Introdução
O presente trabalho se presta à análise dos principais aspectos inerentes ao crime de apropriação indébita previdenciária, o qual foi inserido no Código Penal brasileiro pela Lei 9.983/00.
Inicialmente equiparado ao crime de apropriação indébita comum e agora tido como delito omissivo próprio, a apropriação indébita previdenciária não exige o animus rem sibi habendi, bastando para sua configuração o não repasse à Previdência Social das contribuições recolhidas dos segurados ou do público.
Sendo o objetivo do legislador compelir os responsáveis ao recolhimento das contribuições então retidas, extingue-se a punibilidade mediante o pagamento da dívida, podendo ser suspensa a pretensão punitiva em caso de parcelamento.
O Decreto - Lei 65, de 14 de dezembro de 1937, já previa em seu artigo 5° que "o empregador que retiver as contribuições recolhidas de seus empregados e não recolher na época própria incorrerá nas penas do art. 331, n° 2 da consolidação das Leis Penais".
Com o advento da Lei Orgânica da Previdência Social, a Lei 3.807, de 26 de agosto de 1960, o fato do não recolhimento das contribuições arrecadadas dos segurados ou do público às instituições de previdência, foi equiparado ao crime de apropriação indébita. A previsão da penalização da referida conduta estava no artigo 86 e, alterado pelo Decreto -Lei 66/66, também no artigo 155 da mencionada lei.
Em 24 de julho de 1991, foi sancionada a Lei 8.212, a qual dispunha sobre a organização da Seguridade Social. No artigo 95, alínea a, desta lei, estava previsto a constituição de crime quando o empregador "deixasse de recolher, na época própria, contribuição ou outra importância devida à Seguridade Social e arrecadada dos segurados ou do público". A pena cominada ao referido delito, prevista no artigo 5° da Lei 7.492/86, era de reclusão de dois a seis anos e multa.
Por fim, a Lei n° 9.983, de 14 de julho de 2000, introduziu no Código Penal Brasileiro, o artigo 168 - A, tido como tipo penal de apropriação indébita previdenciária, in verbis:
Art. 168 - A. Deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
§ 1°Nas mesmas penas incorre quem deixar de:
I - recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à previdência social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados, a terceiros ou arrecadada do público;
II - recolher contribuições devidas à previdência social que tenham integrado despesas contábeis ou custos relativos à venda de produtos ou à prestação de serviços;
III - pagar benefício devido a segurado, quando as respectivas cotas ou valores já tiverem sido reembolsados à empresa pela previdência social.
§ 2° É extinta a punibilidade se o agente, espontaneamente, declara, confessa e efetua o pagamento das contribuições, importâncias ou valores e presta as informações devidas à previdência social, na forma definida em lei ou regulamento, antes do início da ação fiscal.
§ 3° É facultado ao juiz deixar de aplicar a pena ou aplicar somente a de multa se o agente for primário e de bons antecedentes, desde que:
I - tenha promovido, após o início da ação fiscal e antes de oferecida a denúncia, o pagamento da contribuição social previdenciária, inclusive acessórios; ou
II - o valor das contribuições devidas, inclusive acessórios, seja igual ou inferior àquele estabelecido pela previdência social, administrativamente, como sendo o mínimo para o ajuizamento de suas execuções fiscais.
O crime de apropriação indébita previdenciária é tido pela doutrina majoritária como um delito omissivo próprio e formal, pois consiste em não realizar conduta, qual seja recolher à Previdência Social as contribuições arrecadadas dos segurados ou do público, impossibilitada, portanto, a modalidade tentada e, desnecessário um resultado, no caso in tela, o proveito por parte do sujeito ativo.
No que tange a definição de conduta omissiva ou comissiva, Damásio Evangelista de Jesus entende que a apropriação indébita previdenciária "trata - se de crime de conduta mista, posto que, anterior à conduta omissiva (deixar de repassar), existe uma conduta comissiva estribada na ação de recolher.
Consoante lição de LUIZ RÉGIS PRADO, "a consumação ocorre quando o responsável tributário, embora tenha deduzido a contribuição social dos pagamentos já referidos, deixa de recolhê -la no prazo legal fixado pela mencionada legislação." No mesmo sentido, FERNANDO CAPEZ afirma que o crime de apropriação indébita previdenciária "consuma - se no momento em que se exaure o prazo legal ou convencional assinalado para o recolhimento das contribuições.
O crime de apropriação indébita previdenciária é, via de regra, continuado, pois as contribuições sociais são mensalmente descontas dos assegurados nas condições e lugar do "crime", não podendo configurar crime habitual, nem permanente.
O Núcleo do tipo consiste em "deixar de repassar" as contribuições retidas dos contribuintes. O sujeito ativo pode ser a empresa que, recolhidas as contribuições dos segurados, ou a instituição financeira que, recolhidas as contribuições do público, as deixa de repassar à Previdência Social nos prazos e formas legalmente estabelecidos. O sujeito passivo é o Estado, mais especificamente a própria Previdência Social Pública.
Relevante trazer a lição de Jefferson Aparecido Dias, que afirma não há que se falar em ação penal se não transitado em julgado administrativamente, para que então se diga crédito tributário, o STF pacificou as controvérsias a respeito no HC 81.611 - DF, mas há uma corrente majoritária da doutrina e jurisprudencia que entende que deve haver o exaurimento do procedimento "administrativo - fiscal" para propositura de ação penal.
O principal aspecto diferenciador da apropriação indébita previdenciária da apropriação indébita comum decorre do núcleo de cada um dos tipos. Enquanto o delito de apropriação indébita comum, previsto no artigo 168 do Código Penal Brasileiro, consiste em" apropriar - se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção", ou seja, exige -se o animus rem sibi habendi. Por outro lado, para configurar o crime de apropriação indébita previdenciária, basta a ausência do recolhimento das contribuições recolhidas dos segurados ou do público no prazo e forma convencional.
Como já mencionado anteriormente o que se exige para configuração do crime de apropriação indébita previdenciária é apenas o dolo genérico, consistente na ausência do repasse à Previdência Social das contribuições recolhidas dos empregados, no caso da empresa, e do público, no caso das instituições financeiras. E, em que pese tratar de crime formal, inexige - se o resultado, qual seja o proveito em favor do sujeito ativo.
O tipo subjetivo está representado pelo dolo, consubstanciado pela consciência e vontade de não proceder à entrega à previdência social da contribuição recolhida dos contribuintes, no caso do caput e dos incisos I e II do artigo 168 - A. No caso do inciso III o tipo subjetivo é integrado pelo dolo, consistente na consciência e vontade de não efetuar o pagamento do beneficiário do salário - família ao segurado, apesar de ter sido o agente reembolsado pelo órgão previdenciário.
O parágrafo 2º do artigo 168 - A trata da extinção da punibilidade no crime em comento dispondo que "é extinta a punibilidade se o agente, espontaneamente, declara, confessa e efetua o pagamento das contribuições, importâncias ou valores e presta as informações devidas à previdência social, na forma definida em lei ou regulamento, antes do início da ação fiscal." Da leitura do referido dispositivo é possível enumerar os seguintes requisitos para que ocorra a extinção da pretensão punitiva: a) Espontaneidade; b) Declaração e confissão da quantia devida a título de contribuição social previdenciária, importâncias ou valores (correção monetária, juros de mora); c) Prestação das informações devidas à previdência, na forma legal ou regulamentar; d) Pagamento das contribuições e demais valores confessados e e) Realização dos procedimentos antes do início da Ação Fiscal;
Por ser o objetivo da tipificação penal da estudada conduta apenas a arrecadação das contribuições indevidamente apropriadas, o judiciário passou a prever a suspensão da pretensão punitiva quando do parcelamento dos débitos, principalmente com o advento da Lei 10.684, de 30 de maio de 2003, que assim dispõe em seu artigo 9º:
Art. 9° É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1º e 2º da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168A e 337A do Decreto - Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento. § 1° A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva. § 2° Extingue - se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios.
O §3° do artigo 168 - A autoriza o juiz a deixar de aplicar a pena ou impor tão somente a pena de multa quando presentes as condições subjetivas mencionadas no caput (primariedade e bons antecedentes) e desde que o agente tenha efetuado o pagamento do débito, incluindo os seus acessórios (multa, juros, correção monetária), após o desencadeamento do procedimento fiscal, mas antes do oferecimento da denúncia (inciso I), ou quando o valor das contribuições devidas, inclusive acessórios, seja igual ou inferior àquela estabelecido pela Previdência Social, administrativamente, como sendo o mínimo para ajuizamento de suas execuções fiscais (inciso II). Segundo preleciona Guilherme de Souza Nucci:
tendo em vista que o legislador previu hipótese alternativa, mas impôs condições cumulativas para as duas, é preciso distinguir quando o magistrado deve aplicar o perdão judicial e quando deve aplicar somente multa. Assim, para um ou para outro benefício demanda - se primariedade, bons antecedentes e pagamento integral da dívida ou pequeno valor das contribuições devidas. Parece - nos que a escolha deve fundar - se nos demais elementos norteadores, sempre, da análise do agente do crime, que são as circunstâncias judiciais do art. 59 do CP. Dessa forma, a verificação da personalidade e da conduta social do autor, dos motivos do delito e das circunstâncias e consequências da infração penal, que constituem a culpabilidade, maior ou menor reprovação social do que foi feito, levarão o juiz à decisão mais justa: perdão ou multa.
Conclusão
O delito de apropriação indébita previdenciária é crime omissivo próprio, consistente na conduta de não repassar à Previdência Social as contribuições recolhidas dos segurados, no caso do empregador, ou do público, no caso das instituições financeiras.
Para configuração da apropriação indébita previdenciária não se exige dolo específico, qual seja o animus rem sibi habendi, tampouco demonstração de proveito por parte do sujeito ativo.
O crime de apropriação indébita previdenciária não se confunde com a apropriação indébita comum, onde se faz necessário dolo específico, nem se assemelha à sonegação de contribuição previdenciária, a qual consiste em reduzir o valor das contribuições previdenciárias mediante atos fraudulentos.
A pena de reclusão prevista para o delito é prisão criminal e não prisão civil por dívida. Inobstante isso, a pretensão punitiva pode ser extinta ou suspensa caso haja o pagamento ou o parcelamento da dívida antes do início da ação fiscal, o que demonstra o objetivo do tipo penal que é senão compelir os responsáveis ao recolhimento das contribuições então retidas.
REFERÊNCIAS
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal parte especial. São Paulo: Saraiva, 2014;
DIAS, Jefferson Aparecido. Crime de apropriação indébita previdenciária. Curitiba: Juruá, 2007;
JESUS, Damásio Evangelista. Crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012;
MARTINS, Sergio Pinto. Direito da seguridade social. São Paulo: Atlas 2016;
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2013;
PRADO, Luiz Régis. Curso de direito penal brasileiro volume 2 parte especial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010;