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Cálculo da pontuação máxima para suspensão do direito de dirigir: problematizações acerca da ampliação do teto de pontos tolerados

Agenda 28/01/2022 às 18:51

Em 2020, foi aprovada mudança legislativa no CTB, ampliando a pontuação máxima que ocasiona a suspensão do direito de dirigir. Embora isso tenha provocado grande entusiasmo, uma análise mais atenta do tema permite identificar diversas problemáticas.

No ordenamento brasileiro, assim como no sistema jurídico de inúmeros países, o exercício do direito de dirigir veículo automotor terrestre depende da expedição de uma habilitação que é concedida, pelo órgão competente, mediante demonstração da perícia na condução dos veículos da categoria que o candidato pretende dirigir, bem como a comprovação da aptidão física, mental e psicológica do potencial motorista. Nesse sentido, a exigência dessa documentação vai ao encontro da procura pela manutenção do trânsito em condições seguras, um direito de todos e dever das entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito nos termos do §2º do artigo 1º do Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503/1997 - CTB).

Desse modo, dentro de um contexto que busca a preservação de uma convivência saudável no trânsito e a regulamentação dessas interações sociais, o Código de Trânsito Brasileiro arrola uma série de infrações e crimes de trânsito, explicitando penalidades para cada uma das condutas tipificadas. E é dentro desse hall de possíveis sanções aplicáveis que está inserida a suspensão do direito de dirigir, situação que gera bastante preocupação dos motoristas.

Nessa toada, é válido ressaltar o teor do artigo 261 do CTB, na medida em que esse dispositivo denota as situações em que é possível a efetuação da suspensão do direito de dirigir. Antes do advento da Lei nº 13.281/2016, esse enunciado possuía redação mais enxuta, limitando a aplicação dessa penalidade aos casos previstos neste Código [CTB], pelo prazo mínimo de um mês até o máximo de um ano e, no caso de reincidência no período de doze meses, pelo prazo mínimo de seis meses até o máximo de dois anos, segundo critérios estabelecidos pelo CONTRAN. Ocorre que a partir da vigência da legislação supramencionada, foi operada uma modificação no texto desse artigo, de modo a clarificar as circunstâncias em que é permitido o emprego dessa sanção isto é, em casos em que a norma descritiva da conduta infracional prevê essa punição diretamente ou em hipóteses em que o limite de pontos por infrações é atingido.

Nesse sentido, a discussão em torno da fixação do número máximo de pontos que podem ser tolerados, sem ensejar suspensão do direito de dirigir, é algo que ganha destaque sendo que a forma de computá-los também é, frequentemente, causa de inquietações para inúmeros motoristas. Com isso, é coerente mencionar o conteúdo do artigo 259 do CTB, que descreve a pontuação que é atribuída a cada tipo de infração, de acordo com a sua gravidade:

Art. 259. A cada infração cometida são computados os seguintes números de pontos:

        I - gravíssima - sete pontos;

        II - grave - cinco pontos;

        III - média - quatro pontos;

        IV - leve - três pontos.

Com base no texto do artigo 261 do CTB dado pela Lei nº 13.281/2016, seria possível a aplicação da sanção em circunstâncias em que a soma da pontuação correspondente às infrações, cometidas no período de doze meses, totalizasse valor igual ou superior a vinte. Assim o dispositivo possuía o seguinte teor:

Art. 261. A penalidade de suspensão do direito de dirigir será imposta nos seguintes casos:

I - sempre que o infrator atingir a contagem de 20 (vinte) pontos, no período de 12 (doze) meses, conforme a pontuação prevista no art. 259;

II - por transgressão às normas estabelecidas neste Código, cujas infrações preveem, de forma específica, a penalidade de suspensão do direito de dirigir.

(...)

Todavia, em 2020, foi realizada nova alteração estabelecendo diferentes tetos de pontuação para conjunturas distintas. A Lei nº 14.071/2020 ampliou esse limite máximo, causando grande entusiasmo em parcela da sociedade. Contudo, uma análise mais atenta dessa norma, particularmente à luz das regulações do CONTRAN (Conselho Nacional de Trânsito) sobre essa temática, permite evidenciar uma série de problemáticas decorrentes dessa modificação legislativa. Atualmente, o dispositivo possui a seguinte elaboração:

 Art. 261.  A penalidade de suspensão do direito de dirigir será imposta nos seguintes casos:         

I - sempre que, conforme a pontuação prevista no art. 259 deste Código, o infrator atingir, no período de 12 (doze) meses, a seguinte contagem de pontos:       

a)  20 (vinte) pontos, caso constem 2 (duas) ou mais infrações gravíssimas na pontuação;       

b)  30 (trinta) pontos, caso conste 1 (uma) infração gravíssima na pontuação;        

c)  40 (quarenta) pontos, caso não conste nenhuma infração gravíssima na pontuação;         

II - por transgressão às normas estabelecidas neste Código, cujas infrações preveem, de forma específica, a penalidade de suspensão do direito de dirigir.   

(...)

Logo, percebe-se que, embora tenha ocorrido a ampliação do máximo de pontos acumulados para o total de quarenta, esse montante pode ser reduzido conforme a natureza e gravidade das infrações cometidas situação que ocasiona uma dupla penalização, como será demonstrado mais adiante.

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Sob essa perspectiva, cumpre salientar o conteúdo da Resolução nº 723/2018 do CONTRAN, que regulamenta os artigos 261 e 263, I e II do CTB. A seção I do capítulo II dessa norma trata especificamente da suspensão do direito de dirigir por pontuação sendo que o art. 7º desse documento estabelece regras para possibilitar a efetivação concreta das disposições do artigo 261, I do CTB. Nessa toada, alguns parágrafos desse dispositivo são dignos de menção, possuindo a seguinte redação antes da alteração promovida pela Resolução nº 844/2021:

Art. 7º Para fins de cumprimento do disposto no inciso I do art. 3º serão consideradas as datas do cometimento das infrações.

§ 1º Os órgãos e entidades componentes do SNT que aplicam a penalidade de multa deverão comunicar, por meio do registro no RENAINF ou outro sistema eletrônico, aos órgãos executivos de trânsito de registro do documento de habilitação, a pontuação correspondente, após o encerramento da instância administrativa da infração.

§ 2º Será instaurado um único processo administrativo para aplicação da penalidade de suspensão do direito de dirigir quando a soma dos pontos relativos às infrações cometidas atingir 20 (vinte), no período de 12 (doze) meses.

§ 3º Não serão computados pontos nas infrações que preveem, por si só, a penalidade de suspensão do direito de dirigir.

§ 4º Ressalvada a hipótese do §3º, todas as demais infrações previstas no CTB deverão ser consideradas para cômputo de pontuação, independentemente de sua natureza, inclusive as de responsabilidade do proprietário.

(...)

Contudo, a aprovação da Resolução nº 844/2021 do CONTRAN trouxe diversas modificações, inclusive nas disposições do artigo 7º. Houve alteração de seus §§1º e 2º, de forma a adaptar o regramento aos novos limites dispostos no CTB. Também houve a inclusão do §2º - A, apesar de não ter tido mutações nos demais parágrafos. Desse modo, adotou-se o enunciado abaixo:

Art. 7º Para fins de cumprimento do disposto no inciso I do art. 3º serão consideradas as datas do cometimento das infrações.

§ 1º Os órgãos e entidades componentes do SNT que aplicam a penalidade de multa deverão comunicar, exclusivamente por meio do lançamento no Registro Nacional de Infrações de Trânsito (RENAINF), aos órgãos executivos de trânsito de registro do documento de habilitação, a pontuação correspondente, após o encerramento da instância administrativa da infração.

§ 2º Será instaurado um único processo administrativo para aplicação da penalidade de suspensão do direito de dirigir quando a soma dos pontos relativos às infrações cometidas atingir os limites previstos no art. 3º, no período de 12 (doze) meses.

§ 2º-A No caso de o condutor que exerce atividade remunerada em veículo optar por participar de curso preventivo de reciclagem ao atingir 30 (trinta) pontos no período de 12 (doze) meses, concluído com êxito o curso, essa pontuação será eliminada para fins de contagem subsequente.

§ 3º Não serão computados pontos nas infrações que preveem, por si só, a penalidade de suspensão do direito de dirigir.

§ 4º Ressalvada a hipótese do §3º, todas as demais infrações previstas no CTB deverão ser consideradas para cômputo de pontuação, independentemente de sua natureza, inclusive as de responsabilidade do proprietário.

(...)

Caminhando mais um pouco, entretanto, é possível notar que embora tenha se buscado a atualização das práticas regulamentares, a mudança de apenas parcela do regulamento à nova realidade descrita no CTB é algo que leva a um cenário de dupla penalização. Isso porque, conforme os §§ 3º e 4º do artigo 7º da Resolução 723/2018, todas as infrações cometidas são contabilizadas no teto máximo da pontuação que ocasiona a suspensão do direito de dirigir salvo aquelas que preveem, por si só, essa punição. O resultado disso é que o cometimento de infração gravíssima, nesse contexto, além de diminuir o total de número de pontos aceitáveis, também é computada nesse montante levando a uma dupla contabilização.

Para ilustrar esse cenário, é possível citar um exemplo. Supunha-se situação em que um motorista não tenha realizado qualquer tipo de infração no último ano. Todavia, certo dia, esse condutor confiou a direção do veículo a um amigo, que apesar de possuir habilitação, não estava em condições de dirigir o carro com segurança por conta de seu estado físico ou psíquico. Consoante ao artigo 166 do CTB, foi realizada uma infração gravíssima com penalidade de multa. Como consequência disso, o limite de pontos aceitáveis para esse indivíduo, sem ensejar a suspensão do direito de dirigir, será reduzido de quarenta para trinta nos termos do artigo 261, I, b do CTB. Porém, não somente isso: os sete pontos oriundos dessa infração gravíssima também serão descontados do montante de trinta pontos toleráveis de modo que o sujeito sofrerá uma dupla penalização. Logo, apenas poderá receber mais vinte e três pontos em decorrência de eventuais outras infrações cometidas nos próximos doze meses. Mais do que isso, do ponto de vista prático, seria como se essa infração gravíssima originasse dezessete pontos contrariando a sanção de sete pontos imposta pelo artigo 259 do CTB.

Com isso, sob essa ótica, verifica-se a configuração de um cenário em que ocorre bis-in-idem dentro da mesma esfera punitiva algo vedado dentro do ordenamento jurídico brasileiro. Conforme explica Maia apud Arêdes (2018, p. 207), esse princípio pode ser sintetizado como a:

(...) proibição de que um Estado imponha a um indivíduo uma dupla sanção ou um duplo processo (ne bis) em razão da prática de um mesmo crime (idem). No coração mesmo de sua assimilação normativa parece encontrar-se o intuitivo reconhecimento da existência de uma comezinha noção de eqüidade que torna inaceitável, quando menos incoerente, que alguém receba mais de uma punição pela mesma infração penal ou que sofra mais de uma vez com as inevitáveis agruras de um processo criminal.

Em efeito, a proibição da dupla punição procura preservar a dignidade da pessoa humana. A instauração de diferentes processos, dentro de uma única esfera punitiva e para apurar um mesmo fato, faz com que o cidadão se veja obrigado a arcar duplamente com a insegurança decorrente de um procedimento judicial devendo efetuar a sua defesa diversas vezes perante o Estado (ARÊDES, 2018).

Embora no caso estudado não se trate propriamente de uma situação em que a dupla punição se origina da instauração de mais de um processo para a verificação do ocorrido, o mesmo raciocínio pode ser aplicado. Isso porque, apesar de não se ver compelido a lidar com uma multiplicidade de procedimentos para averiguar uma mesma conjuntura, o sujeito ainda será submetido a dupla sanção dentro da esfera administrativa: não somente arcará com uma redução significativa do limite de pontos por conta de infração gravíssima, mas os pontos decorrentes dessa sanção também serão computados após a redução do teto da pontuação.

Por outro lado, diferentemente da conjuntura descrita acima, percebe-se que no §3º do artigo 7º da Resolução nº 723 do CONTRAN houve uma tentativa de evitar a ocorrência de uma dupla punição: infrações que levam a suspensão do direito de dirigir diretamente não devem ser contabilizadas para fins do limite máximo de pontos que ocasiona a suspensão do direito de dirigir indicando um certo nível de preocupação do órgão regulador para impedir a ocorrência de bis-in-idem.

Cuidado similar da entidade e da legislação de trânsito também pode ser verificado no que diz respeito aos condutores que exercem atividade remunerada ao veículo. Consoante o §5º do artigo 261 do CTB, o teto de pontos adotado é de quarenta, qualquer que seja a natureza das infrações cometidas. Não havendo, portanto, diminuição da pontuação máxima pela gravidade da conduta infratora, não há de se falar em bis-in-idem na computação dos pontos advindos desse evento. A faculdade de realização de curso de reciclagem preventivo quando atingida a soma de trinta pontos também é algo que aparenta favorecer a situação do condutor e a segurança no trânsito mostrando-se bastante positiva.

Todavia, infelizmente, é preciso reiterar que o regramento parece ter deixado um tanto a desejar no que diz respeito a contabilização dos pontos da infração gravíssima, visto que o cometimento dessa conduta também leva à redução do limite máximo de pontos aceitável. Possivelmente, essa situação tenha se originado de uma desatenção nas alterações promovidas pela Resolução nº 844/2021 do CONTRAN: buscou-se adaptação da Resolução nº 723/2018 aos limites ampliados do CTB, mas não se modificou a forma de contabilização da pontuação fato que originou uma situação de parcial adequação à nova conjuntura normativa, tendo a dupla penalização como efeito colateral.

Em suma, evidencia-se que a ampliação do teto da soma de pontos tolerados, e que não ensejam suspensão do direito de dirigir, é algo positivo para o condutor. Contudo, esse cenário deve ser relativizado em face da configuração de bis-in-idem devendo ser interpretado de forma crítica em face dos princípios que regem o ordenamento jurídico brasileiro e o Estado Democrático de Direito.

Referências

ARÊDES, Sirlene N. Ne bis in idem: direito fundamental constitucional aplicável na relação entre as esferas penal e administrativa geral no direito brasileiro. Direito, Estado e Sociedade, Rio de Janeiro, p. 204-240, jan/jun 2018. ISSN 1516-6104. Disponível em: https://revistades.jur.puc-rio.br/index.php/revistades/article/view/818. Acesso em: 14 janeiro 2022.

BRASIL. Conselho Nacional de Trânsito. Resolução nº 723, de 06 de fevereiro de 2018. Referenda a Deliberação CONTRAN nº 163, de 31 de outubro de 2017, que dispõe sobre a uniformização do procedimento administrativo para imposição das penalidades de suspensão do direito de dirigir e de cassação do documento de habilitação, previstas nos arts. 261 e 263, incisos I e II, do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), bem como sobre o curso preventivo de reciclagem. Disponível em: https://www.gov.br/infraestrutura/pt-br/assuntos/transito/conteudo-contran/resolucoes/resolucao7232018.pdf. Acesso em: 14 janeiro de 2022.

BRASIL. Conselho Nacional de Trânsito. Resolução nº 884, de 09 de abril de 2021. Altera a Resolução CONTRAN nº 723, de 6 de fevereiro de 2018, que dispõe sobre a uniformização do procedimento administrativo para imposição das penalidades de suspensão do direito de dirigir e de cassação do documento de habilitação, previstas nos arts. 261 e 263, incisos I e II, do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), bem como sobre o curso preventivo de reciclagem. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-contran-n-844-de-9-de-abril-de-2021-313215020. Acesso em: 14 janeiro de 2022.

BRASIL. Lei Federal nº 9.503, de 23 de setembro de 1997. Institui o Código de Trânsito Brasileiro. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9503compilado.htm. Acesso em: 14 janeiro 2022.

BRASIL. Lei Federal nº 13.281, de 04 de maio de 2016. Altera a Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997 (Código de Trânsito Brasileiro), e a Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13281.htm. Acesso em: 14 janeiro 2022.

BRASIL. Lei Federal nº 14.071, de 13 de outubro de 2020. Altera a Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997 (Código de Trânsito Brasileiro), para modificar a composição do Conselho Nacional de Trânsito e ampliar o prazo de validade das habilitações; e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l14071.htm. Acesso em: 14 janeiro 2022.

 

 

 

 

 

 

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