A Lei nº 10.741/03, mais conhecida como Estatuto do Idoso, que passou a vigorar em 1º de janeiro de 2004, garante a todos com idade igual ou superior a 60 anos proteção legal especial, a fim de assegurar-lhes "todas as oportunidades e facilidades para a preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade" (art. 2º, in fine).
No art. 3º, a referida lei estabelece, ainda, ser dever da família, da comunidade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, dentre outros direitos, a efetivação do direito à vida, à saúde, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar.
Contudo, antes da vigência dessa lei, o Código Civil brasileiro já atribuía uma condição "especial" ao idoso, impondo-lhe a obrigatoriedade do regime de separação de bens no casamento.
Mas qual a razão dessa obrigatoriedade?
Decerto, tal dispositivo tem como objetivo a proteção do patrimônio das pessoas idosas que se casam com indivíduos mais jovens, os quais, muitas vezes, não o fazem por afeto, mas apenas por interesse em um eventual proveito econômico.
Todavia, valer-se dessa premissa para justificar a imposição desse regime no ordenamento jurídico é uma medida completamente desarrazoada e desprovida de equidade. É o que veremos a seguir.
Da Condição de Idoso e os Princípios Constitucionais
A dignidade da pessoa humana é um princípio fundamental da República Federativa do Brasil, assegurando ao homem o papel de protagonista nas preocupações do Estado. Mais que um princípio, a dignidade da pessoa humana é um superprincípio, que irradia sua força sobre os demais e sobre todo o ordenamento jurídico.
Sendo assim, o leque de direitos e garantias fundamentais deve ser interpretado de forma a dar efetividade a esse princípio. Dessa forma, quando se fala em direito à vida, não se pode restringir o conceito apenas à condição biológica, pois, mais do que isso, esse direito diz respeito a uma vida digna, com todas as suas implicações.
O Estatuto do Idoso, ao conferir proteção especial aos que se encontram na "melhor idade", busca dar efetividade ao princípio da isonomia ("tratar desigualmente os desiguais"), lembrando a todos – sociedade e Poder Público – que os idosos também fazem jus a uma vida digna, não devendo ser esquecidos à margem da inclusão social.
O que o diploma legal visa coibir é o preconceito que as pessoas mais velhas sofrem, sobretudo no acesso ao trabalho, ao lazer e à saúde. É por essa razão que a proteção especial se justifica – e não por se imputar ao idoso qualquer tipo de incapacidade.
Ao contrário, nos tempos modernos, o "peso da idade" se manifesta cada vez mais tarde. A crescente preocupação com a saúde física e mental, o maior acesso à informação e o culto à vaidade são fatores que favorecem o retardamento de uma eventual senilidade.
Do Princípio da Razoabilidade das Normas
Por possuírem caráter geral e abstrato, as normas são incapazes de abranger todas as situações possíveis no mundo dos fatos. Por essa razão, para vinculá-las à realidade e torná-las plausíveis e aplicáveis, o legislador deve observar, em sua elaboração, o princípio da razoabilidade.
Conforme o ensinamento de Humberto Ávila:
"O dever de razoabilidade impõe a observância da situação individual na determinação das consequências normativas. (...) A razoabilidade traduz uma condição material para a aplicação individual da justiça". 1
As normas jurídicas, ao prescreverem direitos e obrigações, devem ter seu conteúdo formulado com racionalidade, justa medida e adequação aos seus fins. A ausência desses requisitos pode conduzir a aberrações normativas, seja por falta de congruência, seja pelos exageros e absurdos intransponíveis para o mundo dos fatos.
Desse modo, nas palavras de Antônio José Calhau de Resende:
"As razões que justificam a utilização de bom senso e moderação pelo legislador são óbvias e necessárias". 2
Outro não é o posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF):
SUBSTANTIVE DUE PROCESS OF LAW E FUNÇÃO LEGISLATIVA: A cláusula do devido processo legal - objeto de expressa proclamação pelo art. 5º, LIV, da Constituição - deve ser entendida, na abrangência de sua noção conceitual, não só sob o aspecto meramente formal, que impõe restrições de caráter ritual à atuação do Poder Público, mas, sobretudo, em sua dimensão material, que atua como decisivo obstáculo à edição de atos legislativos de conteúdo arbitrário. A essência do substantive due process of law reside na necessidade de proteger os direitos e as liberdades das pessoas contra qualquer modalidade de legislação que se revele opressiva ou destituída do necessário coeficiente de razoabilidade
(ADI-MC 1063 / DF – Rel.: Min. Celso de Mello, Julgamento: 18/05/1994) (grifo aditado)
A norma que não observa o princípio da razoabilidade viola o devido processo legal substantivo, de modo que, mesmo atendidos todos os requisitos formais de sua elaboração, apresenta um vício material de constitucionalidade.
A Irrazoabilidade do art. 1.641, II do Código Civil
Como dito anteriormente, a senilidade é uma condição cada vez mais tardia nos dias atuais. Segundo dados do Censo Demográfico realizado pelo IBGE em 2000, mais de 8% da população era formada por idosos, sendo boa parte deles provedores de seus lares, com uma renda média que equivalia a pouco mais de três salários mínimos. 3
Diante dessa realidade, é natural que muitos idosos – viúvos, separados, divorciados ou mesmo solteiros – queiram refazer suas vidas e encontrar um novo companheiro, dando uma nova chance ao amor e, muitas vezes, a si mesmos.
O desejo de estabelecer uma comunhão de vida baseada no afeto e na colaboração mútua é inerente à maior parte dos seres humanos, independentemente da idade.
No Brasil, com a expectativa de vida média de 71,3 anos, é muito comum que esse desejo surja após os 60 anos.
A pergunta que se faz, então, é: é justo retirar do cidadão, a partir dos 60 anos, o direito de escolher o regime de bens pelo qual deseja se casar?
A imposição do regime de separação obrigatória de bens ao maior de 60 anos revela-se completamente equivocada, pois parte de premissas falsas. A primeira delas é a de que o novo casamento ocorrerá entre pessoas de idades muito distintas e por um provável interesse econômico. A segunda é a de que, na constância desse casamento, não haverá esforço comum para a aquisição ou preservação do patrimônio do casal.
A presença desse dispositivo no Código Civil brasileiro alça o idoso à condição de incapaz, violando, assim, os princípios da isonomia, da dignidade humana e da autonomia da vontade.
Conforme brilhantemente explana Rolf Madaleno, "estabelecer o regime compulsório de separação de bens aos maiores de 60 anos é ignorar princípios elementares do Direito Constitucional":
"Em face do direito à igualdade e à liberdade ninguém pode ser discriminado em função do sexo ou idade, como se fossem causas de incapacidade civil. Atinge direito cravado na porta de entrada da Carta política de 1988, cuja nova tábua de valores coloca em linha de prioridade o princípio da dignidade humana" 4
Todavia, a irrazoabilidade da medida não se limita a esse aspecto. Adotando a máxima de "dois pesos, duas medidas", o legislador não fez qualquer ressalva ao maior de 60 anos que desejar estabelecer sua comunhão de vida por meio da união estável. Aos companheiros, independentemente da idade, é assegurado o direito de optar pelo regime da comunhão parcial de bens ou por qualquer outro estabelecido em contrato de convivência.
É a Constituição Federal quem estabelece:
"É reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento." (Grifo adicionado.)
Como se vê, a Carta Magna estimula a oficialização das uniões afetivas entre homem e mulher. Como pode, então, uma norma infraconstitucional caminhar em sentido contrário? Pois não é outro o rumo tomado pelo Código Civil, no art. 1.641, inciso II, em clara e irrefutável inconstitucionalidade material.
Um Lume de Razoabilidade
Na mitigação da incoerência contida no inciso II do art. 1.641. do Código Civil, o intérprete tem um consolo: a Súmula 377 do STF. De acordo com ela:
"No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento."
O objetivo dessa súmula, aprovada em 1964, é garantir a partilha dos aqüestos adquiridos pelo esforço comum na constância do casamento, impedindo, assim, o enriquecimento ilícito de um dos cônjuges.
O que se percebe é que, desde a vigência da lei civil anterior, o Supremo Tribunal Federal já buscava dirimir os efeitos nefastos do regime de separação obrigatória de bens – orientação que, lamentavelmente, não foi seguida pelo legislador da nova codificação.
Vale destacar esta decisão de 1975:
1. Alemães casados pelo regime da separação de bens de acordo com a lei nacional de ambos, que se radicaram no Brasil após o casamento. Se o marido e a mulher se mantiveram sempre unidos e conjugaram esforços para levar a cabo a formação do patrimônio comum, ainda que a cooperação da esposa tenha sido limitada ao trabalho domestico, tem ela indiscutivelmente o direito, até mesmo natural, de compartilhar daquele complexo de bens, como dispõe o art. 259. do código civil. Não importa que o marido e a mulher sejam estrangeiros e hajam celebrado o casamento pelo regime da separação de bens, nos termos da lei nacional de ambos, porque, no pormenor da comunhão dos aqüestos, o importante e decisivo é o esforço comum e construtivo desenvolvido pelo casal no domicilio em que ele construiu ou formou o patrimônio pelo trabalho constante e conjugado do marido e da mulher. Trata-se de uma realidade que o direito positivo se limita a homologar, tão difícil é sua negação. 2. Recurso extraordinário provido, nos termos do verbete 377 da súmula do STF.
(RE 78811 / GB Relator(a): Min. Antonio Neder Julgamento: 29/04/1975)
A despeito da indiferença do legislador de 2002 em relação à Súmula 377, não se pode afirmar que ela tenha perdido sua vigência. As mesmas razões que sempre motivaram sua aplicação ainda se configuram nos dias atuais. Senão, vejamos:
DIREITO CIVIL. REGIME LEGAL DE SEPARAÇÃO LEGAL DE BENS. AQÜESTOS. SÚMULA 377. ESFORÇO COMUM. 1. A viúva foi casada com o de cujus por aproximadamente 40 (quarenta) anos, pelo regime da separação de bens, por imposição do art. 258, parágrafo único, I, do Código Civil de 1916. 2. Nestas circunstâncias, incide a súmula 377 do Supremo Tribunal Federal que, por sinal, não cogita de esforço comum, presumido neste caso, segundo entendimento pretoriano majoritário. 3. Recurso especial não conhecido.
(STJ - REsp 154896 / RJ ; Relator(a) Ministro Fernando Gonçalves Data do Julgamento 20/11/2003)
No mesmo sentido, destaca-se uma decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, relatada pela douta Desembargadora Maria Berenice Dias:
SEPARAÇÃO JUDICIAL LITIGIOSA. CULPA. Já se encontra sedimentado nesta Câmara o entendimento de que a caracterização da culpa na separação mostra-se descabida, porquanto o seu reconhecimento não implica em nenhuma seqüela de ordem prática. PARTILHA. SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS. SÚMULA 377 DO STF. A partilha igualitária dos bens adquiridos na constância do casamento celebrado pelo regime da separação obrigatória de bens se impõe, a fim de evitar a ocorrência de enriquecimento ilícito de um consorte em detrimento de outro. Busca-se, outrossim, a justa e eqüânime partilha do patrimônio adquirido mediante o esforço comum, e que muitas vezes são registrados apenas no nome de um dos cônjuges. Aplicação da Súmula 377 do STF. Afastada a preliminar do recorrido, apelo provido em parte.
(Apelação Cível Nº 70007503766, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Berenice Dias, Julgado em 17/12/2003)
A Súmula 377 do STF, cuja vigência não pode ser questionada, é, portanto, mais um argumento que corrobora a inconstitucionalidade material do art. 1.641, inciso II, do Código Civil.
Conclusão
"Devia-se nascer velho, começar pela sabedoria, para decidir o seu destino" (Ana Blandiana)
A imposição do regime de separação de bens no casamento do maior de 60 anos, prevista no Código Civil, é nitidamente atentatória aos princípios constitucionais da liberdade, da isonomia e da dignidade da pessoa humana. Como se não bastassem os dispositivos constitucionais fundamentais, após a promulgação da nova lei civil, o Estatuto do Idoso ratificou o repúdio a qualquer tipo de preconceito contra aqueles que já atingiram a "melhor idade".
Além disso, baseado em presunções errôneas, o art. 1.641, inciso II, do Código Civil é desprovido de racionalidade, razoabilidade e equidade, sendo maculado por uma autêntica inconstitucionalidade material.
Aos idosos que não desejam percorrer o árduo caminho de um processo judicial para ver reconhecido seu direito de escolha, resta a opção de constituir uma união estável, com regime de bens legal ou disciplinado em contrato de convivência.
Bibliografia
ÁVILA, Humberto. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, v. I, nº. 4, julho, 2001.
___________. Teoria dos Princípios da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 6ª ed. revista e ampliada. São Paulo: Malheiros, 2006
MADALENO, Rolf. Do Regime de Bens entre os Cônjuges. In: Maria Berenice e PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coord.) Direito de Família e o Novo Código Civil. DIAS, 4. ed. rev. atual. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p.191
RESENDE, Antônio José Calhau de. O princípio da razoabilidade dos atos do poder público. In: Revista do Legislativo ALMG, Belo Horizonte, n. 26. abr-dez 1999. Disponível em https://www.almg.gov.br/revistalegis/Revista26/calhau26.pdf. Acesso em 01 mar. 2007
Notas
1 A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, v. I, nº. 4, julho, 2001.
2 O princípio da razoabilidade dos atos do poder público. In: Revista do Legislativo ALMG, Belo Horizonte, n. 26. abr-dez 1999. Disponível em https://www.almg.gov.br/revistalegis/Revista26/calhau26.pdf. Acesso em 01 mar. 2007
3 Fonte: www.ibge.gov.br
4 Do Regime de Bens entre os Cônjuges. In: Direito de Família e o Novo Código Civil. 4. ed. rev. atual. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p.191