada ao fato de que, a média de vários julgamentos é, no fim, mais acurada que o julgamento de um só especialistas. Sendo por esse motivo que, quando há um maior risco envolvido para o paciente, não é incomum formar uma junta médica, ou ser indicada a busca por uma segunda opinião.

Mas e dentro do universo da justiça, o que existe para combater esses ruídos? Será que estarei errado se eu afirmar que a resposta mais provável é nada?!

Nosso formato de atuação jurídica continua pautada em uma tecnologia da época da Roma antiga, ou talvez até seja mais justo dizer que ainda tem muito da época dos grandes faraós do Egito. Passagens bíblicas como a de Salomão e a disputa por um filho ainda guardam grande semelhança com o que ocorre em algumas varas cotidianamente.

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Será que já não estaríamos vivendo o momento de repensarmos esse formato? Será que as tecnologias disponíveis e os conhecimentos atuais não poderiam nos ajudar a criar um novo modo de gerar decisões judiciais?

Da mesma forma que a medicina incorporou esforços para redução dos ruídos a que era exposta, acredito que o judiciário deveria buscar caminhos semelhantes. Por exemplo se beneficiando da sabedoria das multidões; como abordamos antes.

Sim, se obtém tal efeito quando mais de uma pessoa julga um mesmo caso e, a partir do resultado de cada um, se extrai uma média para adotar como melhor opção; mas não é o equivalente ao uso permanente de jurados. Isso simplesmente por, para um correto julgamento e um resultado ponderado ideal, todos os participantes deveriam ter a mesma capacidade prévia de julgar; o que não ocorre quando se escolhe um grupo de pessoas comuns.

Neste ponto, a tecnologia poderia ajudar. Nós mesmos já desenvolvemos uma ferramenta que é capaz de, com 98% de assertividade, entender as decisões judiciais. Facilmente poderíamos treinar essa inteligência artificial para, por exemplo, separar e agrupar decisões a partir de temática semelhantes. O que poderia gerar, para o juiz, uma visão e efeito do alcance a sabedoria da multidão; só que seria de juízes, não de pessoas comuns.

O efeito imediato poderia ser a redução da variabilidade das decisões judiciais sobre casos equivalentes, o que ferramentas como o IRDR já tentam fazer, mas não conseguem o alcance que algoritmos poderiam gerar. O poder de decisão não estaria sendo retirado do juiz, mas uma nova camada lastro para sua escolha estaria sendo gerada.

Um outro passo, a exemplo do já presente na medicina, também poderia ser adotado: o de decomposição de um julgamento em partes diferentes. Ao invés de julgar um todo de pronto, analisar cada caso em partes separadas, por meio de atribuição de peso a cada condição distinta; podendo tanto ser definido o resultado de cada parte pelo juiz diretamente, quanto com ajuda de softwares.

Por exemplo, ao julgar quando o bem vida supera o direito de negar o atendimento por um plano de saúde a um problema psiquiátrico, a decisão poderia ser decomposta em: analisar a oferta de cobertura do plano, o nível de necessidade do paciente, a capacidade econômica do mesmo e a localização geográfica da família deste frente a disponibilidade com cobertura apresentada pelo plano. Só com uma ponderação destas variáveis de forma objetiva, colocada para o julgador, sendo possível gerar uma decisão final.

Uma vez que toda essa parte objetiva fosse realizada por uma máquina e apresentada ao juiz já como uma análise indicativa da decisão, esse teria maior possibilidade de julgar sobre um menor efeito do ruído de ocasião. Isso por já ser do conhecimento da psicologia que, cada vez que olhamos um caso, ainda que semelhante a um anterior, adotamos pesos diferentes as mesmas variáveis, o que nos faz ceder aos efeitos externos ao decidir. Aja vista estudos realizados em Israel que já demonstrou que, quanto menor o nível de glicose no sangue, mais dura será a decisão de um juiz.

Ou seja, existe espaço para, com uso eficiente e estudado do que existe de mais atual em inteligência artificial, conseguir se criar um modelo alternativo de funcionamento do judiciário. Provavelmente mais justo, eficaz e coerente do que o que temos hoje. Isso tudo sem retirar daquele que tem a responsabilidade por dar a palavra final o poder que lhe é atribuído.

Não temos mais como frear a tecnologia, mas também não devemos baixar completamente a cabeça para ela. Mas não significa que não devamos usá-la para tornar nossa atuação como operadores do direito cada vez melhores.

*Christiano Sobral é Diretor Executivo do Urbano Vitalino Advogados, Law Master em Direito Digital, mestre em Estratégia e especialista em marketing, finanças, economia e negócios. Advogado, administrador e programador. 

Sobre o autor
Urbano Vitalino Advogados

Escritório com mais de 80 anos de história, especializado em advocacia empresarial

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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