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A meritocracia como instrumento de mobilidade social. Será?

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Agenda 03/02/2022 às 13:29

A meritocracia surgiu com Confúcio e no Brasil, é bem arraigada. Será que é possível ascender socialmente devido apenas ao instituto da meritocracia? É o que tentamos descobrir com este artigo.

“não se esqueça que você é branco” – Hurricane, Bob Dylan

O conceito de meritocracia surgiu no leste da Asia, com Confúcio. O filósofo trouxe o juízo de quem governa, o devia fazer por mérito, e não porque herdara o poder.

Durante o século XVII o conceito se espalha entre a Inglaterra. O Império Britânico foi o primeiro a adotar a concepção de meritocracia para administração da Índia.

John Stuart Mill, em seu livro Governo Representativo, defende fortemente meritocracia:

Se uma casa representa o sentimento popular, a outra deve representar mérito pessoal, testado e garantido pelo atual serviço público e fortalecido pela experiência prática. Se uma é Câmara do Povo, a outra deve ser a Câmara dos Estadistas, um conselho composto por todos os homens públicos vivos que passaram por importantes escritórios ou empregos. Tal Câmara seria adequada para muito mais do que ser um órgão meramente moderador. Não seria exclusivamente uma verificação, mas também impelir força. Em suas mãos o poder de conter o povo seria investido naqueles mais competentes e que geralmente estariam mais inclinados a conduzi-lo a qualquer curso correto[1].

Para Stuart Mill, quem não tem instrução não poderia participar de decisões políticas porque não teria instrução suficiente para governar e ninguém confiaria seus interesses nesse tipo de pessoa:

Uma pessoa que pode ler, mas não pode escrever ou calcular, não é tão boa quanto a pessoa que consegue fazer as duas coisas. Uma pessoa que pode ler, escrever e calcular, mas que não conhece nada das propriedades dos objetos naturais, ou de outros lugares ou países, ou dos seres-humanos que viveram antes dele, ou das ideias, opiniões e práticas de seus semelhantes em geral, não é tão boa quanto a pessoa que conhece essas coisas. Uma pessoa que não se familiarizou com os pensamentos mais sábios de uma vida benéfica e virtuosa, não é tão boa quanto aquele que é familiar com esses. Uma pessoa que até se encheu com esses vários conhecimentos, mas não os digeriu - que não poderia dar um relato claro e coerente deles, nunca exercitou sua própria mente, ou derivou um pensamento original de sua própria observação, experiência ou raciocínio não é tão boa, para qualquer propósito humano, quanto aquele que o fez. Não há ninguém que, em qualquer assunto que lhe diga respeito, não prefira ter seus negócios administrados por uma pessoa de maior conhecimento e inteligência, do que por uma de menos. Não há ninguém que, se fosse obrigado a confiar seu interesse conjuntamente com ambos, que não desejasse dar uma maior voz potencial aos mais educado e culto dos dois[2].

A posição de Stuart Mill parte do pressuposto de que pessoas instruídas, com boa educação, governam com mais sabedoria e nesse ponto, ele traz a convicção do voto plural, na tentativa de impedir que um grupo ou classe possa controlar o processo político – a preocupação dele era com a classe mais numerosa da população, sem instrução. Logo, isso seria resolvido com o voto plural, exercido pelas pessoas com posições mais altas na sociedade – para ele isso seria a perfeição.

A perfeição, então, de um sistema eleitoral seria que cada pessoa deveria ter um voto, mas que cada pessoa bem-educada na comunidade deveria ter mais de um, em uma escala correspondente tanto quanto possível à sua quantidade de educação. E nenhum desses constituintes de um sistema representativo perfeito é admissível sem o outro. Enquanto o sufrágio está totalmente confinado a uma classe limitada, essa classe não tem ocasião para votação plural; o que provavelmente, nessas circunstâncias, apenas criaria uma oligarquia dentro de uma oligarquia. Por outro lado, se a classe mais numerosa, que (salvo exceções honrosas de um lado, ou vergonhosas de outro) é a mais baixa na escala educacional, recusa reconhecer um direito aos mais instruídos, em virtude de suas qualificações superiores, a uma pluralidade de votos que possa impedi-los de serem sempre e irremediavelmente derrotados pelos comparativamente incapazes, a maioria numérica deve se submeter a ter o sufrágio limitado a tal parte de seus números, ou a ter tal distribuição feita dos círculos eleitorais, como poder de efetuar o equilíbrio necessário entre números e educação de outra maneira[3].

Stuart Mill não estava de todo errado. Certamente um governo qualificado faz escolhas melhores, mas será que essa qualificação, via meritocracia, é acessível para todos? Salvo melhor juízo, no lugar de estabelecer voto plural, a educação de qualidade deveria ser gratuita e acessível para a maior parte da população, a fim de que ela pudesse, por conta própria, escolher melhores representantes e não ter que depender de voto de eleitor “mais capaz”.

O conceito de meritocracia é bem arraigado nos Estados Unidos e o Brasil importou a retórica de que pela meritocracia você também pode chegar ao topo.

A meritocracia envolve a ideia de que qualquer que seja sua posição social no nascimento, a sociedade vai oferecer oportunidades e mobilidade suficientes para que o seu talento combine com seu esforço para que você possa também subir ao topo. Atualmente, esta concepção é a mais prevalente na esfera social e cultural.

O jurista Robert Reich, professor de políticas públicas na Universidade de Califórnia, em Berkeley, em 15 de julho de 2014, escreveu artigo em que relatava que ¾ dos americanos, que se diziam conservadores, acreditavam que “as pessoas pobres têm mais facilidade porque tem incentivos do governo sem precisarem fazer nada”, conquanto a maioria dos americanos pobres tivessem dois ou mais empregos.

Os homens e mulheres americanas self-made, símbolos da meritocracia, estão desaparecendo. Seis em cada dez americanos mais ricos de hoje são herdeiros. Apenas seis herdeiros do Walmart têm mais riqueza do que os 42% de toda a base dos americanos[4].

E continua ao dizer que levantamento do tesouro americano mostrou que a riqueza herdada é a maior forma de riqueza entre os millenials (geração nascida entre 1980 e 1994). Essa também é a principal forma de riqueza da Europa por séculos, onde o economista e filósofo britânico John Stuart Mill nasceu.

John Stuart Mill era filho de James Mill, que com Jeremy Bentham, fundador do utilitarismo, advogava pela teoria filosófica de que uma ação só pode ser considerada moralmente correta se útil à sociedade; eram favoráveis entre outras coisas, à tolerância religiosa, liberdade de expressão e pensamento.

James Mill era filho de sapateiro e pequeno agricultor, tendo sua mãe o incentivado aos estudos. Com uma bolsa da comunidade presbiteriana, ele acompanhou uma nobre local a Edimburgo como tutor de sua filha, e ali se matriculou na universidade local em 1790. Através de seu trabalho em jornais, encontra Jeremy Bentham[5].

Ou seja, sem a bolsa da comunidade presbiteriana, sem o acompanhamento de uma nobre e sem apoio de sua mãe, James Mill não seria o que se tornou.

Já quanto a John Stuart Mill, nasceu em 1806 e James Mill conheceu Jeremy Bentham, filho de rico advogado inglês, entre 1807 e 1808. Com 3 anos, Stuart Mill já fazia lições em grego. Aos 7 anos leu os primeiros diálogos de Platão – Certamente sua infância foi bem diferente da do seu pai, já que até os 14 anos foi criado sem contato com seus pares, mas a partir desta idade, começou a praticar esportes tais como equitação, esgrima e natação[6].

John Stuart Mill, como se nota, era produto da meritocracia, e por isso a defendia tão bem.

Reportagem da NBC, de 14 de julho de 2020, apontou que com o salário-mínimo americano, trabalhadores não conseguem pagar por moradia – em nenhum lugar do país.

Os trabalhadores com salário-mínimo em período integral não podem pagar um aluguel de dois quartos em qualquer lugar dos EUA e não podem pagar um aluguel de um quarto em 95% dos condados dos EUA, de acordo com o relatório anual Out of Reach da National Low Income Housing Coalition.

Na verdade, o trabalhador com salário-mínimo médio nos EUA precisaria trabalhar quase 97 horas por semana para pagar um valor justo de mercado por dois quartos, e 79 horas por semana para pagar um quarto, calcula o NLIHC. Isso é bem mais que dois empregos em tempo integral apenas para poder pagar um aluguel de dois quartos.[7]

No ano de 2018, amplamente noticiado pela mídia americana que uma mulher ao cair na linha de trem na estação de Boston, teve um corte tão profundo em sua coxa esquerda, que chegava próximo do osso. A mulher estava com fortes dores, mas não queria que ninguém chamasse ambulância porque não iria ter condições de pagá-la. O custo médio de transporte por ambulância, em 2012, nos EUA, encontrava-se entre $ 224 e $ 2.204[8]. Pesquisa do Censo dos Estados Unidos, de 2017, mostrou que 19% dos americanos não conseguiam pagar despesas médicas de forma antecipada, ou quando recebiam cuidados médicos.

De acordo com a pesquisa, 27,9% das famílias com um chefe de família negro tinham dívidas médicas em comparação com 17,2% das famílias com um chefe de família branco não hispânico e 9,7% das famílias com um chefe de família asiático. Os domicílios onde o nível de escolaridade mais alto de qualquer membro era bacharelado ou pós-graduação/profissional estavam entre os menos propensos a relatar dívida médica (15,5% e 10,9%, respectivamente)[9].

Fredrik deBoer, autor de Cult of Smart, aponta que a idade média de abandono escolar nos EUA é de 12 anos e as crianças que frequentam a escola não estão aprendendo o suficiente.

Reportagem da Forbes, de 11 de janeiro de 2021, informa que entre o fim da segunda guerra mundial, o QI aumentou cerca de três pontos por década nos países desenvolvidos (a escala de QI foi reajustada repetidamente para levar em conta isso). Esse fenômeno é chamado de efeito Flynn. Um fator quase certo foi uma educação melhor e mais difundida, indicando que, embora os genes tenham um efeito sobre a inteligência, ela pode ser impulsionada pela educação. Mas, em um momento em que a sociedade está exigindo mais do que nunca a inteligência, o efeito Flynn recentemente entrou em reversão.[10]

Já no Brasil, segundo pesquisas contidas no livro A cabeça do brasileiro, do cientista político Alberto Carlos Almeida, de 2007, nada melhor do que ser no Brasil, homem e branco.

O livro foi publicado faz 15 anos. Relatório do IBGE, denominado “Síntese de Indicadores Sociais: ​​Uma análise das condições de vida da população brasileira 2021”, indica que a maior parte da população desempregada é negra, empregada com subocupações e com menores rendimentos mensais em 2020. O nível de ocupação das mulheres é menor do que dos homens, mesmo quando mais escolarizadas.

“Com relação à menor participação feminina na força de trabalho, a divisão por gênero das atividades domésticas deve ser pontuada, uma vez que a taxa de realização de afazeres domésticos no domicílio ou em domicílio de parente é superior para as mulheres, assim como a de cuidados de moradores ou de parentes não moradores, fatores comumente abordados em relatórios estatísticos e na literatura acadêmica”[11].

O recorte por cor ou raça mostra que, dentre o total de pessoas ocupadas, a proporção da população de cor ou raça branca era de 46%, e a de preta ou parda 53%. Todavia, a comparação por atividades econômicas revela uma característica importante na segmentação das ocupações e a persistência, ainda hoje, da segregação racial no mercado de trabalho. A presença de pretos ou pardos é mais acentuada nas atividades de agropecuária (60,7%), na construção (64,1%) e nos serviços domésticos (65,3%), justamente as atividades que possuíam rendimentos inferiores à média em todos os anos da série histórica. Por outro lado, informação, financeira e outras atividades profissionais e administração pública, educação, saúde e serviços sociais, cujos rendimentos foram bastante superiores à média, foram os agrupamentos de atividades que contrataram com maior participação de pessoas ocupadas de cor ou raça branca[12]”.

O sociólogo Michael Young, no livro The Rise of Meritocracy, vai dizer que escolas e indústrias jogam através do mérito e por conseguinte, crianças mais inteligentes de cada geração tem oportunidade de ascender socialmente:

Cada classe social tem, em habilidade, a miniatura da sociedade por si só. A parte é a mesma como o todo. A mudança fundamental do último século, que começou antes de 1963, é que a inteligência está sendo redistribuída entre classes e a natureza das classes mudou. Aos talentosos foi dada a oportunidade de subir de nível de acordo com suas capacidades, e aos das classes baixas, consequentemente, reservados para os que tem menos habilidades. A parte não é mais de longe, como o todo. A taxa de progresso social depende de qual poder coincide com inteligência. A Inglaterra de um século atrás desperdiçou seus recursos condenando até pessoas talentosas ao trabalho manual; e bloqueou os esforços de membros de classes baixas a obter justo reconhecimento de suas habilidades[13].

Young vai expor que “cada seleção de um é a rejeição de muitos”[14], assim como vai criticar a elite, que com seus conhecimentos, conseguem colocar seus filhos em boas escolas e em bons empregos. Crianças com habilidades, tornam-se carteiras porque tem que deixar a escola cedo, ao passo que crianças com poucas habilidades, mas cujos pais têm “ricas conexões”, tornam-se altos funcionários no exterior.

Para ele, a meritocracia usaria recursos cada vez mais precisos e testes cada vez mais precoces de inteligência para classificar as pessoas nas escolas, universidades e, eventualmente, empregos. A classificação produziria uma enorme, estável e completa estratificação social por habilidade.

Vai reprovar a educação elitizada, por ser limitada, e que o feudalismo criou um número de crianças que herdaram poder e posição, bem como riqueza, e vai explicar o quanto é maravilhoso ver a quantidade de filhos doutores, cujos pais também eram doutores. Por outro lado, outras crianças fazem o seu melhor, por assiduidade e treinamento para cumprir a instrução de Goethe: “Para você realmente possuir o que você herda, primeiro você deve conquistá-lo por seu mérito”. (YOUNG, 1961, p.23/25)

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Young vai advertir que as desigualdades serão tão acentuadas que se tornarão instrumentos de violência.

Michael Sandel, no prologo do livro The Tyranny of Merit vai explicar que quando a pandemia COVID-19 chegou nos Estados Unidos, em 2020, pegou muitas pessoas de surpresa, que não conseguiam trabalhar remotamente e justamente por causa disso, perderam seus empregos e salários. Isso levou os winners (vencedores) a considerarem o seu próprio sucesso, seu próprio mérito, e olhar os losers (perdedores) com desdém.

O começo de seu livro traz situação ocorrida em 2019, em que estudantes do ensino médio aguardavam ansiosos por suas notas de ingresso em universidades de elite, tais como Yale, Stanford, Georgetown e Universidade do Sul da Califórnia, e trinta e três pais ricos foram acusados de corrupção, envolvidos em um esquema de admissão de seus filhos nessas universidades.

  No centro da situação se encontrava o conselheiro universitário William Singer, cuja empresa era especializada em admissões de estudantes em faculdades de elite, porta de entrada para prestígio e prosperidade. Uma família chegou a pagar $ 1,2 milhões para que sua filha fosse admitida em Yale, como recruta de futebol, embora não jogasse futebol. Desse valor, $ 400 mil foram para o treinador de futebol de Yale.

Veja que essa situação, de 2019, confirma o que Young já dizia, de que crianças sem habilidades, com dinheiro e com ricas conexões tem mais facilidades que as crianças pobres, com fortes habilidades, mas cujos familiares não têm influência nem dinheiro.

Em Yale, mais alunos vêm de famílias 1% mais ricas do país do que dos 60% mais pobres. Essa desigualdade vem das vantagens que impulsionam os jovens de famílias abastadas a entrarem pela porta da frente da universidade, pelos processos seletivos, mas também das que entram pelas portas dos fundos ou back door, que não são proibidas nos Estados Unidos, cujas doações dos pais garantiriam uma vaga na prestigiosa universidade – entretanto, mesmo com as doações, Singer dizia que não poderia garantir uma vaga, mas através de subornos e corrupções, era certeza que sim – Singer chamou esse esquema de side door.

Sandel vai revelar que essa obsessão por submissão e aceitação em boas faculdades é reflexo da crescente desigualdade, visto que os pais de classes afluentes têm receio de perderem suas conquistas e sabem que uma admissão em uma faculdade renomada seria um caminho primário para alcançar ascensão ou permanecer em suas confortáveis classes, como forma de protegerem seus filhos de uma classe média precária (SANDEL, 2021, p.15/18).

Em uma sociedade desigual, aqueles que chegam ao topo querem acreditar que seu sucesso é moralmente justificado. Em uma sociedade meritocrática, isso significa que os vencedores devem acreditar que conquistaram seu sucesso por meio de próprio talento e forte trabalho[15].

E continua ao debater que a meritocracia trouxe para a classe trabalhadora o ressentimento e perplexidade pelo deslocamento forjado, já que o mundo globalizado atual não comporta mais a ideia de carreira ao longo da vida, tendo em vista que o que importa agora é inovação, flexibilidade, empreendedorismo e vontade constante de aprender novas habilidades.

Muitos trabalhadores vão se ressentir pelo fato de suas carreiras terem sido substituídas rapidamente por robôs ou trabalhadores mais baratos em nações pobres ou em desenvolvimento, com custos mais baixos e legislações trabalhistas inexistentes.

Dois terços dos estudantes de Harvard e Stanford vieram do topo, visto que a universidade possui mais estudantes oriundos do 1% mais rico do país, com renda anual superior a $ 630 mil dólares, o que demonstra que trabalho pesado e talento não se encaixam na retórica de meritocracia - mobilidade não mais compensa a desigualdade.

Ou seja, a meritocracia funcionaria como um papel ideológico, e seu mito de mobilidade social seria empregado para criar uma ideia de igualdade de condições que não existe.

Victor Hugo, em os Miseráveis, traz o personagem Jean Valjean, que passa 19 anos nas galés por ter roubado um pão para dar de comer aos sobrinhos e pelas tentativas de fuga. Fantine vende os dois dentes da frente para mandar dinheiro que pagasse o sustento de sua filha Cosette. O dinheiro da venda dos dentes não bastou, começa a se prostituir.

Quantos Jeans Vajeans e Fantines hoje, em pleno 2022 ainda existem no mundo? Impossível de responder. Aqui neste artigo não se defende criminalidade apoiando-se em literatura, mas busca-se desenvolver o pensamento crítico acerca da sociedade em que vivemos.

Reportagem do jornal The Guardian, de 23 de janeiro de 2022 alude que nas favelas do Afeganistão, pais estão vendendo seus rins para sustentar seus filhos em frio abaixo de zero e pagar contas.

Algumas mães já venderam suas filhas por 100,000 afghani, equivalente a £ 700 libras, para pagar despesas de hospital de outros filhos, que tem paralisia e doença mental, bem como remédio para o marido[16].

Não há emprego e o comércio ilegal paga cerca de £1,100 libras por rim. Algumas pessoas, após as operações, passam por complicações e os médicos recusam atendimento. Um dos entrevistados, que vendeu seu órgão, chegou a dizer para o médico que o atendesse porque “Estou feliz com a minha própria morte, mas não suporto ver meus filhos com fome e doentes”.

No romance de Victor Hugo, a personagem Eponina ao impedir seu pai e comparsas de realizarem assalto na casa de Jean Valjean, diz: “Que me importa a mim que me encontrem estendida no meio da rua Plumet, morta às facadas por meu pai, ou que dentro de um ano me achem nas redes de Saint-Cloud, ou na Ilha dos Cisnes no meio dos farrapos podres e dos cães afogados!”

Note que a vida real, em 2022 é deveras parecida com as situações vivenciadas pelos miseráveis de Victor Hugo – ambos não dão a mínima se morrerem, seria um alívio pelo tanto de sofrimento que passam.

Embora não se trate de situação ocorrida no Brasil, não podemos nos esquecer de como a pandemia COVID-19 tem afetado famílias no país e como inúmeros discursos de meritocracia invadiram redes sociais, questionando a quantidade de filhos de determinada família, a falta de estudo de outra, a gravidez na adolescência de uma terceira.

Trazendo à baila novamente Victor Hugo e trecho que se encaixa perfeitamente neste artigo:

O futuro chegará? Parece que se pode quase fazer esta pergunta, quando se veem tantas sombras terríveis. Sombras face a face dos egoístas e dos miseráveis. Nos egoístas, os preconceitos, as trevas da educação rica, o apetite crescendo pelo inebriamento, uma atordoação de prosperidade que ensurdece, o receio de sofrer que, em alguns chega até à aversão pelos que sofrem, um contentamento implacável, o eu tão inchado que fecha a alma; nos miseráveis, a cobiça, a inveja, a raiva de ver os outros gozar, os profundos abalos da besta humana para as saciedades, os corações cheios de nevoeiro, a tristeza, a fatalidade, a ignorância, impura e simples. Deve continuar-se a erguer os olhos para o céu?[17]

Michael Sandel vai dizer que a meritocracia traz consigo também um problema moral – a arrogância entre os vencedores e a sensação de humilhação entre os perdedores.

O livro A cabeça do Brasileiro, do cientista político Alberto Carlos Almeida deixa isso evidenciado na sociedade brasileira, com o ora argumentado às fls. 75:

Roberto DaMatta imortalizou esse caráter predominante na sociedade brasileira por meio da sentença, ainda muito usada, "você sabe com quem está falando?". Os valores hierárquicos devem ser entendidos em oposição aos valores igualitários. Os que compartilham de uma visão hierárquica de mundo consideram que há posições predefinidas e, portanto, deve-se esperar que cada um desempenhe o papel determinado por sua condição social[18].

Almeida vai mais adiante ao explanar que os que aparentam ser ricos tem melhor tratamento em repartições públicas, ao contrário dos que aparentam ser pobres.

E de forma não surpreendente, a meritocracia está bem arraigada em nossa sociedade. “Há sempre alguém no topo da hierarquia, seja o patrão ou o governo; há um superior e um inferior e o primeiro tem mais direitos do que o segundo justamente por ser superior”[19].

Roberto DaMatta é mais assertivo, tendo em vista que a sociedade brasileira sempre encontra maneiras de hierarquizar-se, visto que no caso do Brasil, a expressão permitiria passar do anonimato – que revelaria igualdade e individualismo, para uma posição bem definida, que expressaria hierarquia e pessoalização:

O "sabe com quem está falando", além de não ser motivo de orgulho para ninguém - dada a carga considerada antipática e pernóstica da expressão - fica escondido de nossa imagem (e autoimagem) como um modo indesejável de ser brasileiro, pois que revelador do nosso formalismo e da nossa maneira velada (e até hipócrita) de demonstração dos mais violentos preconceitos[20].

E vai continuar ao revelar que o “sabe com quem está falando” tem inúmeras variantes no Brasil, ao passo que nos Estados Unidos, a sociedade situa o homem como igual e não superior ao indagar ao brasileiro que passa na frente dos outros na fila da alfandega, “quem você pensa que é?”:

Além dessas condições gerais, o "sabe com quem está falando?" tem inúmeras variantes, seus equivalentes: "quem você pensa que é?", "onde você pensa que está", "recolha-se à sua insignificância", "mais amor e menos confiança", "vê se te enxerga", "você não conhece o teu lugar?", "veja se me respeita", "será que não tem vergonha na cara?", "mais respeito!" etc. As expressões podem realizar o mesmo ato expressivo e consciente que, na sociedade brasileira, parece fundamental para o estabelecimento (ou restabelecimento) da ordem e da hierarquia[21].

 E a situação crítica persiste no momento em que crianças e esposas igualmente se utilizam da identidade de seus pais e maridos ocupados na sociedade, sendo o filho ou esposa de “fulano de tal”. Empregadas domésticas agem da mesma maneira, identificando-se com suas patroas.

A expressão permitiria a identificação por meio da projeção social, mas também evitaria a tomada da consciência horizontal – quanto mais consciência vertical, mais presente a ideia de inferioridade e autoridade.

O sistema iguala num plano e hierarquiza no outro, o que promove uma tremenda complexidade classificatória, um enorme sentimento de compensação e complementaridade, impedindo certamente a tomada de consciência social horizontal. Sendo assim, é facilitada a tomada de consciência vertical, com o empregado identificando-se em certas ocasiões com o seu patrão, a empregada com a casa onde trabalha, o trabalhador com a empresa que o emprega, e a empresa e os empresários com certos órgãos do Estado, pois no Brasil tudo indica que o Estado é o domínio responsável pela totalização de todo o sistema na sua vertente formal e acabada[22].

DaMatta trará uma série de situações em que o uso de tal expressão é utilizado como forma de diferenciação social, bem como desnuda o que estaria por trás dela:

Como temos visto, não basta apenas a posição no mundo dos negócios - diríamos hoje, no mundo empresarial. Isso será suficiente na França ou nos Estados Unidos. No Brasil, é preciso traduzir e legitimar o poderio econômico no idioma hierarquizante do sistema. E esse idioma revela as linhas das classificações fundadas na pessoa, na intelectualidade e na consideração por uma rede de relações pessoais. É necessário então ser doutor e sábio, além de rico. E estar penetrado por alguma instituição ou corporação perpétua, como as Forças Armadas ou algum órgão do Estado. Os "doutores", assim, substituíram - como nos indica Freyre (1962:304) - os comendadores, barões, viscondes e conselheiros do Império. E sugere o modo de manter a nobreza e as distinções hierárquicas, mas usando outros recursos de diferenciação social.

Sandel leciona que a arrogância meritocrática refletiria a tendência dos vencedores de inalar profundamente seu sucesso, esquecendo a sorte e boa fortuna que os permitiram chegar até o topo, e no caso do Brasil, ainda é preciso lidar com hierarquização e contar com a “sorte” de ao nascer pobre, ser ao menos apresentável, para que seja bem tratado.

As chances de uma pessoa alcançar degraus mais altos na sociedade podem depender do degrau em que ela começa. Quando a educação meritocrática concentra o treinamento em filhos de pais ricos e inclina os estudantes da elite para a riqueza, isso prejudica a igualdade de oportunidades, porque as crianças ricas excluem as crianças de classe média das escolas de elite. As oportunidades da elite são obstáculos da classe média, e a elite bloqueia a classe média. O valor de qualquer escalada depende de quão distantes estão os degraus da escada social e econômica, diferenças de renda e status na sociedade – Quando a meritocracia polariza o trabalho, substituindo os trabalhos realizados pela classe média, as desigualdades de oportunidades pioram. (MARKOVITZ, 2019, p.264).

Estudo do Fórum Econômico Mundial, de 2020, retrata que de 82 países pesquisados, Brasil ocupa 60ª posição em mobilidade social. No país do “sabe com quem está falando”, um brasileiro nascido no menor patamar de renda levaria nove gerações para chegar à renda média[23].

De forma não surpreendente, a meritocracia também dá as caras no relatório, ao apontar que: “Em todas as economias, as crianças nascidas em famílias menos abastadas tendem a experimentar maiores barreiras ao sucesso do que aqueles nascidos nas famílias mais abastadas. Essas desigualdades de oportunidades podem tornar-se enraizadas e promover a longo prazo, desigualdades econômicas, bem como profundas clivagens econômicas e sociais”[24]

Segundo o estudo, educação de qualidade é um forte equalizador de chances e os países devem considerar aumentar seus gastos em educação, com foco em programas voltados para crianças e jovens carentes. Pesquisas mostram que maiores gastos com educação estão associados a maior mobilidade social. O gráfico abaixo, extraído do relatório demonstra:

O Brasil ocupa a 57ª posição em acesso geral à educação. 64ª posição de acesso a saúde e 65ª posição no acesso à educação de qualidade e sua igualdade de acesso. 69ª posição de acesso à oportunidade de trabalho. 74ª em instituições inclusivas. 64ª posição em distribuição justa de salário. 80ª posição em aprendizagem ao longo da vida.

Alberto Carlos Almeida já retratava em 2007 que a maior parte da população brasileira tinha escolaridade baixa e com isso, apoia o “jeitinho brasileiro”, é hierárquico, é fatalista, patrimonialista, não confia nos amigos, não tem espírito público, defende a “Lei de Talião”, é contra o liberalismo sexual, é a favor da censura e é a favor de mais intervenção do estado na economia (ALMEIDA, 2007, p:26).

O livro foi escrito em 2007 e graças às políticas públicas, muita coisa mudou no Brasil de lá para cá, mas como vimos no relatório acima, de 2020, muita coisa ainda precisa mudar.

Pesquisa realizada pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) em 2018, apontou que o Sistema de Seleção Unificada – SISU –, sistema informatizado que se vale das notas obtidas por estudantes no Exame Nacional de Ensino Médio (ENEM) para alocar candidatos (as) entre as instituições federais credenciadas, combinado com a Lei Federal nº 12.711/2012, conhecida como lei de cotas, sobre as universidades federais, permitiram aos estudantes do ensino médio encontrarem uma vaga em uma universidade pública.

A pesquisa do perfil socioeconômico realizada entre 2003 e 2004 apontou que 42,8% dos estudantes “encontram-se nas classes [de renda] C, D, E” cuja renda média familiar mensal atingia, no máximo, R$ 927,00, valor contido na faixa vulnerabilidade social. Em 2010, a porcentagem aumentou para 43,7%.

A partir dos dados de 2003 nota-se um crescimento da participação de pardos e pretos nas universidades federais que participaram da pesquisa, “resultado da adoção de políticas de ação afirmativa nas universidades federais, que começaram a ser implantadas de modo pontual e autônomo a partir de 2005 e foram se espalhando ao longo dos anos por todo o sistema de educação superior federal, particularmente a partir da criação do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), de 2007, e da criação de um programa federal de ação afirmativa obrigatório por meio da Lei nº 12.711 de 2012. De 2003 a 2018 os pardos aumentaram sua participação entre estudantes em 11 p.p. e os pretos mais que dobraram”[25].

Já em 2014, quando as cotas raciais nas federais já acumulavam quase 10 anos de existência e já surtia efeito a Lei nº 12.711 (Lei das Cotas) (BRASIL, 2012), em seu segundo ano de implantação, pretos e pardos somados ultrapassaram os brancos entre os graduandos. Em 2014 sua participação era somente 1,9 p.p. superior à de seus colegas brancos. Em 2018 essa diferença atingiu 7,9 p.p, marca bastante expressiva dado o histórico de exclusão desses grupos em espaços de prestígio social e poder, como as universidades públicas[26].

Quanto ao critério de renda familiar, a pesquisa retratou que 70,2% do universo pesquisado possuem renda mensal de 1 salário-mínimo e meio. Do total dos estudantes, 26,6% vivem em famílias com renda familiar per capita de “até meio SM” e 26,9% com renda per capita “mais de meio a 1 SM”. Neste sentido, mais da metade (53,5%) dos (as) graduandos (as) pertence a famílias com renda mensal per capita “até 1 SM”. Na faixa de renda per capita “mais de 1 a 1 e meio SM” estão 16,6%. Inseridos na faixa “Mais de 1 e meio SM” encontram-se 26,9% deste público e 3,0% não responderam. Em números absolutos 319.342 estudantes estão na faixa de renda per capita “Até meio SM”[27].

Informação de grande valia contida no relatório, que deve ser destacada, visto que realizada por pesquisadores: “É importante notar que, em um país marcado por profundas desigualdades sociais e educacionais, o (a) estudante universitário (a) não faz parte da camada mais pobre da população, já que os setores mais pobres e miseráveis nem mesmo chegam a concluir o ensino médio, principal fator de exclusão ao ensino superior”[28].

A camada mais pobre e miserável se encontra nas comunidades, com forte insegurança alimentar, em filas de ossos para conseguir comer carne. Como falar em meritocracia para essas pessoas? São preguiçosas? Não estão fazendo o suficiente? Por que tiveram tantos filhos? É mais fácil atacar com preconceito do que tentar resolver o problema, que é mais complexo do que se imagina e sempre para em falta de políticas públicas voltadas para os vulneráveis.

Políticas públicas que não podem ser consideradas favores, visto que a maior parte da renda dos pobres é destinada em alimentação e impostos são recolhidos quando se compra alimentos, fraldas, medicamentos.

No Brasil, os pobres sempre foram os mais afetados com altas de preços em alimentos e não seria diferente na pandemia. “O Brasil é o país onde somente o gasto das famílias mais ricas com a alimentação é 165,5% maior do que a renda total de famílias mais pobres. Entre os que têm maior renda, o valor desembolsado na compra de alimentos representa apenas 5% dos rendimentos, enquanto as pessoas mais pobres destinam mais de um quarto (26%) do que ganham para comprá-los”[29].

O livro Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus retrata o Brasil miserável de uma favelada negra e meritocrática? – Talvez a melhor palavra fosse negligenciada, porque capacidade demonstrou que tinha. Seu livro foi traduzido para mais de 20 idiomas.

“E assim, no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual - a fome!”[30]

“Deixei o João e levei só a Vera e o José Carlos. Eu estava tão triste! Com vontade de me suicidar. Hoje em dia quem nasce e suporta a vida até a morte deve ser considerado herói”[31].

Os efeitos da implementação de novos mecanismos de recrutamento de discentes para as IFES, que levou à substituição total ou parcial dos tradicionais vestibulares pelo Sistema de Seleção Unificada – SISU, bem como da adoção da política de cotas, são claramente verificados quando se analisa os “Meios de ingresso” e “Formas de ingresso” segundo “Faixa de ano de ingresso”, por exemplo.

Aumentou o percentual de negros (pretos quilombolas, pretos não quilombolas e pardos) que, pela primeira vez no espectro temporal das pesquisas de perfil da ANDIFES/FONAPRACE, alcança a maioria absoluta do universo pesquisado. Ainda que o perfil de cor ou raça da população brasileira também tenha se alterado, de 2014 para 2018, o aumento de pretos, pardos e indígenas identificado pela V Pesquisa foi superior ao crescimento populacional.

Cresceu o percentual de estudantes com renda mensal familiar per capita “até 1 e meio SM” – de 66,2% em 2014 para 70,2% em 2018 -, um aumento de 4 p.p., ou seja, em 2018, 7 a cada 10 discentes estão incluídos neste perfil de renda coberto pelo PNAES[32].

Note, portanto, que através de políticas públicas, muitos estudantes conseguiram e conseguem chegar ao curso superior, mas não podemos deixar de frisar a informação de que a camada mais pobre e miserável da população nem chega a concluir o ensino médio, bem como que o relatório fora confeccionado apenas entre universidades federais.

Segundo a OCDE, o Brasil tem uma das piores taxas de ensino superior do mundo. O relatório Education at a Glance 2019, apenas 21% dos brasileiros de 25 a 34 anos tem ensino superior completo no país[33].

Ou seja, mesmo com políticas públicas, o Brasil ainda tem muita dificuldade em avançar em educação, sobretudo porque muitos que ingressam nas faculdades, desistem no meio do curso, seja por falta de condições financeiras, seja por não conseguirem acompanhar o ritmo do curso visto que oriundos de escolas públicas, com pouca bagagem educacional, tendo em vista o sucateamento da educação no país.

Mesmo com arrecadação recorde de R$ 1,87 trilhões em 2021, ao sancionar orçamento de 2022, o atual presidente, Jair Bolsonaro, cortou verbas da educação, INSS, saúde e meio ambiente. O corte foi de R$ 3,2 bilhões[34].

Publicação de 18 de março de 2021 destaca que “as universidades federais calculam uma redução da ordem de R$ 1,2 bilhão no orçamento para este ano, valor que ameaça a permanência de estudantes mais vulneráveis e até mesmo pesquisas de combate à covid-19. Com a previsão de cortes, as instituições já estão reduzindo bolsas destinadas a alunos, o que pode levar ao aumento da evasão de estudantes de graduação”.

“Para atender os estudantes vulneráveis, os recursos do Pnaes (Plano Nacional de Assistência Estudantil) teriam de ser de R$ 1,5 bilhão. Já temos evasão porque o recurso é insuficiente. Com 20% a menos do Pnaes, o impacto na evasão é imediato”, diz Edward Madureira, presidente da Andifes e reitor da Universidade Federal de Goiás (UFG)[35].

Sandel também explicita que a meritocracia deixa pouco espaço para solidariedade e preenche o indivíduo com a sensação de capacidade, distanciando-se de um destino comum, fazendo da meritocracia uma verdadeira tirania.

O emprego da palavra individuo aqui não foi à toa. Roberto DaMatta vai trazer a dialética entre indivíduo e pessoa. No Brasil, a palavra individuo é utilizada como expressão de gente sem princípios, sendo frequentemente usada em crônicas policiais, tomando a individualização em seu sentido literal, que exprime a realidade de alguém que foi incapaz de dividir-se, dar-se socialmente.

Ficando indivisa, aquela criatura não foi capaz de ligar-se na sociedade, não foi penetrada por ela, quando ocorre quando se é uma pessoa. Daí, no Brasil, o individualismo ser também um sinônimo e expressão cotidiana de egoísmo, um sentimento ou atitude social condenada entre nós[36].

No Brasil, o país do “sabe com quem está falando”, a palavra pessoa serviria para passar de um estado para outro: do anonimato, que revela igualdade e individualismo para a posição bem definida de uma pessoa na sociedade, que expressa hierarquia e pessoalização.

 Tendo em conta que estamos tratando de meritocracia e o moral carregado com ela, achamos por bem utilizar a expressão individuo ao invés de pessoa.

Sandel também vai questionar o uso de meritocracia por políticos, ao afirmarem em suas campanhas que o seu destino pertenceria a você, estaria em suas mãos e que você pode conseguir, se tentar.

Todavia, o que não passa na cabeça dos políticos que defendem a meritocracia é que boa parte da população não consegue sequer tentar porque não tem condições para isso, como vimos mais acima.

Sandel vai denominar esse efeito de política da humilhação. “Para aqueles que não conseguem encontrar trabalho ou sobreviver, é difícil escapar do pensamento desmoralizante de que o fracasso é obra deles, que simplesmente não têm talento e vontade de ter sucesso”.[37]   

Young já dirimia algo parecido, tendo em vista que a classe baixa é acostumada a ter a visão de que são inferiores e podem tentar uma, duas, três vezes, mas em um dado momento desistem, porque “são burros” mesmo:

Hoje, todas as pessoas, por mais humildes que sejam, sabem que tiveram todas as oportunidades. Elas são testadas de novo e de novo. Se em uma ocasião eles estiverem fora do prumo, eles terão uma segunda, uma terceira e uma quarta oportunidade para demonstrar sua habilidade. Mas se eles forem rotulados de "burros" repetidamente, eles não podem sequer mais tentar; sua imagem de si mesmos é mais próxima da realidade e pouco lisonjeira. Eles não são obrigados a reconhecer que têm um status inferior - não como no passado, porque lhes foi negada oportunidade; mas porque são inferiores? Pela primeira vez na história humana o homem inferior não tem um suporte pronto para sua autoestima. Isso apresentou à psicologia contemporânea seu problema mais grave. Os homens que perderam sua autorresposta estão sujeitos a perder sua vitalidade interior (especialmente se forem inferiores a seus próprios pais e se enquadrarem na escala social correspondente) e podem facilmente deixar de ser bons cidadãos ou bons técnicos[38].

A política da humilhação vai passar a ideia de que os ricos são ricos porque são merecedores e os pobres, porque também merecem isso e não se esforçaram o suficiente ou porque simplesmente, “são burros”.

No livro de Victor Hugo, a sensação de desprezo persegue os miseráveis de forma evidente quando Jean Valjean se encontra com Mário, então marido de Cosette e diz quem ele realmente é: um desgraçado!

“Perseguem-me, denunciam-me, prendem-me! Quem? Eu mesmo! Eu é que embaraço o caminho a mim mesmo, me arrasto e me empurro, me prendo e me executo, e quem a si mesmo prende escusa de tentar fugir, que o não consegue!”.

Estudos apontam que a inteligência, além de ser ligada a genética, estaria relacionada ao meio em que se vive. Como já destacado neste artigo, embora associada a genética, a educação conjuntamente impulsiona o aumento de QI.

Estudos sugerem que os fatores genéticos estão por trás de cerca de 50% da diferença de inteligência entre os indivíduos. [...] A inteligência também é fortemente influenciada pelo ambiente. Fatores relacionados ao ambiente doméstico e parental de uma criança, educação e disponibilidade de recursos de aprendizagem e nutrição, entre outros, contribuem para a inteligência. O ambiente e os genes de uma pessoa influenciam uns aos outros, e pode ser um desafio separar os efeitos do ambiente dos da genética. Por exemplo, se o QI de uma criança é semelhante ao de seus pais, essa semelhança se deve a fatores genéticos transmitidos de pai para filho, a fatores ambientais compartilhados ou (mais provavelmente) a uma combinação de ambos? É claro que fatores ambientais e genéticos desempenham um papel na determinação da inteligência[39]

Estudo da Nature, de 2017, destacou que até 80% das diferenças de inteligência são determinadas geneticamente[40], mas também interligada ao meio em que se vive, o que equivale a dizer que famílias pobres, que vivem em um ambiente hostil, inóspito, sem saneamento básico, sem acesso a alimentação, disponibilidade de recursos, com famílias desestruturadas, tem suas chances ainda mais diminutas na sociedade meritocrática.

A baixa escolaridade igualmente é associada a teorias conspiratórias. Pesquisas descobriram que as pessoas são mais propensas a endossar teorias da conspiração se sentirem-se alienadas, impotentes e desfavorecidas, bem como desconfiam dos outros.

A baixa educação também afasta as pessoas do processo eleitoral, tendo em vista serem mais propensas a absterem-se de votar.

O primeiro estudo, de autoria da psicóloga Karen Douglas e colegas, foi publicado em 2016 na revista Thinking & Reasoning e associa menores níveis de educação a teorias conspiratórias e o segundo artigo, de autoria do psicólogo Jan-Willem van Prooijen e publicado na revista Applied Cognitive Psychology, encontra suporte para dois fatores mediadores adicionais: ceticismo em relação à ideia de que problemas complexos podem ter soluções simples e maiores sentimentos de controle[41].

Consoante dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) de 2019, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais da metade das pessoas com 25 anos ou mais, no Brasil, não concluiu a educação básica. São 69,5 milhões de adultos (51,2%) que não concluíram uma das etapas educacionais que compreendem o ensino infantil, fundamental e médio.

De acordo com a pesquisa, a maior parte das pessoas com 25 anos ou mais que não concluiu a educação básica não terminou o ensino fundamental, ou seja, 32,2%, e apenas 8% completaram. Já 4,5% das pessoas tinham o ensino médio incompleto e 6,4% eram sem instrução.

Analisados por região, três em cada cinco adultos (60,1%) no nordeste não completaram o ensino médio, ao passo que nas regiões sudeste e centro-oeste, mais da metade da população de 25 anos ou mais tinha o ensino médio completo.

Quando observado ao ensino superior completo, só 17,4% da população acima de 25 anos o concluiu. Entre os principais motivos para a evasão escolar, estão a necessidade de trabalhar (39,1%) e a falta de interesse (29,2%). Para os homens, 50% disseram precisar trabalhar e 33% relataram não ter interesse. Para as mulheres, os principais motivos foram gravidez e necessidade de trabalhar, ambos com 23,8%, não ter interesse em estudar (24,1%) e afazeres domésticos (11,5%).

Com relação à cor ou raça, enquanto entre as pessoas brancas 17% não trabalhavam nem estudavam, entre as pretas ou pardas o percentual foi de 25,3%. Além disso, 17% dos brancos trabalhavam e estudavam, percentual bem maior do que entre os pretos ou pardos, 12,4%.[42].

Não nos esqueçamos que o Brasil tem a 4ª maior taxa de desemprego do mundo. Pelo sitio do IBGE, são 13,5 milhões de desempregados (desocupados) no 3° trimestre de 2021. A taxa de desemprego (desocupação) é de 12,6% no 3° trimestre de 2021. São 5,1 milhões de desalentados e a taxa de subutilização, no mesmo período, é de 26,5%[43].

O professor de direito de Yale, Daniel Markovitz vai cunhar o termo “cilada da meritocracia” ao dizer que a ideia da meritocracia seria promover a igualdade e oportunidades antes abertas apenas aos herdeiros da elite, mas que na verdade, isso não se traduz em realidade, visto que as crianças de classe média estão perdendo seus lugares para as crianças ricas, e os adultos de classe média estão perdendo seus lugares no mercado de trabalho para os adultos ricos.

E vai expor que “a meritocracia bloqueia a classe média de oportunidades”[44], mas também vai prejudicar as elites que precisam gastar muito dinheiro para manter seus filhos em colégios caros.

Os trabalhos meritocráticos também exigem cada vez mais dos seus funcionários, de modo a explorar suas qualificações e obter o máximo de retorno de seus investimentos. Para Markovitz, a meritocracia vai expelir a classe média da economia e vida social, por concentrar as fontes vibrantes de criatividade, presentes em Silicon Valley, em uma elite cada vez mais estreita:

Através da meritocracia, as elites monopolizam cada vez mais não apenas a renda, a riqueza e o poder, mas também a indústria, a honra pública e a estima privada. A meritocracia exclui de forma abrangente a classe média da vantagem social e econômica, e ao mesmo tempo recruta sua elite em uma disputa ruinosa para preservar a casta[45].

Reportagem do site Bloomberg, de 03/12/2021 noticia como as Big techs, como Cisco, estão importando o preconceito de castas, presente na Índia, para Silicon Valley, deixando de contratar indianos bem qualificados, mas que são dalits, uma classe considerada inferior na Índia. Para os dalits, estar no campus da faculdade é serem lembrados a todo momento quem eles realmente são, tendo ingressado por quotas e não por mérito. Amit Jatav, um dalit de Karauli, em época de faculdade, não era chamado para grupos de estudos, jantares ou eventos sociais[46].

Essas divisões de classe na Índia ainda permeiam a vida de boa parte dos indianos, ditando como trabalham e cultuam, comem e se casam, possuem terras e votam.

Markovitz vai afirmar que as escolas da elite da Ivy league vão transformar a vida, mídias sociais e finanças:

A meritocracia transforma a Ivy League, o Vale do Silício e Wall Street em arenas para a ambição da elite. Inovadores nesses lugares podem refazer o mundo da vida, transformando a internet (em Stanford e Google), mídias sociais (em Harvard e Facebook), finanças (em Princeton e Wall Street em geral) e milhares de outros domínios menores.[47]

Para ele, a elite transformou o mercado de trabalho em um hobby, enquanto as pessoas comuns trabalham sem recompensa.

A publicação Síntese de Indicadores Sociais, divulgada pelo IBGE em 2020, trouxe estimativas do Banco Mundial baseadas no índice de Gini, instrumento criado pelo matemático italiano Conrado Gini, para medir o grau de concentração de renda no grupo a ser avaliado. A variação numérica é de zero a um, sendo zero quando todos têm a mesma renda e um representando o extremo oposto.

Nesse ranking da desigualdade, o Brasil apresenta 0,539 pelo índice de Gini, com base em dados de 2018. Está enquadrado entre os dez países mais desiguais do mundo, sendo o único latino-americano na lista onde figuram os africanos. O Brasil é mais desigual que Botsuana, com 0,533 pelo índice de Gini, pequeno país vizinho a África do Sul com pouco mais que dois milhões de habitantes[48].

A Síntese dos Indicadores Sociais analisa as condições de vida da população brasileira considerando as linhas sugeridas pelo Banco Mundial e, ainda, os critérios adotados em programas sociais do Governo Federal. Em 2020, o país tinha 7,3 milhões de pessoas (3,5% da população) com rendimento mensal per capita de até R$89, abaixo da linha de pobreza extrema do Bolsa Família. Considerando-se a linha de extrema pobreza do Banco Mundial (renda de US$1,90/dia, ou R$155 mensais per capita), encontramos 12 milhões de pessoas (5,7% da população). Já abaixo da linha do BPC (R$261 per capita), havia 22 milhões de pessoas (10,5%)[49].

O relatório aponta que sem programas sociais, 32,1% da população brasileira estaria em situação de pobreza. Uma em cada três mulheres pretas ou pardas vive em situação de pobreza. Sem programas sociais, rendimento da população mais pobre cairia 75,9% em 2020. O índice Gini de 2020 passaria de 0,524 para 0,573 sem os programas sociais. Menos da metade das mulheres e dos jovens estavam ocupados em 2020. A informalidade atinge 44,7% dos pretos ou pardos e 31,8% dos brancos. Brancos ganharam 73,3% mais do que pretos ou pardos. Em novembro de 2020, 10,8% dos estudantes não tinham atividades escolares. Na pré-pandemia, só 50,4% dos alunos de 15 a 17 anos na rede pública tinham computador. Em 2020, 10,3% da população do país viviam em domicílios sujeitos a inundação. 9,8% da população leva mais de 1 hora para chegar ao trabalho.

Markovitz vai explicar que a meritocracia, como a aristocracia, isola de forma abrangente uma casta de elite do resto da sociedade e permite que essa casta transmita sua vantagem através das gerações. A educação meritocrática privilegia os alunos ricos, os empregos brilhantes, bem como privilegiam os trabalhadores instruídos e os ciclos de feedback entre o treinamento e o trabalho, que garantem que as duas formas de privilégio se apoiem e cresçam juntas (MARKOVITZ, 2019, p.270/271).

O círculo vicioso de falta de políticas públicas, desemprego, miséria, impede qualquer tipo de meritocracia. Não há mérito na miséria, não há mérito na fome, não há mérito na precariedade de todos os dias.

Não há mérito em deixar de estudar porque não se tem condições de pagar uma mensalidade escolar porque não há emprego. Não há mérito em não prestar vestibular em universidades públicas porque ciente que teve uma péssima educação pública de base – você pode tentar 1,2, 20 vezes e “quem sabe”, se não cansar, consegue uma vaga em um curso concorrido em uma universidade pública – e se redobre, desdobre para poder acompanhar as aulas e às vezes conciliá-las com fome, desemprego, precariedade e desalento.

É mérito seu se você conseguir?  - Claro que é. Todos, na mesma situação em que você se encontrava, precisavam passar pelo tanto de privação e frustração que você passou? Quantos chegaram no topo como você, passando pelo que você passou? Quantos desistiram no meio do caminho? Quantos sequer tiveram forças para tentar e continuar tentando? Aos que obtiveram êxito em ultrapassar todas as barreiras e conseguiram chegar no topo, sem apoio de nada e de ninguém, meus parabéns, mas vocês são exceção e não a regra.

Não é a regra ver mulheres na política, mesmo sendo a maior parte do eleitorado. Não é a regra ver a população negra em altos cargos na esfera pública e privada, mesmo sendo a maior parte da população – Censo de 2015 aponta a população negra no Brasil, de 54%. Não é a regra ver mulheres em altos cargos de direção nas empresas, mesmo sendo a maioria nas faculdades e mais especializadas que os homens.

Rosa Luxemburgo, em Acumulação do Capital já dizia que o capitalismo, em certa medida, pelo fracasso em seu desenvolvimento, precisará aplicar princípios do socialismo:

O capitalismo é a primeira forma econômica com capacidade de desenvolvimento mundial. Uma forma que tende a estender-se por todo o âmbito da terra e a eliminar todas as demais formas econômicas; que não tolera a coexistência de nenhum outro. Mas é também a primeira que não pode existir sozinha, sem outras formas econômicas de que possa alimentar-se. Ao mesmo tempo que tende a converter-se em forma única, fracassa pela incapacidade interna de seu desenvolvimento. Ele oferece o exemplo de uma contradição histórica viva. Seu movimento de acumulação é a expressão, a solução progressiva e a intensificação dessa contradição. a certo grau de desenvolvimento, essa contradição só poderá ser resolvida pela aplicação dos princípios do socialismo, isto é, de uma forma econômica que é, por definição, uma forma mundial, um sistema harmonioso em si mesmo, baseado não sobre a acumulação, mas sobre a satisfação das necessidades da humanidade trabalhadora e na expansão de todas as forças produtivas na terra[50].

Em 28 de outubro de 2021 o presidente Biden apresentou propostas de dar a 35 milhões de famílias americanas, cortes de impostos, ao estender o Child Tax Credit – créditos fiscais que se destinam a promover alívio financeiro para os pais de baixa renda e seus filhos. Pretende também expandir o programa Medicare, tornando cuidados auditivos mais acessíveis à população pobre e idosa. Visa cortar $ 17 milhões em impostos para trabalhadores de baixa renda, avançando a equidade por meio de investimentos em programa de saúde materna, bem como desenvolver programas de acessibilidade a moradias populares.

Pré-escolas nos Estados Unidos custam cerca de $ 8.600,00 por ano. Seu programa planeja fornecer pré-escola universal e gratuita para todas as crianças de 3 e 4 anos, o que seria a maior expansão da educação universal e gratuita desde que estados e comunidades de todo o país estabeleceram o ensino médio público há 100 anos[51].

Ou seja, o país mais capitalista, meritocrático e poderoso do mundo está avançando em formas de justiça social, repensando o capitalismo e quiçá começando a entender que ninguém é winner ou loser de forma gratuita, e que a sociedade atual é mais complexa do que se imagina, que não apresenta respostas prontas para todas as questões.

“Poder é infligir dor e humilhação. Poder é estraçalhar a mente humana e depois juntar outra vez os pedaços, dando-lhes a forma que você quiser. E então? Está começando a ver que tipo de mundo estamos criando?[52]

Sobre a autora
Ana Carolina Rosalino Garcia

Advogada graduada em Direito pela Universidade Paulista (2008). Membro da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção São Paulo desde 2009. Pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Paulista de Direito (EPD). Possui MBA em Administração de Empresas com Ênfase em Gestão pela Fundação Getúlio Vargas - FGV / EAESP - Escola de Administração de Empresas de São Paulo. Pós-graduada em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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