A CADEIA DE CUSTÓDIA DAS PROVAS OBTIDAS NA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL
Há um certo destaque nos procedimentos de custódia trazidos pela Lei n. 13.964/2019, conhecida como Lei Anticrime, inserindo artigos complementares ao capítulo do Código de Processo Penal que trata sobre a cadeia de custódia e perícias em geral.
Daí a imprescindibilidade da cadeia de custódia quando as infrações penais deixam vestígios, ainda mais quando se tratam de vestígios digitais, estes que por muitos anos sequer faziam parte do objeto central de investigações criminais.
Quanto aos cuidados destacados à cadeia de custódia dos dispositivos eletrônicos apreendidos em sede investigativa e a posterior quebra de sigilo que decorrerá de tais apreensões, aliada à chamada investigação criminal moderna, se traz a seguinte explicação[40]:
A confiança não de depende de quanto um sabe sobre o outro, mas do quê. Sempre mantemos segredos uns dos outros. Os computadores são diferentes. Eles sabem tudo sobre você. Seu histórico do Google, quem segue no Instagram, o que curte no TikTok. Sabem exatamente quem você é. Um estudo provou que uma IA (inteligência artificial) só precisa de cinco fotos suas para determinar sua orientação sexual. (grifo nosso).
Sobre o decisionismo judicial, Geraldo Prado[41] assinala que as medidas cautelares destinadas ao meio de prova podem causar danos e gerar estigmas muito mais duradouros que a própria sanção penal, devendo o juiz ser cauteloso ao deferi-las:
Autorizar a captação de conversas, por telefone ou ambientalmente, devassar a vida financeira e fiscal do indivíduo, afastá-lo do trabalho ou do convívio social ou familiar ou ordenar o ingresso em seu domicílio são práticas processuais muitas vezes necessárias para a apuração das infrações penais, mas a sua adoção carrega consigo imenso potencial de lesão aos bens jurídicos contemplados nos direitos individuais, danos produzidos às vezes de modo irreparável.
Nesta linha cautelosa, traz-se o exemplo do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, o qual emitiu decisões firmando o entendimento pela férrea proteção do direito ao segredo das comunicações, que cobre não só o conteúdo do comunicado, mas também abarca todo o processo comunicativo[42].
Na mesma esteira, tal fala reforça a disposição do art. 8º do Convênio Europeu de Direitos Humanos[43], fortalecendo a incolumidade de determinadas esferas da vida privada reguladas pelo referido artigo.
É justamente nesta ideia de modernização das investigações através do avanço tecnológico que visa a presente pesquisa analisar, já que a atuação dos métodos ocultos parece ser capaz de realizar os objetivos pretendidos pela filosofia da consciência[44] que é assegurar o acesso à realidade, algo como a verdade como ela é ou, a tão conhecida verdade real (fato puro).
Pierre Lévy[45], sobre o tema assevera que:
A cidade planetária. A tendência desenha-se nitidamente. Nas primeiras décadas do século XXI, mais de 80 por centro dos seres humanos terão acesso ao ciberespaço e servir-se-ão dele quotidianamente. A maior parte da vida social servir-se-á deste meio de comunicação. Os processos de concepção, de produção e de comercialização serão integralmente condicionados pela sua dimensão no espaço virtual. As atividades de investigação, de aprendizagem e de lazer serão virtuais ou dirigidas pela economia virtual. O ciberespaço será o epicentro do mercado, o foco de criação e da aquisição dos conhecimentos, o principal meio de comunicação e da vida social. A internet representa simplesmente o estádio de união da humanidade que sucede à cidade física. (grifo nosso).
Ante tais inovações, os métodos ocultos de investigação ancoram-se no avanço tecnológico não apenas configurando novos suportes comunicacionais, mas também instituindo uma original subjetividade, desafiando muito mais do que os já conhecidos cuidados com a autenticidade dos dados, adentrando as questões de fiabilidade probatória[46].
Nas palavras de Girlei Veloso Marinho[47], sobre a fiabilidade probatória:
A cadeia de custódia é constituída por uma série de atos interligados, sem deixar lacuna, visando a segurança e confiabilidade do processo em que os vestígios estão submetidos, bem como a manutenção da integridade conforme sua natureza. Todos os atos devem ser registrados, inclusive os profissionais que preservaram o local e os que manusearam com os vestígios desde a coleta, transporte, recebimento pelos órgãos de perícia oficial e armazenamento. (grifo nosso).
Com o incremento legal da Lei n. 13.964/2019, ou Pacote Anticrime, a inserção do art. 158-A no Código de Processo Penal, dando maiores detalhes e métodos sobre a cadeia de custódia, ajuda a nortear a formação de um protocolo que culmina em maiores cuidados com os elementos de prova.
Não à toa que a justificativa para os incrementos trazidos pela Lei n. 13.964/2019 foi a seguinte[48]:
A disciplina da cadeia de custódia para maior eficiência da perícia criminal e consequente combate à criminalidade também é essencial. A cadeia de custódia é fundamental para garantir a idoneidade e a rastreabilidade dos vestígios, com vistas a preservar a confiabilidade e a transparência da produção da prova pericial até a conclusão do processo judicial. A garantia da cadeia de custódia confere aos vestígios certificação de origem e destinação e, consequentemente, atribui à prova pericial resultante de sua análise, credibilidade e robustez suficientes para propiciar sua admissão e permanência no elenco probatório. Com a criação de centrais de custódia, é possível garantir que os materiais relacionados a crimes estarão sempre à disposição da polícia e da Justiça quando for necessária a realização de novas perícias a fim de dirimir dúvidas que surjam no decorrer do inquérito policial ou processo criminal.
Sobre o tema, Rogério Sanches Cunha[49] lembra que uma cadeia de custódia fidedigna aos ditames legais acaba por diminuir a probabilidade de adulteração daquele elemento colhido, seja pela forma acidental ou dolosa, garantindo sua autenticidade.
Assim, exige-se fiscalização e controle da aplicação de tais medidas, servindo de complemento indispensável ao regime de limitação dos direitos fundamentais[50] e, na visão de Geraldo Prado[51]:
A razão da reserva de jurisdição, no marco de referências da redução de complexidade que as garantias desafiam decorre da preocupação com relação aos métodos ocultos de investigação, cuidado de procede em consideração ao engenho tecnológico usualmente empregado para a aquisição das informações pesquisadas, e que tem por objetivo preservar a fiabilidade do material probatório obtido no âmbito da investigação. A rede de garantias constitucionais formada para assegurar o axioma nulla poena sine probatione estaria em risco se desconsiderasse a possibilidade de manipulação dos suportes, em regra digitais, que recepcionam o resultado das diligências executadas com base em interceptações telefônicas, de e-mails, ambientais, infiltração de policiais e colaboração premiada. E neste contexto, a preservação das fontes de prova é concebida como remédio jurídico-processual contra o desequilíbrio inquisitório, caracterizado pela seleção e uso arbitrário de elementos pelas agências repressivas. (grifo nosso).
Geraldo Prado[52] cita o fenômeno break on the chain of custody, o qual justamente deve ser evitado, sempre buscando preservar a idoneidade da prova de forma sigilosa e em ambiente reservado, de modo a não comprometer o conjunto de informações angariadas na investigação criminal devendo, direta ou indiretamente, serem fixados pontos nucleares para a execução da medida.
Buscado no Direito Português, a título de exemplo, o art. 187 do Código de Processo Penal português trata em delinear o regime das escutas telefônicas, enquanto o art. 188 dá sua sequência tratando das formalidades operacionais, estipulando os sujeitos responsáveis pela medida, o órgão com atribuição para tal, as cautelas a serem tomadas, o dever de reporte ao Ministério Público em prazo determinado, etc[53].
Tendo em vista que os suportes técnicos integram os protocolos a serem utilizados na manutenção da cadeia de custódia, imperioso reproduzir o conceito trazido pela doutrina de perícia criminal[54]:
Claro está que a finalidade em se garantir a cadeia de custódia é para assegurar a idoneidade dos objetos e bens escolhidos pela perícia ou apreendidos pela autoridade policial, a fim de evitar qualquer tipo de dúvida quanto à sua origem e caminho percorrido durante a investigação criminal e o respectivo processo judicial. Importante esclarecer que a cadeia de custódia não está restrita só ao âmbito da pericial criminal, mas envolve desde a delegacia policial, quando apreende algum objeto e já deve observar com rigor tais procedimentos da cadeia de custódia. Podemos voltar mais ainda: qualquer policial, seja ele civil ou militar, que for receptor de algum objeto material que possa estar relacionado a alguma ocorrência, deve também já no seu recebimento ou achado proceder com os cuidados da aplicação da cadeia de custódia. [...] Muitas situações já são conhecidas sobre fatos dessa natureza, nas quais é levantada a suspeição sobre as condições de determinado objeto ou sobre a própria certeza de ser aquele o material que de fato foi apreendido ou periciado. Assim, o valor probatório de uma evidência ou documento será válido se não tiver sua origem e tramitação questionada. Qualquer questionamento acarretará prejuízo para o processo como um todo. (grifo nosso).
Em comparação ao direito norte-americano, divergente do cenário brasileiro, lá se constitui obrigação da acusação em estabelecer a cadeia de custódia das provas, identificando os elos que compõem as atividades probatórias para aferir o valor das informações angariadas[55]:
We now hold that the suppression by the prosecution of evidence favorable to an accused upon request violates due process where the evidence is material either to guilt or to punishment, irrespective of the good faith or bad faith of the prosecution.
E ainda:
"Where the substance analyzed has passed through several hands the evidence must not leave it to conjecture as to who had it and what was done with it between the taking and the analysis." Benton, 232 S.C. at 33-34, 100 S.E.2d at 537 (citation omitted). "Testimony from each custodian of fungible evidence, however, is not a prerequisite to establishing a chain of custody sufficient for admissibility." Sweet, 374 S.C. at 7, 647 S.E.2d at 206 (citing State v. Taylor, 360 S.C. 18, 27, 598 S.E.2d 735, 739 (Ct. App. 2004)) [56]. (grifo nosso).
Salienta-se, ainda, que a importância da cadeia de custódia tem influência direta na interpretação do conjunto probatório, tendo em vista que a supressão de algum elemento, por exemplo, poderia acarretar numa valoração da prova diversificada podendo apontar para inumeráveis teses alternativas às da acusação, seguindo o posicionamento de Rogério Sanches Cunha[57].
Divergindo do pensamento de Rogério Sanches Cunha, trazido alhures, Geraldo Prado[58] segue na linha de que caso ocorra a quebra da cadeia de custódia, deverá aquela prova ser de pronto descartada do processo, já que as demais informações remanescentes supostamente careceriam de suficiência probatória, sendo afetado pela referida quebra e contaminado (suspeito) tornando-se prova ilícita já que seria impossível adequar aquilo que sobrou sob procedimentos de refutação ou comprovação.
Neste teor, tem-se o julgado do Superior Tribunal de Justiça sobre a imprestabilidade da prova após a quebra da cadeia de custódia[59]:
PROCESSO PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. CRIMES CONTRA AS RELAÇÕES DE CONSUMO. LEI N. 8.137/1990. RECEPTAÇÃO QUALIFICADA E ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. EXCEPCIONALIDADE. NÃO DEMONSTRAÇÃO DE PLANO DE POSSÍVEL CONSTRANGIMENTO ILEGAL. INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA. NULIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. SUCESSIVAS PRORROGAÇÕES. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES DO STJ E DO STF. QUEBRA DA CADEIA DE CUSTÓDIA. RELATÓRIO CIRCUNSTANCIADO. PRESCINDIBILIDADE. REVOLVIMENTO DA PROVA. IMPOSSIBILIDADE NA VIA ELEITA. RECURSO NÃO PROVIDO. [...] 7. A quebra da cadeia de custódia tem como objetivo garantir a todos os acusados o devido processo legal e os recursos a ele inerentes, como a ampla defesa, o contraditório e principalmente o direito à prova lícita. O instituto abrange todo o caminho que deve ser percorrido pela prova até sua análise pelo magistrado, sendo certo que qualquer interferência durante o trâmite processual pode resultar na sua imprestabilidade. (STJ - RHC: 77836 PA 2016/0286544-4, Relator: Ministro RIBEIRO DANTAS, Data de Julgamento: 05/02/2019, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 12/02/2019). (grifo nosso).
Desse modo, considerando-se o visualizado até o presente momento, há de se verificar se, de fato, aquilo já exposto no Código de Processo Penal brasileiro no que tange à custódia dos bens apreendidos vem sendo aplicadas de maneira eficaz na fase pré-processual dos Inquéritos Policiais conduzidos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente pesquisa teve como objetivo estudar a imprescindibilidade da cadeia de custódia de dispositivos eletrônicos ante a higidez das provas coligidas em sede de investigação criminal.
Divido em três partes, o presente artigo inicialmente abordou o instituto do Inquérito Policial moderno e as provas que nele são produzidas.
Após toda conceituação doutrinária acerca do procedimento pré-processual em sede policial, se trouxe todo o leque de possibilidades das medidas cautelares que podem ser tomadas no sentido de se buscar produzir uma prova segura e coesa ainda no curso investigativo.
Elas, considerando as circunstâncias do procedimento, são produzidas com o contraditório diferido, inaudita altera pars, ocasião em que a cadeia de custódia forte se faz imprescindível para manutenção e garantia da idoneidade do que for encontrado de interesse investigativo.
Dessa idoneidade de obrigatória comprovação, num segundo momento, destacou-se que sua ausência ensejará em eventuais nulidades no curso da ação penal que se deflagrará, podendo, nesta hipótese, fazer cair por terra toda uma investigação de meses.
Pautando-se pelo cenário da Polícia Civil do Estado de Santa Catarina, verificou-se que o material de ensino empregado na Academia de Polícia Civil do estado já vem alinhada com tais cuidados protocolares no manejo das provas em sede inquisitorial, especialmente aquelas extraídas dos dispositivos eletrônicos, estas últimas que não tem previsão específica pelo Código de Processo Penal quanto ao seu tratamento e processamento até a remessa ao judiciário.
No último tópico do trabalho, se deu enfoque decisivo à cadeia de custódia aplicada no curso de investigações criminais, vinculada agora às alterações trazidas pelo Pacote Anticrime, tratando de questões específicas acerca do tratamento de provas obtidas nas redes digitais.
Das exposições, concluiu-se que, de fato, caso ausentes os cuidados necessários para a manutenção da idoneidade daquelas provas obtidas em dispositivos eletrônicos, poderão tais falhas ensejarem nulidades na prova, como defende uma linha mais técnica do Direito Digital, como também há quem defenda a mera desvalorização daquela prova (in)idônea. Daí que a transparência e reprodutibilidade daqueles dados digitais deve ser garantido desde sua apreensão até o trânsito em julgado da sentença penal, pois a demanda pela intensa e recorrente verificabilidade de refutabilidade do que foi apresentado como prova digital é imprescindível ao justo desfecho processual em determinados casos.
É a modernidade dançando com o Direito.