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Locação de imóvel residencial via aplicativos, dentro de condomínio estritamente residencial. O que diz o STJ?

Agenda 09/02/2022 às 10:10

Inúmeros questionamentos surgem acerca de locações por aplicativos, de apartamentos situados em condomínios residenciais. Proprietários invocando direito de propriedade e condôminos direito de vizinhança. O que diz o STJ? Descobriremos neste artigo.

Inúmeros condomínios residenciais têm se deparado com a situação de locação por curtos períodos via aplicativos, do tipo Airbnb e Booking.com.

São plataformas on-line de hospedagem em que os interessados podem se hospedar em uma parte ou ocupar o imóvel inteiro, seja casa ou apartamento por curta temporada, ao invés de uma pousada ou local específico de hospedagem.

O consumidor ao invés de alugar um quarto de hotel, opta por utilizar um imóvel normal, onde poderá preparar a sua própria refeição, ter a sensação de estar em casa e economizar.

Tal situação ainda não é prevista em nosso ordenamento jurídico, visto que a modalidade negocial não permite aplicação da Lei n. 11.771/2008, que rege o contrato de hospedagem, e tampouco a Lei n. 8245/1991, de locações.

Como pontuou o ministro Raul Araújo, no voto vencedor do REsp n. 1819075/RS, "A hipótese se enquadraria em contrato atípico de hospedagem porque inexiste, nas peculiares circunstâncias em que se dá a prestação do serviço, qualquer estrutura ou profissionalismo suficiente, para a caracterização da atividade como empresarial e, assim, atrair a incidência da Lei 11.771/2008, no que toca ao turismo e à atividade de hospedagem típica".

O direito de propriedade é protegido constitucionalmente, sendo previsto pela legislação infraconstitucional a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, nos termos do artigo 1228 do Código Civil.

Contudo, sofre limitações, nos termos do paragrafo 1° do citado artigo:

§ 1. O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.

Nos termos do artigo 19 da Lei 4591/64, é expresso o seguinte:

Art. 19. Cada condômino tem o direito de usar e fruir, com exclusividade, de sua unidade autônoma, segundo suas conveniências e interesses, condicionados, umas e outros às normas de boa vizinhança, e poderá usar as partes e coisas comuns de maneira a não causar dano ou incômodo aos demais condôminos ou moradores, nem obstáculo ou embaraço ao bom uso das mesmas partes por todos.

No caso específico de unidade condominial, devem ser observadas as regras contidas nos artigos 1.332 a 1.336 do Código Civil, que, por um lado, reconhecem ao proprietário o direito de usar, fruir e dispor livremente de sua unidade e, de outro, exigem o dever de observar sua destinação e usá-la de maneira não abusiva, com respeito à Convenção Condominial, nos seguintes termos:

Art. 1.332. Institui-se o condomínio edilício por ato entre vivos ou testamento, registrado no Cartório de Registro de Imóveis, devendo constar daquele ato, além do disposto em lei especial:

I - a discriminação e individualização das unidades de propriedade exclusiva, estremadas uma das outras e das partes comuns;

II - a determinação da fração ideal atribuída a cada unidade, relativamente ao terreno e partes comuns;

III - o fim a que as unidades se destinam.

Art. 1.333. A convenção que constitui o condomínio edilício deve ser subscrita pelos titulares de, no mínimo, dois terços das frações ideais e torna-se, desde logo, obrigatória para os titulares de direito sobre as unidades, ou para quantos sobre elas tenham posse ou detenção.

Parágrafo único. Para ser oponível contra terceiros, a convenção do condomínio deverá ser registrada no Cartório de Registro de Imóveis.

Art. 1.334. Além das cláusulas referidas no art. 1.332 e das que os interessados houverem por bem estipular, a convenção determinará:

I - a quota proporcional e o modo de pagamento das contribuições dos condôminos para atender às despesas ordinárias e extraordinárias do condomínio;

II - sua forma de administração;

III - a competência das assembléias, forma de sua convocação e quorum exigido para as deliberações;

IV - as sanções a que estão sujeitos os condôminos, ou possuidores;

V - o regimento interno.

§ 1. A convenção poderá ser feita por escritura pública ou por instrumento particular.

§ 2. São equiparados aos proprietários, para os fins deste artigo, salvo disposição em contrário, os promitentes compradores e os cessionários de direitos relativos às unidades autônomas.

Art. 1.335. São direitos do condômino:

I - usar, fruir e livremente dispor das suas unidades;

II - usar das partes comuns, conforme a sua destinação, e contanto que não exclua a utilização dos demais compossuidores;

III - votar nas deliberações da assembleia e delas participar, estando quite.

Art. 1.336. São deveres do condômino:

I - contribuir para as despesas do condomínio na proporção das suas frações ideais, salvo disposição em contrário na convenção; (Redação dada pela Lei nº 10.931, de 2004)

II - não realizar obras que comprometam a segurança da edificação;

III - não alterar a forma e a cor da fachada, das partes e esquadrias externas;

IV - dar às suas partes a mesma destinação que tem a edificação, e não as utilizar de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes.

§ 1. O condômino que não pagar a sua contribuição ficará sujeito aos juros moratórios convencionados ou, não sendo previstos, os de um por cento ao mês e multa de até dois por cento sobre o débito.

§ 2. O condômino, que não cumprir qualquer dos deveres estabelecidos nos incisos II a IV, pagará a multa prevista no ato constitutivo ou na convenção, não podendo ela ser superior a cinco vezes o valor de suas contribuições mensais, independentemente das perdas e danos que se apurarem; não havendo disposição expressa, caberá à assembleia geral, por dois terços no mínimo dos condôminos restantes, deliberar sobre a cobrança da multa.

Inquestionável, portanto, que o proprietário de imóvel em condomínio edilício pode, em princípio, usar e fruir de sua unidade da forma como melhor lhe convier, desde que em consonância com a legislação e as regras e convenções condominiais.

Há de se pensar também quanto à segurança e perturbação do sossego do local e dos demais condôminos, tendo em vista que a rotatividade de pessoas que não são moradores assíduos desperta certa insegurança e incômodo, devido ao fato de não saber quem frequenta o condomínio, por mais seguro que o seja, assim como a realização de festas e utilização de som alto, sendo imperioso destacar que são de aplicação geral a todos os proprietários de imóveis, de quaisquer natureza, aquelas limitações inerentes aos direitos de vizinhança, que caracterizem uso anormal da propriedade, como dispõe o artigo 1277 do Código Civil:

Art. 1.277. O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha.

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Parágrafo único. Proíbem-se as interferências considerando-se a natureza da utilização, a localização do prédio, atendidas as normas que distribuem as edificações em zonas, e os limites ordinários de tolerância dos moradores da vizinhança.

Destarte, o direito de o proprietário condômino usar, gozar e dispor livremente do seu bem imóvel, nos termos dos artigos 1.228 e 1.335 do Código Civil e do artigo 19 da Lei 4.591/64, deve se coadunar com os direitos relativos à segurança, ao sossego e à saúde dos demais condôminos, de acordo com as limitações aprovadas pela maioria de condôminos, pois são limitações inerentes à natureza da propriedade privada em regime de condomínio edilício.

Mas como o Superior Tribunal de Justiça tem se manifestado nestes casos, para que tomemos um norte e possamos entender um pouco mais a direção que o Judiciário adotará em casos análogos?

No Recurso Especial n. 1819075/RS, de relatoria do ministro Luís Felipe Salomão, em que um edifício de Porto Alegre ajuizou ação cominatória objetivando que proprietária e seu filho se abstivessem de locar seu imóvel a serviços de locação e hospedagem, entendeu por bem que existindo na Convenção de Condomínio regra impondo destinação residencial, mostra-se indevido o uso de unidades particulares que, por sua natureza, implique o desvirtuamento daquela finalidade.

Ou seja, para o Tribunal, se a Convenção Condominial apresenta o local como residencial, a finalidade do ambiente não pode ser desvirtuada, salvo se nova assembleia for realizada e por maioria, permitir a utilização das unidades condominiais para fins de hospedagem atípica, por intermédio de plataformas digitais ou outra modalidade de oferta, ampliando o uso para além do estritamente residencial e, posteriormente, querendo, incorporarem essa modificação à Convenção do Condomínio.

Segue a ementa:

DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. CONDOMÍNIO EDILÍCIO RESIDENCIAL.

AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE NÃO FAZER. LOCAÇÃO FRACIONADA DE IMÓVEL PARA PESSOAS SEM VÍNCULO ENTRE SI, POR CURTOS PERÍODOS. CONTRATAÇÕES CONCOMITANTES, INDEPENDENTES E INFORMAIS, POR PRAZOS VARIADOS.

OFERTA POR MEIO DE PLATAFORMAS DIGITAIS ESPECIALIZADAS DIVERSAS.

HOSPEDAGEM ATÍPICA. USO NÃO RESIDENCIAL DA UNIDADE CONDOMINIAL. ALTA ROTATIVIDADE, COM POTENCIAL AMEAÇA À SEGURANÇA, AO SOSSEGO E À SAÚDE DOS CONDÔMINOS. CONTRARIEDADE À CONVENÇÃO DE CONDOMÍNIO QUE PREVÊ DESTINAÇÃO RESIDENCIAL. RECURSO IMPROVIDO.

1. Os conceitos de domicílio e residência (CC/2002, arts. 70 a 78), centrados na ideia de permanência e habitualidade, não se coadunam com as características de transitoriedade, eventualidade e temporariedade efêmera, presentes na hospedagem, particularmente naqueles moldes anunciados por meio de plataformas digitais de hospedagem.

2. Na hipótese, tem-se um contrato atípico de hospedagem, que se equipara à nova modalidade surgida nos dias atuais, marcados pelos influxos da avançada tecnologia e pelas facilidades de comunicação e acesso proporcionadas pela rede mundial da internet, e que se vem tornando bastante popular, de um lado, como forma de incremento ou complementação de renda de senhorios, e, de outro, de obtenção, por viajantes e outros interessados, de acolhida e abrigo de reduzido custo.

3. Trata-se de modalidade singela e inovadora de hospedagem de pessoas, sem vínculo entre si, em ambientes físicos de estrutura típica residencial familiar, exercida sem inerente profissionalismo por aquele que atua na produção desse serviço para os interessados, sendo a atividade comumente anunciada por meio de plataformas digitais variadas. As ofertas são feitas por proprietários ou possuidores de imóveis de padrão residencial, dotados de espaços ociosos, aptos ou adaptados para acomodar, com certa privacidade e limitado conforto, o interessado, atendendo, geralmente, à demanda de pessoas menos exigentes, como jovens estudantes ou viajantes, estes por motivação turística ou laboral, atraídos pelos baixos preços cobrados.

4. Embora aparentemente lícita, essa peculiar recente forma de hospedagem não encontra, ainda, clara definição doutrinária, nem tem legislação reguladora no Brasil, e, registre-se, não se confunde com aquelas espécies tradicionais de locação, regidas pela Lei 8.245/91, nem mesmo com aquela menos antiga, genericamente denominada de aluguel por temporada (art. 48 da Lei de Locações).

5. Diferentemente do caso sob exame, a locação por temporada não prevê aluguel informal e fracionado de quartos existentes num imóvel para hospedagem de distintas pessoas estranhas entre si, mas sim a locação plena e formalizada de imóvel adequado a servir de residência temporária para determinado locatário e, por óbvio, seus familiares ou amigos, por prazo não superior a noventa dias.

6. Tampouco a nova modalidade de hospedagem se enquadra dentre os usuais tipos de hospedagem ofertados, de modo formal e profissionalizado, por hotéis, pousadas, hospedarias, motéis e outros estabelecimentos da rede tradicional provisora de alojamento, conforto e variados serviços à clientela, regida pela Lei 11.771/2008.

7. O direito de o proprietário condômino usar, gozar e dispor livremente do seu bem imóvel, nos termos dos arts. 1.228 e 1.335 do Código Civil de 2002 e 19 da Lei 4.591/64, deve harmonizar-se com os direitos relativos à segurança, ao sossego e à saúde das demais múltiplas propriedades abrangidas no Condomínio, de acordo com as razoáveis limitações aprovadas pela maioria de condôminos, pois são limitações concernentes à natureza da propriedade privada em regime de condomínio edilício.

8. O Código Civil, em seus arts. 1.333 e 1.334, concede autonomia e força normativa à convenção de condomínio regularmente aprovada e registrada no Cartório de Registro de Imóveis competente. Portanto, existindo na Convenção de Condomínio regra impondo destinação residencial, mostra-se indevido o uso de unidades particulares que, por sua natureza, implique o desvirtuamento daquela finalidade (CC/2002, arts. 1.332, III, e 1.336, IV).

9. Não obstante, ressalva-se a possibilidade de os próprios condôminos de um condomínio edilício de fim residencial deliberarem em assembleia, por maioria qualificada (de dois terços das frações ideais), permitir a utilização das unidades condominiais para fins de hospedagem atípica, por intermédio de plataformas digitais ou outra modalidade de oferta, ampliando o uso para além do estritamente residencial e, posteriormente, querendo, incorporarem essa modificação à Convenção do Condomínio.

10. Recurso especial desprovido.

(REsp 1819075/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Rel. p/ Acórdão Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 20/04/2021, DJe 27/05/2021)

Nos termos do artigo 23 da Lei n. 11.771/2008, que estabelece normas sobre a Política Nacional de Turismo, é asseverado o seguinte:

Art. 23. Consideram-se meios de hospedagem os empreendimentos ou estabelecimentos, independentemente de sua forma de constituição, destinados a prestar serviços de alojamento temporário, ofertados em unidades de frequência individual e de uso exclusivo do hóspede, bem como outros serviços necessários aos usuários, denominados de serviços de hospedagem, mediante adoção de instrumento contratual, tácito ou expresso, e cobrança de diária.

§ 1. Os empreendimentos ou estabelecimentos de hospedagem que explorem ou administrem, em condomínios residenciais, a prestação de serviços de hospedagem em unidades mobiliadas e equipadas, bem como outros serviços oferecidos a hóspedes, estão sujeitos ao cadastro de que trata esta Lei e ao seu regulamento.

§ 2. Considera-se prestação de serviços de hospedagem em tempo compartilhado a administração de intercâmbio, entendida como organização e permuta de períodos de ocupação entre cessionários de unidades habitacionais de distintos meios de hospedagem.

§ 3. Não descaracteriza a prestação de serviços de hospedagem a divisão do empreendimento em unidades hoteleiras, assim entendida a atribuição de natureza jurídica autônoma às unidades habitacionais que o compõem, sob titularidade de diversas pessoas, desde que sua destinação funcional seja apenas e exclusivamente a de meio de hospedagem.

§ 4. Entende-se por diária o preço de hospedagem correspondente à utilização da unidade habitacional e dos serviços incluídos, no período de 24 (vinte e quatro) horas, compreendido nos horários fixados para entrada e saída de hóspedes.

Perceba que o contrato de hospedagem abrange uma série de serviços, tais como portaria, segurança, limpeza, arrumação dos cômodos, entre outros, excluindo, ainda, qualquer utilização para fins residenciais, sendo essa lei voltada para estabelecimentos de hotelaria.

No que toca a Lei do inquilinato, 8245/1991, também não há possibilidade de ser aplicada no caso em tela, haja vista a Seção II do capítulo locação por temporada, artigos 48 a 50 preverem locação por temporada por até 90 dias, mas em casos específicos:

Art. 48. Considera - se locação para temporada aquela destinada à residência temporária do locatário, para prática de lazer, realização de cursos, tratamento de saúde, feitura de obras em seu imóvel, e outros fatos que decorrem tão-somente de determinado tempo, e contratada por prazo não superior a noventa dias, esteja ou não mobiliado o imóvel.

Parágrafo único. No caso de a locação envolver imóvel mobiliado, constará do contrato, obrigatoriamente, a descrição dos móveis e utensílios que o guarnecem, bem como o estado em que se encontram.

Art. 49. O locador poderá receber de uma só vez e antecipadamente os aluguéis e encargos, bem como exigir qualquer das modalidades de garantia previstas no art. 37 para atender as demais obrigações do contrato.

Art. 50. Findo o prazo ajustado, se o locatário permanecer no imóvel sem oposição do locador por mais de trinta dias, presumir - se - á prorrogada a locação por tempo indeterminado, não mais sendo exigível o pagamento antecipado do aluguel e dos encargos.

Parágrafo único. Ocorrendo a prorrogação, o locador somente poderá denunciar o contrato após trinta meses de seu início ou nas hipóteses do art. 47.

Veja que a locação é destinada para realização de cursos, tratamento de saúde, realização de obras etc., e não faz referência a hóspedes e sim locatários, bem como exige a confecção de contrato por escrito.

Acerca dos contratos de locação por temporada, ensina Sílvio de Salvo Venosa: "Como existe um prazo determinado para essa modalidade de locação, noventa dias, há necessidade de contrato escrito. A locação verbal não pode reger esta situação, já que fica subordinada ao art. 47. [...] Na prática, porém, como se trata de locação excepcional e a prazo certo, se toma incompatível com o contrato verbal. Deve ao menos existir prova escrita de que se trata de locação por temporada. (Venosa, Silvio de Salvo, Lei do Inquilinato Comentada: doutrina e prática, São Paulo: Atlas, 2014, p. 232/234).

Consoante voto vencedor do REsp n. 1819075/RS, do ministro Raul Araújo, assim restou decidido: "Portanto, existindo na Convenção de Condomínio regra impondo destinação residencial, mostra-se indevido o uso das unidades particulares que, por sua natureza, implique o desvirtuamento daquela finalidade residencial (CC/2002, arts. 1.332, III, e 1.336, IV). Não obstante isso, ressalva-se a possibilidade de que os próprios condôminos de um condomínio edilício residencial deliberem em assembleia, por maioria qualificada (de dois terços das frações ideais), permitir a utilização das unidades condominiais para fins de hospedagem, por intermédio de plataformas digitais ou outra modalidade de oferta, ampliando seu uso para além do estritamente residencial e, posteriormente, incorporem essa modificação à Convenção do Condomínio".

Outro REsp, julgado recente, publicado em fevereiro desse ano de 2022, REsp 1884483/PR, de relatoria do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, negou provimento ao recurso especial de proprietário que objetivava a anulação de assembleia condominial que decidiu impedir a locação não residencial, inferior a 90 dias, no prédio.

Segue a ementa:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. AÇÃO DE ANULAÇÃO DE ASSEMBLEIA CONDOMINIAL. CONVENÇÃO. DESTINAÇÃO EXCLUSIVAMENTE RESIDENCIAL.

PREVISÃO. LOCAÇÃO. PRAZO INFERIOR A 90 (NOVENTA) DIAS. PROIBIÇÃO.

POSSIBILIDADE. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE. ART. 1.336, IV, DO CÓDIGO CIVIL. USO DE PLATAFORMAS DIGITAIS. ASPECTO IRRELEVANTE.

1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ).

2. Delimitação da controvérsia: saber se os condomínios residenciais podem ou não fixar tempo mínimo de locação das unidades autônomas ou até mesmo impedir a utilização de determinado meio para tal finalidade, a exemplo das plataformas digitais de hospedagem.

3. A disponibilização de espaços ociosos para uso de terceiros, seja de um imóvel inteiro ou de um único cômodo, pode ocorrer das mais variadas formas: por meio de plataformas digitais, por intermédio de imobiliárias, por simples panfletos afixados nas portarias dos edifícios, anúncios em classificados etc.

4. A forma por meio da qual determinado imóvel é disponibilizado para uso de terceiros não é o fator decisivo para que tal atividade seja enquadrada em um ou outro regramento legal.

5. A disponibilização de imóveis para uso de terceiros por meio de plataformas digitais de hospedagem, a depender do caso concreto, pode ser enquadrada nas mais variadas hipóteses existentes no ordenamento jurídico, sobretudo em função da constante expansão das atividades desenvolvidas por empresas do gênero.

6. Somente a partir dos elementos fáticos delineados em cada hipótese submetida à apreciação judicial - considerados aspectos relativos ao tempo de hospedagem, ao grau de profissionalismo da atividade, à destinação exclusiva do imóvel ao ocupante ou o seu compartilhamento com o proprietário, à destinação da área em que ele está inserido (se residencial ou comercial), à prestação ou não de outros serviços periféricos, entre outros - é que se afigura possível enquadrar determinada atividade em alguma das hipóteses legais, se isso se mostrar relevante para a solução do litígio.

7. O enquadramento legal da atividade somente se mostra relevante quando se contrapõem em juízo os interesses do locador e do locatário, do hospedeiro e do hóspede, enfim, daquele que disponibiliza o imóvel para uso e do terceiro que o utiliza, visando, com isso, definir o regramento legal aplicável à relação jurídica firmada entre eles.

8. Diversa é a hipótese em que o conflito se verifica na relação entre o proprietário do imóvel que o disponibiliza para uso de terceiros e o próprio condomínio no qual o imóvel está inserido, atingindo diretamente os interesses dos demais condôminos.

9. A exploração econômica de unidades autônomas mediante locação por curto ou curtíssimo prazo, caracterizada pela eventualidade e pela transitoriedade, não se compatibiliza com a destinação exclusivamente residencial atribuída ao condomínio.

10. A afetação do sossego, da salubridade e da segurança, causada pela alta rotatividade de pessoas estranhas e sem compromisso duradouro com a comunidade na qual estão temporariamente inseridas, é o que confere razoabilidade a eventuais restrições impostas com fundamento na destinação prevista na convenção condominial.

11. O direito de propriedade, assegurado constitucionalmente, não é só de quem explora economicamente o seu imóvel, mas sobretudo daquele que faz dele a sua moradia e que nele almeja encontrar, além de um lugar seguro para a sua família, a paz e o sossego necessários para recompor as energias gastas ao longo do dia.

12. Recurso especial não provido. (REsp 1884483/PR, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 23/11/2021, REPDJe 02/02/2022, DJe 16/12/2021)

Em trecho do voto do relator leia-se o seguinte:

Consoante o disposto nos arts. 1.332, 1.333 e 1.344 do Código Civil de 2002, a convenção condominial é a norma interna que disciplina as relações entre os condôminos, a forma de administração, a competência das assembleias, a forma de convocação e o quórum exigido para as deliberações, o uso de áreas exclusivas e comuns, o rateio de despesas ordinárias e extraordinárias, as sanções disciplinares etc.

O Código Civil permite à convenção ter outras regras que os "interessados houverem por bem estipular" (art. 1.334, caput). Desse modo, o rol das matérias previstas nos dispositivos acima indicados é meramente exemplificativo, revelando o conteúdo mínimo da regulamentação do condomínio.

Assim, a convenção representa o exercício da autonomia privada, cabendo aos interessados suprir as disposições legais em atenção às condições peculiares de cada condomínio (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e Incorporações - 12. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2016, pág. 94).

A exploração econômica de unidades autônomas mediante locação por curto ou curtíssimo prazo, caracterizadas pela eventualidade e pela transitoriedade, não se coaduna com a destinação exclusivamente residencial atribuída ao condomínio.

Nos condomínios que oferecem diversas opções de lazer (salões de festas, quadras esportivas, churrasqueiras, piscinas, saunas, playgrounds etc.), por vezes confundidos com clubes recreativos, a própria demanda por espaços de uso comum é diretamente afetada. Com efeito, a intenção de quem ali se encontra provisoriamente é aproveitar ao máximo os poucos dias de permanência comportamento que muito difere do uso ordinário conferido por aqueles que lá residem , a ensejar, além do incremento nas despesas de manutenção, a insuficiência dos espaços de uso comum, normalmente planejados para atender à demanda ordinária dos residentes.

Essa mesma diferença de comportamentos, a propósito, tem notório potencial para afetar o sossego e a salubridade das pessoas que vivem em condomínio. De fato, o estado de ânimo daqueles que utilizam seus imóveis para fins residenciais não é o mesmo de quem se vale de um espaço para aproveitar suas férias, valendo também lembrar que as residências são cada vez mais utilizadas para trabalho em regime de home office, para o qual se exige maior respeito ao silêncio, inclusive no período diurno.

No primeiro caso, Recurso Especial n. 1819075/RS, de relatoria do ministro Luís Felipe Salomão, decidiu-se pela impossibilidade de locação não residencial em condomínios estritamente residenciais, salvo alteração de convenção condominial via assembleia, por maioria qualificada.

No segundo caso, Recurso Especial n. 1884483/PR, de relatoria do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, decidiu-se pela impossibilidade de anulação de assembleia que impedia a locação de qualquer unidade por período inferior a 90 dias, entendendo o Tribunal que se trataria de exploração comercial do condomínio via hospedagem, que geraria o desvirtuamento da finalidade residencial do condomínio.

A teor dos julgados, o STJ tem seguido a Convenção do Condomínio e sua finalidade estritamente residencial, que vedaria qualquer tipo de exploração comercial no local.

Encontra-se em trâmite projeto de lei (PL n. 2.474/2019, de autoria do Senador Ângelo Coronel) que propõe a alteração da Lei n. 8.245, de 18 de outubro de 1991, "para disciplinar a locação de imóveis residenciais por temporada por meio de plataformas de intermediação ou no âmbito da economia compartilhada", fazendo inserir o art. 50-A ao referido estatuto legal, entretanto, ainda não há data para ser aprovado e entrar em vigor.

Os proprietários que pretendam explorar esse tipo de atividade devem convocar uma assembleia extraordinária e deliberarem a respeito e de acordo com a maioria qualificada, mudar sua convenção com a finalidade de permitir esse tipo de contrato de hospedagem atípico.

Sobre a autora
Ana Carolina Rosalino Garcia

Advogada graduada em Direito pela Universidade Paulista (2008). Membro da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção São Paulo desde 2009. Pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Paulista de Direito (EPD). Possui MBA em Administração de Empresas com Ênfase em Gestão pela Fundação Getúlio Vargas - FGV / EAESP - Escola de Administração de Empresas de São Paulo. Pós-graduada em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

Informações sobre o texto

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