INTRODUÇÃO
A sistemática intervenção antrópica na integridade ecológica dos ecossistemas naturais, ultrapassando todos os seus limites e capacidade de regeneração, é fonte de adoecimento e crises ambientais sistêmicas, favorecendo o surgimento de pandemias de origem zoonóticas, tais como o novo coronavírus (SARS-CoV-2) maior desafio do século XXI para a sociedade global.
Igualmente, as desigualdades ambientais e condições socioeconômicas mais restritivas dos grupos vulneráveis formados em sua maioria por pessoas negras1 , somada a falta de coordenação na execução das políticas públicas para lidar com a pandemia, exacerbam os riscos comunitários, contribuindo para disseminação e aumento da mortalidade da doença, sobretudo em detrimento dessa população.
Segundo previsão constitucional, a todos é garantido o direito ao mínimo existencial socioambiental, condição para viver com dignidade. Logo, diante da omissão, ou atuação insuficiente do poder público no exercício de seus deveres nucleares, essa obrigação pode e deve ensejar a intervenção e o controle judicial.
Pobreza e degradação ambiental como face de uma mesma moeda
A despeito da dimensão global da maioria dos problemas ambientais (a exemplo das mudanças climáticas), suas consequências atingem as pessoas distintamente, existindo uma estreita relação entre a falta de qualidade ambiental e situações como a discriminação racial e a pobreza.
Esse contexto de injustiça ambiental é ainda mais ampliado em situações de crises, como a atual pandemia da Covid-19, onde os mais vulneráveis precisam acrescentar à sua gama de batalhas diárias as adaptações às condições impostas pela pandemia. De acordo com Judith Shklar (1992, p. 87), a desigualdade é a fonte e a origem da injustiça, um elemento central do risco comunitário.
Portanto, falar da pandemia sob a lente da justiça ambiental é evidenciar que as contaminações e óbitos atingem de modo desproporcional as populações em situações de crônica fragilidade socioambiental.
Esses grupos dispõem de menos condições de se fazerem ouvir no espaço público, não tendo oportunidade de colocar em pauta os efeitos da desigual distribuição da poluição e da proteção ambiental (VERCHICK, 2019, p. 98).
Em regra, a degradação ambiental e a injustiça social interagem entre si, violando por duas vias distintas a dignidade das populações mais pobres (FENSTERSEIFER, 2008, p. 77). Em consequência, são as vítimas principais dos riscos ambientais. Essas condicionalidades se acumulam e se inter-relacionam em um cenário de crise sanitária como no caso da pandemia da Covid-19 e precisam ser consideradas no seu enfrentamento. Não é por outro motivo, consoante Pérez Bustamante (2007, p. 36-37), que a degradação ambiental se reflete com maior intensidade na saúde e na segurança daqueles que vivem na linha de pobreza.
O conceito de injustiça ambiental surge exatamente para designar o modo pela qual as sociedades desiguais, do ponto de vista socioeconômico, destinam parcela desigual das consequências ambientais negativas, bem como de operações econômicas, das decisões políticas e dos programas de política pública - ou da ausência ou omissão de tais políticas - às populações de baixa renda, grupos étnicos discriminados, populações marginalizadas e vulneráveis (HERCULANO, 2008).
Por fim, resta compreendido que o próprio poder político e econômico influencia na tomada de decisões excludentes, impondo aos grupos fragilizados socialmente - limitados em sua capacidade de organização e exercício de pressão política sobre as autoridades - uma parcela maior dos custos e dos riscos ambientais.
Mínimo existencial socioambiental
O mínimo existencial corresponde ao núcleo essencial dos direitos humanos fundamentais, destinados a assegurar as condições indispensáveis à subsistência da pessoa e ao exercício pleno de suas liberdades, razão pela qual não pode ser relativizado. Está intimamente ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana, consistente no reconhecimento de que todos são importantes e merecedores do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade.
Segundo Bosselmann (2020, p. 82), desde que a Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano, em 1972, estabeleceu uma ligação entre a degradação ambiental e o gozo dos direitos humanos, a dimensão ambiental dos direitos humano é reconhecida no direito internacional e em muitas jurisdições nacionais.2
Igualmente, a Constituição Federal de 1988 buscou contemplar em um mesmo projeto político os três pilares do desenvolvimento sustentável: erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais (artigo 3º, I e II), o estabelecimento de uma ordem econômica sustentável (artigo 170, VI) e o dever de tutela ecológica atribuída ao Estado e a sociedade (artigo 225, caput) (WINTER, 2009, p. 2).
Destarte, infere-se que o mínimo existencial socioambiental é o conjunto de bens - materiais e imateriais hábil a garantir condições mínimas de subsistência, sem riscos à vida e à saúde da população ou de danos irreparáveis ao meio ambiente, consistente nos direitos e nas garantias fundamentais elencados na CF/88 (STEIGLEDER, 2017).
Todavia, o mínimo existencial - indispensável para viver em condições de dignidade não se confunde com o mero mínimo vital ou mínimo de sobrevivência, e sim ao indispensável para viver uma vida plena (SARLET; FENSTERSEIFER, 2020, p. 30).
Portanto, para o objetivo deste artigo - que busca analisar a injustiça no contexto da Covid-19 - entre os direitos socioambientais básicos que vem sendo violados de forma sistemática, contribuindo para a contaminação e o aumento do número de mortes entre a população mais vulnerável, insta ressaltar a importância do direito à saúde e ao saneamento básico como componentes do mínimo existencial. Em comunidades carentes, a ausência desses direitos - realidade para a maioria dessa população -, agora contribui para a ampliação do quadro de iniquidades, entre eles o vital direito de viver.
Pandemia do Covid-19: desastre físico de caráter biológico desencadeado pela degradação dos ecossistemas
Um aspecto importante para o desenvolvimento desse estudo é identificar a natureza jurídica da pandemia e, a partir daí, ter substratos para avaliar as consequências jurídicas que lhe são correlatas. Délton de Carvalho (2020), ao se debruçar sobre o tema, afirma que A partir da confrontação do evento pandemia aos três cenários conceituais possíveis de desastre, esta enquadra-se juridicamente como um verdadeiro desastre físico, de caráter biológico.
Forçoso reconhecer que a relação entre desastre e vulnerabilidade é de dependência. Ou seja, não há desastre sem vulnerabilidade. Eles são o produto de urbanização desordenada, mudanças climáticas e má gestão dos recursos naturais, corroborado por políticas públicas equivocadas ou mal coordenadas.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) o novo coronavírus tem origem zoonótica - transmitidos de animais para pessoas. Igualmente, em um relatório de 2016, divulgado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (UNITED NATIONS ENVIRONMENT PROGRAMME , 2016), sobre as questões e problemas ambientais globais emergentes, foi descrito um aumento mundial no surgimento de doenças e epidemias, particularmente de zoonoses. As doenças zoonóticas são constantemente associadas a mudanças ou a distúrbios ecológicos, numa relação direta entre a degradação dos ecossistemas e o surgimento e a difusão dos patógenos da vida selvagem para humanos. Ou seja, as pandemias não são produtos da natureza, e sim da ação humana predatória sobre a natureza.
Portanto, caso a trajetória de degradação ambiental e a consequente redução dos habitats naturais permaneçam em curso, a frequência em que surtos epidêmicos veem ocorrendo, continuará a aumentar, e cenários de lockdown e/ou distanciamento social poderão, cada vez mais, compor o cotidiano da vida humana (PATZ, 2004).
Aproximadamente 60% de todas as doenças infecciosas em humanos têm origem zoonótica, havendo, em média, o surgimento de uma nova doença infecciosa em humanos a cada quatro meses. Nos anos recentes, houve o surgimento de várias doenças zoonóticas, tais como a AIDS, o Ebola, a gripe aviária, a MERS, a SARS, o Zika vírus, entre outras. As zoonoses são verdadeiras ameaças ao desenvolvimento econômico, à integridade dos ecossistemas, assim como ao bem-estar animal e humano (UNITED NATIONS ENVIRONMENT PROGRAMME, 2016).
Todavia, diferentemente das pandemias anteriores, a Covid-19 se disseminou rapidamente por todos os países, obrigando a decretação de uma quarentena em escala global. Hoje, grande parte da humanidade está em confinamento obrigatório. As fronteiras externas foram fechadas e os controles internos instalados, exigindo o isolamento e o distanciamento social (SVAMPA, 2020).
Não há que se olvidar que a sistemática intervenção humana na integridade ecológica do Planeta Terra, ultrapassando todos os seus limites e a sua capacidade de autorregulação e resiliência, foram preponderantes para que o mundo chegasse ao ponto em que se encontra.
Infelizmente, o sistema planetário encontra-se imerso em um contexto de ameaças que vai muito além dos riscos virais. Catástrofes já estão surgindo no horizonte ou mesmo acontecendo: secas, ondas de calor, tempestades fora de controle, etc. Assim, na era em que se aproxima, os desastres virão não como espiões isolados, mas em batalhões, como resultado de alterações interligadas nos sistemas físicos e ecológicos [...] (FARBER, 2019, p. 41).
Diante disso, é preciso reconhecer que, se há um inimigo, ele não é o vírus e sim o que possibilitou que ele passasse a infectar humanos, ou seja, as relações predatórias existentes entre natureza e capitalismo. Apesar de essa compreensão ser voz corrente nas redes sociais, em artigos e reflexões, conforme salientado por Maristella Svampa (2020), ela não entrou na agenda política dos países. Ao contrário, essa cegueira epistêmica está permeada por metáforas bélicas e pela ideia de que se trata de uma guerra contra um inimigo invisível.
Ledo engano. Existe sim uma guerra imediata a ser vencida, malgrado ela não pode ser travada nos tradicionais campos de batalha, e sim através do fortalecimento dos laços de solidariedade comunitária e da valorização do conhecimento científico. Enquanto não se focar as ações na raiz do problema, no modo como o ser humano vem lidando com a natureza, nada mudará, havendo uma grande probabilidade de que outras pandemias surjam, derivadas degradação ambiental e da multiplicação dos males advindos das mudanças climáticas.
Em complemento, faz-se indispensável obstar a proliferação de notícias falsas (fake news) e o negacionismo obscurantista, responsável pelo atraso no combate à doença - com especial destaque para a demora da compra de vacinas3 - e pelo fomento na guerra de narrativas que polariza a política, contribuindo para o prolongamento da pandemia.
Enfim, a pandemia da Covid-19 não é castigo divino, fruto do acaso e, tampouco um infortúnio, e sim uma consequência direta das ações humanas, convidando a todos a refletirem sobre um novo pacto ecossocial e econômico, que aborda conjuntamente a justiça social e ambiental. Um novo paradigma jurídico ecocêntrico que reconheça o ser humano como parte de um todo. Se o fim da crise coincidir com uma volta plena ao mundo que tínhamos, estaremos fadados a novas epidemias (NURIT, 2020).
As diferenças dos barcos na tempestade da Covid-19
Embora se diga que o novo coronavírus seja um vírus democrático, atingindo igualmente ricos e pobres, a realidade demonstrou que a pandemia se alastrou e vem sendo combatida de formas diferentes, e que suas consequências - inclusive representada pelos altos índices de mortalidade -, são heterogêneas, recaindo desproporcionalmente em detrimento das populações vulneráveis. Ou seja, a pandemia do coronavírus escolhe como suas vítimas preferenciais aqueles que não podem parar de trabalhar e vivem em condições precárias (PINHEIRO-MACHADO, 2020).
As vulnerabilidades - tanto físicas quanto sociais - são produto de uma sociedade desigual, que permite o crescimento despercebido de uma classe inferior em uma nação comprometida com a liberdade e a democracia, configurando uma violação fundamental da obrigação para com os seus cidadãos (VERCHICK, 2019).
No Brasil, um dos países mais desiguais do mundo, a pandemia atinge duramente os mais pobres. Metade da população vive com uma renda média de cerca de R$ 400 reais e em condições precárias de moradia, sem saneamento básico como esgoto e água potável. O Sistema Único de Saúde (SUS) atende mais de 190 milhões de pessoas, sendo que 80% delas dependem exclusivamente dele para qualquer atendimento de saúde (OXFAM BRASIL, 2020).
É bem verdade que o vírus, em princípio, não escolhe classe, raça e gênero. Ele simplesmente se espalha entre partículas e superfícies, de um corpo para o outro. Contudo, o modo como os corpos estão dispostas no mundo variam de acordo com marcadores sociais de desigualdade. O mesmo sistema que permite que boa parte da população sequer tenha acesso aos serviços básicos de saneamento é o mesmo que isola as pessoas ricas (em termo de renda, poder, educação) e lhes proporcionam um eficiente sistema de saúde.4
De vital importância o estabelecimento de políticas públicas que atuem de modo eficiente para reduzir essa insegurança. Entre elas as políticas de transferência de renda - condição necessária para o cumprimento do isolamento social - tendentes a reduzir a desigualdade na exposição ao risco da doença. Infelizmente, isso não vem ocorrendo de modo satisfatório no Brasil, resultante da falta de coordenação na execução das políticas públicas para lidar com a pandemia e do impasse entre preservar vidas ou a economia.
Outro ponto que não pode ser negligenciado, e que ajudam a entender o agravamento da pandemia, mormente em detrimento dos mais vulneráveis, é o desmonte das políticas públicas na área da saúde. A despeito de 75% de a população brasileira depender exclusivamente do SUS, em 2019 houve um corte na verba destinada à pasta pelo Governo Federal na ordem de R$ 20 bilhões (CNS, 2020). E mais, em meio à maior tragédia sanitária da história, no momento em que o SUS deveria ser fortalecido para dar melhores respostas na preservação de vidas humanas, especialmente àquelas com menos recursos para o enfrentamento da pandemia, a saúde perdeu R$ 2,2 bilhões de seu orçamento para o ano de 2021 (ESTADO DE MINAS, 2021).
Dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS, 2018) apontam que cerca de 35 milhões de brasileiros não tem acesso a abastecimento por água e 100 milhões não têm esgoto. A maioria dos que estão privados do acesso básico à água é justamente a população mais pobre, formada em sua maioria por pessoas negras, já que ela compõe 75% da população mais pobre e somente 25% entre os mais ricos, conforme revelou o IBGE no informativo "Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil" (IBGE, 2019).
Grosso modo, pode-se dizer que, a despeito da gravidade e alto índice de letalidade do vírus, medidas preventivas básicas - e, que deveria estar acessível a todos -, como lavar as mãos e não ficar em locais aglomerados, são eficazes para impedir a disseminação do vírus e evitar a contaminação. Mas o que fazer quando acesso a banheiros ou saneamento básico não é uma realidade? Para uma população de excluídos, mesmo atitudes das mais prosaicas representam um desafio, dado que, muitas das vezes, sequer têm acesso ao abastecimento de água, revelando a persistente distribuição desigual deste recurso indispensável à manutenção da vida e da higiene.
A forma díspar com que os impactos da Covid-19 recaem sobre a população brasileira configura um típico caso de injustiça ambiental, atentatória contra a dignidade humana. As desigualdades ambientais e sociais são indissociáveis. Logo, a luta por justiça social é, também, uma luta por justiça ambiental, notadamente no caso da Covid-19, cuja origem está ligada à degradação dos ecossistemas, provocado pela intervenção antrópica.
Não há dúvida que os efeitos da desigual distribuição da poluição e da proteção ambiental e, como seu corolário, das consequências da pandemia da Covid-19, é um retrato vívido da ausência da efetivação de políticas públicas, fazendo-se necessária uma abordagem sobre a responsabilidade do Estado diante da sua omissão.
Sem dúvida, todos estão na mesma tempestade, mas não no mesmo barco. Isso é um fato. Bom seria se todos tivessem acesso a bons barcos, bons hospitais e direitos iguais, conforme preconizado pela CF/88. Nada obstante, o que se observa é que a escolha entre quem vive e quem morre está sendo feita, em larga medida, pelo Estado ao não dar o suporte básico de vida a alguns, tampouco se preocupando em tomar medidas para a proteção dos mais vulneráveis. A história cobrará os responsáveis (CUNHA, 2020).
O direito-garantia ao mínimo existencial socioambiental
Para compor o mínimo existencial - imprescindível para viver em condições de dignidade -, mister uma visão ampliada do que se considera como essencial para garantir uma sadia qualidade de vida. Assim como determinadas circunstâncias materiais no âmbito social (saúde, educação, moradia, etc.), também na seara ecológica há um piso mínimo de condições no tocante à qualidade ambiental, sem as quais o desenvolvimento pleno da vida humana restariam inviabilizados, em descompasso com o comando constitucional que impõe ao Estado o dever de tutelar a vida (artigo 5º, caput) e a dignidade humana (artigo 1º, III) contra quaisquer ameaças existenciais.
No contexto da Covid-19, e diante do impacto desigual das suas consequências em detrimento da população empobrecida, a interação entre os problemas sociais e ambientais mostram-se ainda mais evidentes. Tal situação configura clara violação aos direitos fundamentais em seu núcleo essencial, em afronta à dignidade da pessoa humana, o que requer, por meio das diretrizes de sustentabilidade, abordar a responsabilidade do Estado na promoção da gestão adequada dos riscos e na integração das populações.
As políticas públicas são políticas de Estado, e não uma mera política de governo, dependente de escolhas discricionárias de grupos que ocupam o poder. Como política pública (BUCCI, 2006, p. 19), encontrase mergulhada, em sua estrutura e funcionamento, na legalidade constitucional, cujo descumprimento se identifica ao descumprimento de obrigações jurídicas, acarretando a imputação - inclusive judicial - de responsabilidade ao Estado.
Frente aos direitos consagrados constitucionalmente - notadamente aqueles voltados para a proteção da dignidade humana -, não há discricionariedade do administrador. Por trás da ideia de poder conferido ao Estado, há um subjacente dever ou poder-dever, que devem ser compatíveis com os valores fundamentais do sistema constitucional.
A partir da perspectiva jurídica da sua justiciabilidade, ressalta-se que os direitos fundamentais socioambientais, componentes do mínimo existencial, não se encontram à disposição dos Poderes Executivo e Legislativo. Isso significa que, diante da inércia dos referidos poderes, ou atuação insuficiente, eles podem ser reivindicados em Juízo, por serem indispensáveis para uma vida digna (TORRES, 2009, p. 82).
Malgrado, para justificar suas omissões na concretização dos direitos fundamentais, tornou-se corriqueiro aos órgãos estatais suscitarem motivos econômicos como impeditivos para a não concretização de tais direitos. Nessa linha, surgiu, inclusive, a odiosa teoria da reserva do possível, importada ao Brasil na década de 1980, que por vezes serviu de alicerce para o Estado justificar sua omissão na satisfação dos direitos fundamentais sociais, conferindo o fundamento teórico para a não efetivação de tais direitos.
Todavia, só é possível subordinar ao princípio orçamentário da reserva do possível àquelas medidas prestacionais que não estejam incluídas no núcleo essencial dos direitos fundamentais socioambientais. No tocante ao mínimo existencial, consoante Clève (2003, p. 23), não é pertinente argumentar tais fundamentos, pois se trata de padrão mínimo indispensável para a garantia do princípio da dignidade da pessoa humana - pilar de toda a sistemática dos direitos humanos e fundamentais devendo ser garantido em qualquer conjectura, dado que a eficácia normativa de tais direitos é extraída diretamente do comando constitucional, consubstanciado nos artigos 1º, III, 6º, caput, e 225, caput
Enfim, resta evidenciada a obrigação inescusável do Estado, no exercício de seus deveres nucleares, assegurar um piso mínimo vital de direitos a todos os cidadãos, sobretudo dos mais vulneráveis, entre os quais o direito à saúde, para cujo exercício, é imprescindível um ambiente equilibrado e dotado de higidez.
Outrossim, diante da omissão estatal na implementação desses direitos, o Poder Judiciário, como guardião da Constituição Federal e das leis, tem não apenas o direito, e sim a obrigação de intervir e garantir a efetivação desses direitos fundamentais.