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DA FLEXIBILIZAÇÃO DO ACESSO A ARMAS DE FOGO POR MEROS DECRETOS PRESIDENCIAIS: um temerário soerguimento do Direito Penal do Inimigo no Brasil?

Agenda 22/02/2022 às 22:05

SUMÁRIO: Introdução; 1. Da (In)competência do Poder Executivo em legislar sobre armamento; 2. Da flexibilização do porte e posse de armas de fogo e o Policiamento Comunitário; 3. Da banalização do acesso às armas de fogo à luz da Criminologia; Conclusão; Referências Bibliográficas.

RESUMO

O objetivo deste artigo é analisar de forma crítico-analítica a polêmica aprovação de quatro Decretos presidenciais flexibilizando o acesso pelos cidadãos tanto a armas de fogo de uso permitido, quanto de uso restrito, à luz do ordenamento jurídico brasileiro, o qual prioriza de forma preponderante os princípios da dignidade da pessoa humana, saúde, vida, segurança, no âmbito do Direito Constitucional e Direitos Humanos. Numa perspectiva jurídico-criminológica, o estudo terá por base preponderante o exame das consequências do possível malferimento desses direitos fundamentais e do Garantismo Penal em detrimento do provável fortalecimento do Direito Penal do Inimigo.

Palavras-chave: Decretos federais de acesso a armas de fogo; constitucionalidade; Direitos Humanos; policiamento comunitário; escolas criminológicas: anomia, subcultura delinquente, criminologia crítica; Garantismo penal e Direito Penal do Inimigo.

INTRODUÇÃO

A pesquisa jurídico-científica em tela traz a análise acerca da polêmica facilitação da aquisição de armas de fogo mediante singelos Decretos presidenciais, incluindo até mesmo certas armas de uso restrito, suscitando numa gama de possíveis empecilhos jurídicos e criminológicos. Não constitui novidade que a edição de Decretos pelo chefe do Poder Executivo, dependendo do seu conteúdo, não raras vezes pode trazer imbróglios legais e principiológicos, haja vista o que dispõe a Constituição Federal brasileira acerca da separação de poderes e das suas respectivas funções típicas e atípicas.

Enfrentando com profundidade a problemática proposta, verifica-se que o deslinde desse encadeamento de fatos pode redundar na inequívoca ameaça a certos direitos fundamentais, como a vida, saúde, integridade física, segurança pública em razão da crescente demanda por armas de fogo de forma desequilibrada pela população brasileira, podendo resultar numa perniciosa elevação dos índices de crimes, tais como lesões corporais e homicídios, prejudicando o que pregam as politicas de Policiamento Comunitário fundamentadas nas normas internacionais de Direitos Humanos e contribuindo para nutrir um indesejável Direito Penal de terceira velocidade[1], que pode estar a serviço do interesse das elites do sistema capitalista neoliberal na manutenção do status quo pela seletividade do sistema penal.

Amalgamados em tais ilações, a justificativa primordial para a investigação em pauta reside na pormenorizada avaliação dos contestáveis Decretos federais que possibilitam um exponencial aumento da circulação de armas letais no país, não só do ponto de vista jurídico, mas também da Criminologia e da Política Criminal. Essa avaliação gira em torno da possibilidade ou não dessas normas do Poder executivo forjarem um crescimento no país do que se conhece por Direito Penal do inimigo, prejudicando as nobres ações de Segurança Cidadã e Garantismo Penal [2].

Dentro desse escopo, o objetivo capital do presente trabalho visa esquadrinhar até qual ponto o afrouxamento do controle legislativo sobre a aquisição de armas de fogo pelos cidadãos poderá contribuir para o reforço do temível Direito Penal do inimigo no país, dentro de uma perspectiva jurídico-criminológica, preponderantemente à luz da dialética dos Direitos Humanos, Garantismo Penal e Policiamento Comunitário.

Para a prossecução dos objetivos do trabalho de forma coerente com seu desenvolvimento e para responder aos questionamentos formulados, evocou-se como pilar de engendramento da investigação o método de abordagem hipotético-dedutivo no intuito de explorar normas-regra, normas principiológicas, teorias doutrinárias e pretorianas que podem levar a conclusões acerca das consequências jurídicas e criminológicas dos Decretos retromencionados. Já o método de procedimento adotado será o monográfico, observando-se o caso concreto para obter conclusões genéricas jurídica e criminologicamente embasadas. Será dada ênfase a técnicas de pesquisa qualitativas por análises bibliográficas na legislação, livros doutrinários, jurisprudência, artigos, teses e dissertações, além da documentação concernente à temática (periódicos, revistas e sites especializados), não se olvidando da interpretação sistemática entre Criminologia, Política Criminal e as diversas searas jurídicas relacionadas, como Direito Penal, Direito Constitucional, Direito Administrativo, Hermenêutica Jurídica e Direitos Humanos.

Nesse limiar, a concatenação lógica da pesquisa será edificada em três capítulos: no tópico preambular será abordada a controvérsia da possível inconstitucionalidade dos Decretos em exame, seja por invasão de competência privativa, seja por causar consequências indesejáveis a direitos fundamentais como a vida, saúde e integridade física. No segundo tomo, serão postos em análise os possíveis prejuízos às políticas de Segurança Cidadã no Brasil por conta do aumento de indivíduos com armas de fogo no país, o que geraria macabras projeções na preservação dos Direitos Humanos em detrimento do Direito Penal de terceira velocidade. No capítulo derradeiro, aprofundaremos o estudo na direção das escolas criminológicas relacionadas ao assunto, bem como as consequências para um possível fortalecimento do Direito Penal do Inimigo no Brasil, comprometendo a prevenção geral e especial das penas, bem como o Garantismo Penal. Em epílogo, serão apresentadas nossas conclusões lógicas acerca do debate, buscando conferir coerência e coesão no esclarecimento da problematização do tema, sempre tomando por parâmetro que uma das pedras de toque do Estado Democrático brasileiro reside justamente na construção de um Direito Penal justo, fiador da democracia e garantidor dos direitos fundamentais.

1. DA (IN)COMPETÊNCIA DO PODER EXECUTIVO EM LEGISLAR SOBRE ARMAMENTOS

Vestibularmente cumpre aduzir que, através de uma análise jurídico-hermenêutica da Lei Federal nº 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento), infere-se com clareza solar que no Ordenamento Jurídico brasileiro a regra é a proibição dos cidadãos brasileiros terem acesso ao porte de armas, ao passo que as exceções, que estão dentro da razoabilidade (forças armadas, policiais, guardas municipais, auditores, servidores de Tribunais e do Ministério Público, caçadores, atiradores esportivos, empresas de segurança, cidadãos maiores de 25 anos com certos atributos etc.), vêm previstas ao longo do artigo 6º do referido diploma normativo, in verbis:

 Art. 6o - É proibido o porte de arma de fogo em todo o território nacional, salvo para os casos previstos em legislação própria e para: (...) (grifo nosso)

Nesse compasso, mesmo nos casos excepcionais onde a retromencionada lei permite o acesso às armas de fogo, há de se cumprir uma série de requisitos objetivos e subjetivos, a exemplo da aptidão técnica e psicológica, número limitado de aquisições por pessoa, demonstração de real necessidade do porte, faixa etária mínima, entre outros, sob pena de configuração dos delitos dos artigos 12 a 21 da referida lei, que fora democraticamente discutida, votada e aprovada pelo Congresso Nacional e devidamente sancionada pelo Presidente da República à época. Sem embargo, é também público e notório que, seguindo os ditames do art. 35, §§ 1º e 2º do Estatuto, fora realizado em 2005 um referendo popular aprovando a comercialização de armas de fogo, apenas de forma excepcional, para as hipóteses supracitadas no art. 6º.

Ocorre que, no ano de 2019, nada obstante a série de limitações trazidas pelo Estatuto do Desarmamento em relação à posse e porte de armas de fogo no território nacional, o atual chefe do Poder Executivo federal, no afã de exercer suas atribuições previstas no art. 84, IV da Constituição (regulamentação legal via decretos), proferiu os Decretos presidenciais n.ºs 9.845/2019, 9.846/2019, 9.847/2019 e 10.030/2019, acabando por ampliar o que prescreve a Lei nº 10.826/2003, no sentido de: 1º) estender a possibilidade dos cidadãos brasileiros poderem obter armas de fogo além do limite de 04 (quatro) armas de uso permitido (Decreto nº 9.845/2019, art. 3º, §8º); 2º) o Decreto 9.846/2019, em seu artigo 3º, incisos I e art. 4º, §4º passou a permitir que atiradores, colecionadores e caçadores possam adquirir armas de fogo e munições além dos limites outrora permitidos (dizendo mais do que previa o Estatuto do Desarmamento); 3º) Já o Decreto 9.847/2019, além de permitir a entrada temporária no país de armas e munições para mera realização de testes (art. 41), flexibilizou os requisitos para concessão do porte das armas, cabendo à autoridade pública avaliar circunstâncias fáticas, atividades exercidas e critérios pessoais do requerente, o que, além de se mostrar vago e impreciso, confere excessivo e desnecessário poder discricionário; 4º) Por último, porém não menos importante, o Decreto 10.030/2019 desclassificou certas armas da condição de Produtos Controlados pelo Exército, abrindo espaço para facilitar sua aquisição, além de dispensar o registro no exército para comércio de armas de pressão e de autorizar o colecionamento de armas de uso restrito, numa clara ampliação do que prevê o art. 27 do Estatuto do Desarmamento (BRASIL, 2021).

Na hipótese em liça, revela-se haver manifesto extrapolamento por parte do Poder Executivo da competência constitucional prevista no art. 84, IV da Lex Fundamentalis, que determina que os decretos presidenciais devem ser expedidos para a fiel execução das leis a que se referem, prestando-se a tão-somente regulamentá-las e não legislar positivamente, trazendo hipóteses adicionais de facilitação do acesso às armas de fogo. Com efeito, quando decretos regulamentares sobrepujarem o conteúdo e amplitude da respectiva lei, padecem de vício de inconstitucionalidade formal, assim como de legalidade, dando inclusive margem para que, nos termos do art. 49, V da CF/88, o Congresso Nacional possa determinar sua sustação (LENZA, 2019).

Essa invasão de competência pelo Executivo parece atender muito mais a interesses econômicos das elites (que querem proteger suas riquezas com uso de armas), naquilo que ZAFFARONI e SANTOS (2020) consideram o domínio do campo político pelo financeiro, causando rotulações típicas do totalitarismo financeiro. Partindo dessa diretriz, dessume-se, outrossim, que no momento em que o decreto, ao invés de simplesmente regulamentar uma lei pré-existente, investe-se de generalidade e abstração, inovando na ordem jurídica para traçar requisitos para o surgimento de direito, dever ou restrição, haverá inexoravelmente ferimento ao princípio da separação dos Poderes, uma cláusula pétrea, diga-se en passant, na medida que o Poder Executivo estará invadindo a esfera de competência típica do Poder Legislativo (MENDES, 2017).

Dito de outro modo, a diferença crucial entre os atos legislativos e atos regulamentares reside exatamente na circunstância de que os primeiros são caracterizados pela introdução de situações jurídicas novas e originárias, ao passo que estes se configuram como atos normativos derivados que explicitam ou complementam as leis (DI PIETRO, 2019), de modo que os 04 (quatro) Decretos regulamentares ora cogitados vigoram na contramão desses institutos jurídicos tratados tanto pela Constituição quanto por eminentes doutrinadores, transformando a exceção criada pelo Estatuto do Desarmamento em regra: porte de armas pela maioria da população.

Pari passu, esse entendimento de que os decretos regulamentares previstos no art. 84, IV da CF/88 não podem inovar no ordenamento jurídico nem ampliar o que reza a lei é praticamente uníssono na Jurisprudência pátria. Avoquem-se as ponderações do egrégio Supremo Tribunal Federal nesse sentido, ipsis litteris:

MANDADO DE SEGURANÇA - Isenção de ICMS para compra de veículo - Portador de Deficiência Física - Inaptidão para conduzir veículos convencionais - Princípio da isonomia Decreto Estadual n° 30.363/2009 - Rol exemplificativo - Impossibilidade de estabelecer parâmetros restritivos - Direito líquido e certo - Concessão da ordem. (...) É ofensivo ao direito líquido e certo da impetrante ato que indefere pedido de outorga de isenção na aquisição de veículo automotor, com fulcro em dispositivo de decreto que extrapola os limites da lei e do convênio interestadual, além de afrontar o princípio da isonomia. O recurso extraordinário busca fundamento no art. 102, III, a, da Constituição Federal. A parte recorrente alega violação aos arts. 5º, caput; 150, § 6º; e 155, § 2º, XII, g, todos da Carta. Sustenta, em síntese, que o fato de a doença alegada pela recorrida não estar no rol daquelas beneficiadas pela isenção confere à Administração Pública a discricionariedade para negar o benefício ora pleiteado. O recurso extraordinário não merece ser provido. (...) Diante do exposto, com base no art. 557 do CPC e no art. 21, § 1º, do RI/STF, nego seguimento ao recurso. (STF, 2014) (grifos nossos)

Não se pode descurar também que essa nefasta Torre de Babel normativa traz um problema jurídico ainda mais teratológico: esses decretos banalizando de forma inconstitucional o acesso às armas de fogo põem em xeque a proteção de direitos fundamentais, tais como a vida, a saúde, a segurança e a integridade física dos cidadãos, considerando que uma possível aquisição descontrolada de armas letais pela população pode ensejar um aumento exponencial dos homicídios e lesões corporais, inclusive decorrentes de casos corriqueiros e mais fáceis de conciliar, a exemplo de discussões de trânsito, brigas de família, conflitos entre torcidas de futebol, contendas entre militantes políticos radicais, confusões em bares e restaurantes etc.[3].

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Não resta dúvida também que a proliferação de armas de fogo poderá gerar uma estirpe de fanáticos patrióticos, cegos seguidores de governos autoritários que pregam o Direito Penal do Inimigo, onde uma elite regional afirmaria sua supremacia através da violência contra as minorias, conforme ensina a douta antropóloga SEGATO (2013, p.39):

El concepto de nosotros se vuelve de­fensivo, atrincherado, patriótico, y quien lo infringe es acusado de traición. En este tipo de patriotismo, la primera víctima son los otros interiores de la nación, de la región, de la localidad siempre las mujeres, los negros, los pueblos originarios, los disidentes. Estos otros interiores son coaccionados para que sacrifiquen, callen y posterguen su queja y el argumento de su dife­rencia en nombre de la unidad sacralizada y esenciali­zada de la colectividad.

Destarte, o pretexto para se maximizar a aquisição de armas de fogo e munições pela sociedade seria o de desburocratizar os procedimentos para garantir a legitima defesa dos cidadãos de bem contra os delinquentes armados. Contudo, esse discurso possui a tendência de atingir um platô diametralmente oposto, comprometendo o próprio Estado Democrático de Direito, já que põe em risco várias garantias fundamentais (vida, saúde, integridade física etc.), dando margem ao Direito Penal do Inimigo, o qual busca suprimir garantias fundamentais, visando a proteção do Estado e buscando tratamento gravoso aos meliantes que violam bens jurídicos mais relevantes: os chamados inimigos do Estado (PENTEADO FILHO; FRUGOLI; VASQUES, 2014) .

Sendo assim, esses Decretos revelam-se como normas que, embora não o declarem expressamente, possuem na sua teleologia o escopo de combater e punir indiretamente os inimigos do Estado, protegendo os demais habitantes através de uma hipertrofia legislativa típica do Direito Penal do Inimigo, que tem também como atributos: i) crise do princípio da legalidade e defeitos de técnica legislativa (ou seja, o aspecto formal das leis é desrespeitado); ii) inexistência de limites punitivos (esses decretos estimulam a população a se armar e contra-atacar os infratores sociais); iii) descrédito do Direito Penal (incitando a população a fazer Justiça com as próprias mãos); iv) abuso de leis promocionais e simbólicas (que geram contentamento dos jurisdicionados, mas sem real eficácia prática) (VIANA, 2018).

2. DA FLEXIBILIZAÇÃO DO PORTE E POSSE DE ARMAS DE FOGO E O POLICIAMENTO COMUNITÁRIO

Prima facie, mister se faz entender que a ideia de Policiamento Comunitário traduz-se como uma das ferramentas mais eficazes de promover a democratização das corporações policiais, e o respeito aos Direitos Humanos por parte delas. Teve a gênese de sua implantação no Brasil nos anos 1980, ganhando força no século XXI. Antes a aproximação entre agentes policiais e cidadãos era vista com certa reticência por alguns motivos, dentre os quais se destaca: a) possibilidade de fragilização da autoridade policial, que teria seu trabalho e sua pessoa bastante exposta a riscos perante o público em geral; b) aumento do risco das autoridades serem corrompidas pela população, mediante subornos, propinas, prevaricação e outras formas de corrupção; c) a denominada síndrome do capitão do mato, através da qual a população teria a visão do policial como um feroz e implacável caçador de bandidos, do qual todos guardam temor e querem manter distância (CAMARGO, 2015).

A par das considerações elencadas, com o tempo essa visão distanciadora passou por um longo e lento processo de mudança, especialmente quando as autoridades brasileiras se deram conta da eficácia da Segurança Cidadã ocorrida em países de primeiro mundo, a exemplo do Japão (o famoso modelo Koban) e do Canadá. Passou-se então a reproduzir no Brasil a filosofia do Policiamento Comunitário, que está envolta pelos seguintes parâmetros: 1) aproximação com o cidadão, aumentando o nível de admiração, confiança e reconhecimento do trabalho da corporação, buscando uma gestão mais participativa; 2) policiamento orientado para o problema, dando atenção aos anseios da população e definindo ações e estratégias em conjunto; 3) mediação de conflitos, visando solucionar problemas de forma democrática e da maneira menos gravosa possível; 4) priorização da observância dos Direitos Humanos pautando as ações policiais (BRASIL, 2021).

Impende ainda frisar que uma das medidas vocacionadas a conferir efetividade a essa disseminação do Policiamento Comunitário brasileiro foi um acordo de cooperação técnica firmado pelo Ministério da Justiça e Cidadania com a Polícia Nacional do Japão, culminando em uma vasta gama de cursos, treinamentos, seminários entre os dois países, buscando tornar as polícias mais preparadas na garantia dos Direitos Humanos e cidadania (BRASIL, 2021).

Esse trabalho voltado para a Segurança Cidadã, com uma atuação idônea, focada na empatia e despida de preconceitos e truculência, faz os policiais contribuírem para o retorno do que Young (2002, p. 21) denomina de sociedade inclusiva e cidadania social plena, típicas dos anos dourados (pós-guerras) nos quais as bases centrais eram a família e o trabalho. Além disso, no que tange à criminalização, os princípios da polícia comunitária afastam a chamada sociedade excludente (que cataloga o outro/diferente como um inimigo dessa comunidade), encarando o infrator como alguém que pode ser plenamente reabilitado e ressocializado (YOUNG, 2002).

Ora, consoante se percebe, uma das grandes nuanças da observância dos Direitos Humanos realizada pelo Policiamento Comunitário vem justamente na substituição, sempre que possível, das armas letais pela utilização de técnicas, armas e instrumentos de menor potencial ofensivo (espargidores de gás/pimenta, armas de eletrochoque/TASERS, algemas, bastões retráteis/tonfa, jatos dágua etc.). Estas são inclusive diretrizes trazidas pela Portaria Interministerial nº 4.226/2010[4], expedida pelo Ministério da Justiça em conjunto com a Secretaria Nacional de Direitos Humanos.

Com lastro nessa premissa, infere-se que a emissão desses quatro Decretos do Executivo maximizando o acesso às armas de fogo de forma indiscriminada pela população revela-se em manifesta contrariedade com os programas de Policiamento Comunitário, mormente pela circunstância de que facilita também a aquisição de armas de uso restrito, as quais possuem um poder de destruição ainda mais significativo[5]. Ao invés de seguir a tendência dos Direitos Humanos em diminuir a utilização das armas de fogo pelas polícias, esses decretos estimulam sua utilização pelos civis, invertendo também a nobre finalidade do Estatuto do Desarmamento.

Convergindo ainda mais na direção dos argumentos em tela, depreende-se que essa banalização da aquisição das armas de fogo, ao mesmo que prejudica o trabalho da Polícia Comunitária, malfere consequentemente a própria eficácia dos Direitos Humanos, comprometendo sobremaneira os direitos fundamentais à vida, saúde e integridade física. Pelo exame conglobante de tudo o que foi até aqui narrado, demonstra-se incomensurável vitupério de um princípio cardeal relativo aos Direitos Humanos: o da vedação do retrocesso (PIOVESAN, 2013). De fato, tal regra principiológica impõe ao Poder Público a proibição de restringir, inviabilizar ou abolir a concretização desses direitos de suma relevância, conforme já deixou assente a Corte Máxima do país, in fine:

A PROIBIÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL COMO OBSTÁCULO CONSTITUCIONAL À FRUSTRAÇÃO E AO INADIMPLEMENTO, PELO PODER PÚBLICO, DE DIREITOS PRESTACIONAIS. O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Doutrina. Em consequência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar mediante supressão total ou parcial os direitos sociais já concretizados. (STF, 2011)

É digno de nota que a temática em apreço tem a ver com a própria mediação de conflitos, pois através desta os policiais capacitados em Direitos Humanos visam estimular a colaboração espontânea dos cidadãos nas mais variadas ocorrências do dia a dia. Pelo contrário, uma vez portando armas letais, muitos desses civis poderão não aceitar resolver contendas de forma pacífica e racional, mas sim utilizando armas de fogo, inclusive contra os próprios policiais mediadores, prejudicando consideravelmente o trabalho dos agentes de segurança.

Sobrevoando esse patamar, forçoso concluir que a propagação do Policiamento Comunitário e da cultura de zelo pelos Direitos Humanos faz valer o chamado Direito Penal do Cidadão (daí vem a expressão Segurança Cidadã), um modelo que visa galvanizar ações sociais no sentido de prover as necessidades básicas da população (vida, saúde, dignidade sexual, isonomia de gênero, classe social, cor, orientação sexual e outras), evitando que o crime organizado ocupe os espaços deixados pelo Poder Público cooptando os indivíduos que se sentem abandonados (PENTEADO FILHO, 2012). Em contraposição ao que postula o Direito Penal do Cidadão, tem-se que a proliferação descontrolada de aquisição de armas de fogo pela nação alimentará o famigerado Direito Penal de terceira velocidade, bastante pernicioso à manutenção dos direitos fundamentais. Esse escorchante preço poderá ser pago à custa de muitas vidas ceifadas de forma desnecessária e imprudente, especialmente através do aumento da violência contra grupos hipervulneráveis: mulheres, adolescentes, afrodescendentes, migrantes/refugiados e grupos LGBT.

3. DA BANALIZAÇÃO DO ACESSO ÀS ARMAS DE FOGO À LUZ DA CRIMINOLOGIA

Como elemento motriz da temática do impulsionamento do porte e posse de armas de fogo pelos concidadãos e através de uma abordagem epistemológica, mais que pertinente se faz uma conveniente perquirição criminológica do assunto em tela. Nesse azo, conforme o magistério de GARCÍA-PABLOS DE MOLINA e FLÁVIO GOMES (2002, p. 30), a Criminologia pode ser conceituada como (...) uma ciência empírica e interdisciplinar, que se ocupa do estudo do crime, da pessoa do infrator, da vítima e do controle social do comportamento delitivo (...). Perscrutando minuciosamente o tema ora tratado, verifica-se que a Criminologia goza do status de uma ciência que tem por objetos o delito, o delinquente, a vítima e o controle social.

Nesse contexto, abre-se um parêntese para a Vitimologia, mais ligada à Criminologia que ao Direito Penal, sendo também uma ciência que se ocupa especificamente da vítima e das vitimizações, buscando analisar o grau de contribuição daquela para a ocorrência da infração penal e os modos de evitar ou minimizar essas vitimizações (JUSTINO, 2016), o que faz tal ciência se aproximar também da chamada Política Criminal. Esta, por sua vez, reúne princípios decorrentes da investigação científica e do empirismo auxiliando o Poder estatal na repressão e prevenção da delituosidade (CUNHA et al, 2019).

Fortalecendo e aprofundando essa linha de pensamento, pode-se conceber que a visão criminológica do papel e da figura da vítima foi evoluindo cronologicamente através nos seguintes estágios: 1º) protagonismo: prevalecia a vingança privada, a vítima fazia justiça com as próprias mãos, castigando o ofensor; 2º) imparcialidade: o Poder Público passou a deter o monopólio da violência legal, mediante a punição preventiva e imparcial do agressor, porém sem se preocupar com a reparação da vítima e seus prejuízos; 3º) redescobrimento (pós 2ª Guerra Mundial): a vítima voltou a ter sua figura levada em conta, inclusive no momento da mediação de conflitos, recomposição dos danos sofridos, agravantes no caso de perseguição a grupos hipossuficientes (adolescentes, mulheres, idosos, afrodescendentes, migrantes/refugiados, grupos LGBT etc.) (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA e FLÁVIO GOMES, 2002)

Mas em qual ponto essa temática criminológica e vitimológica guarda conexão com os polêmicos decretos de flexibilização do acesso às armas de fogo? Ora, esses Decretos, sob o pretexto da legítima defesa, dão margem para o retorno da vingança privada da vítima, gerando o indesejado perigo de haver excessos contra os ofensores, como nos casos de legítima defesa excessiva (Código Penal, art. 25) e exercício arbitrário das próprias razões (art. 345 do mesmo diploma).

Nesse esteio, com o acesso sem controle rígido às armas de fogo, os ofendidos podem também passar da condição de vitimas para a de injustos agressores, caso utilizem uma legitima defesa desproporcional, ou seja, em muitos casos haverá excesso na defesa, quando o meliante já nem ofereça mais perigo, o que contribui para o aumento da violência e da vingança privada, numa verdadeira espécie de Lei do Talão do século XXI. Salvo melhor juízo, isso nos parece extremamente perigoso, mormente atentando para o fato de que se os policiais, os quais teoricamente são bem preparados técnica e psicologicamente nas academias de policia, não raras vezes cometem excessos absurdos no cumprimento do dever legal (erros de execução e abusos de autoridade), o que dirá os cidadãos comuns, que não receberam suficiente capacitação?[6]

Numa concepção hegemônica, podemos ainda elencar que essa aquisição desenfreada de armas prejudica a própria razão de ser do Estado soberano: o monopólio do uso legítimo da força física, isto é, a utilização banalizada de armas de fogo pelos civis que não se investiram da autoridade do Estado pode acarretar uma violência descontrolada entre os cidadãos. Para arrematar essa ideia, vejamos os ensinamentos do consagrado sociólogo Max Weber, cujo nome dispensa maiores adjetivos:

No passado, as mais diversas associações começando pelo clã- conheceram a violência física como um meio completamente normal. Hoje, em contrapartida, precisaremos dizer: o Estado aponta para aquela comunidade humana, que requisita para si (com sucesso), no interior de uma determinada região esse elemento, a região, pertence ao seu traço característico -, o monopólio da violência física legítima. Pois o específico do presente é o fato de só se atribuir todas as outras associações ou pessoas particulares o direito à violência, na medida em que o Estado as admite como estando do seu lado: ele considerado como a fonte única do direito à violência. (WEBER, 2015, pp. 62-63) (grifos do autor)

Por conseguinte, a violência física legítima passou da esfera privada para o monopólio do Poder Público. A situação em epígrafe nos leva à conclusão de que os quatro Decretos de flexibilização do acesso às armas de fogo invertem essa lógica do Estado soberano moderno, trazendo o uso da força privada como regra, o que se revela outro retrocesso, não só em matéria sociológica, mas também no aspecto criminológico, pois se contrapõe ao Garantismo Penal que advoga a tese da substituição da vingança privada.

Esse Garantismo Penal, proposto pelo professor e jurista italiano Luigi Ferrajoli, desdobra-se em três vertentes: a) normativo-jurídico pela compatibilização entre o direito de punir do Estado com a garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos; b) teoria crítica do Direito, distinguindo norma e realidade, onde o magistrado não é obrigado a aplicar leis inválidas, a despeito de estarem vigentes; c) filosófico-política, pregando uma justificação para o Direito e o Estado que vai além da álea jurídica, mas também ético-política (FERRAJOLI, 2002).

Além do que, esse raciocínio traz reflexos na classificação que a Criminologia traz a acerca da Criminalização primária e secundária: enquanto a primeira se dirige à tipificação das condutas ilícitas em si, a segunda põe em prática a concretização da aplicação da norma penal através das instâncias de controle. Data vênia, muito embora os quatro Decretos de flexibilização da aquisição de armas de fogo não sejam normas penais, nós entendemos, não obstante as possíveis vozes contrárias, que indiretamente tais decretos favorecem uma maléfica criminalização secundária, pois, conforme já explanado, eles estimulam os cidadãos de bem a fazer justiça a seu bel-prazer, ao invés de respeitar o monopólio estatal da violência legal.

Essa criminalização secundária indireta, a nosso parecer, chega a ser ainda mais perniciosa por ser seletiva, pois indiretamente penaliza os chamados bandidos contumazes e privilegia os considerados cidadãos exemplares. Para enfatizar essa postura seletiva da criminalização, típica da escola da Criminologia crítica, BANDEIRA e PORTUGAL (2017) citam ZAFFARONI (2007), conforme se comprova da leitura do seguinte trecho:

Quando falamos de criminalização, seu processo é seletivo (escolhe quem quer punir). Esta escolha se projeta tanto para a criminalização primária (tipificação criminal das condutas em si, sendo que este processo também não é neutro), quanto para a criminalização secundária (quando se coloca em prática a aplicação da norma penal por meio das instâncias de controle, que também é seletiva). (ZAFFARONI, 2007, p. 83 apud BANDEIRA e PORTUGAL, 2017, p. 50)

Devemos ainda estar atentos que na edição dos Decretos presidenciais ora apreciados parece haver uma cortina de fumaça que busca legitimar um discurso político o qual propõe uma divisão entre duas classes de indivíduos na sociedade: de um lado os cidadãos comuns, chamados de pessoas, que devem ter garantidos todos os seus direitos fundamentais e conferido tratamento equânime em caso de infringirem as normas. De outro giro, temos a classe dos inimigos, também chamados de não pessoas, que têm certos direitos individuais tolhidos por terem deixado de ser considerados pessoas, sendo julgados não pelas ações que praticaram, mas pela sua própria personalidade perigosa (ZAFFARONI, 2014), numa clara ofensa ao princípio da personalidade/intranscendência da pena, insculpido no art. 5º, XLV da Carta Magna. Ou seja, as pessoas poderiam adquirir de forma descontrolada armas de fogo (inclusive de uso restrito) sob o pretexto de as utilizarem contra os bandidos contumazes (não pessoas), sempre que fossem ameaçadas ou violentadas pelos inimigos.

Esse maniqueísmo estruturante moralista gera aquilo que ANDRADE (2012) concebe como uma lógica binária de definição e seletividade penal (cidadãos e não cidadãos), típicas de um controle social punitivo atendendo à lógica do capitalismo neoliberal e globalizado, que tacha com estigmatizações excludentes aqueles que não se adequam a esse sistema socioeconômico (inimigos do Estado).

Promovendo-se uma laicização da retórica, pode-se afirmar que esse discurso vai além do âmbito político por agregar-se ao campo criminológico das escolas conhecidas por anomia e subcultura delinquente. A primeira corrente (com certo viés marxista) defende a ideia que a frustração em se atingir metas culturais (dinheiro, status, empregos, imóveis, v.g.) em face da ineficácia dos meios institucionalizados na sociedade (escola, universidade, trabalho etc.) cria em muitos indivíduos comportamentos por meio dos quais as normas sociais são contornadas ou ignoradas (PENTEADO FILHO, 2012) Nessa conjuntura, não nos resta dúvida que o acesso descontrolado às armas de fogo elevará fatalmente os índices de criminalidade no Brasil, por conta dessas classes de pessoas desiludidas, as quais irão se valer da violência ou coação moral pelas armas para atingir seus objetivos sociais.

Já a doutrina da subcultura delinquente delineia o juízo de que nascem na sociedade subculturas criminais como modo de reação social de certas minorias extremamente desfavorecidas, devido às exigências sociais de sobrevivência. Grupos formados com esse jaez passam a criar valores próprios que entre eles passam a ter mais relevância que as normas dominantes do organismo social (PENTEADO FILHO, 2012). Nessa lógica, partindo-se do pressuposto de que os Decretos do Poder executivo facilitam sobremaneira a compra de armas, eles poderão favorecer a vingança privada das vítimas (legítima defesa excessiva e exercício arbitrário das próprias razões), no que deduzimos que grupos vítimas de constantes perseguições e preconceitos (migrantes/refugiados, afrodescendentes, população LGBT, moradores de rua, entre outros), sentindo-se abandonados pelo Estado, poderão tentar criar uma subcultura de contra-ataque aos seus agressores contumazes através da utilização de armas de fogo, o que pode gerar um verdadeiro cenário de guerra.[7]

Imperioso salientar também que esses quatro Decretos no nosso entender não aumentam nem a prevenção geral nem a prevenção especial das penas. Em outras palavras, não se prestarão a intimidar os grupos propensos a delinquir (prevenção geral negativa), não incutirão o respeito à ordem jurídica (prevenção geral negativa), muitas vezes não neutralizarão o infrator (prevenção especial negativa) tampouco promoverão sua ressocialização (prevenção especial positiva) (PENTEADO FILHO, 2012). Pelo contrário, é sabido que muitos bandidos contumazes costumam assassinar pessoas com porte ou posse legal de arma de fogo justamente para roubar suas armas, já que no submundo do crime estas armas são valiosas tanto para o mercado paralelo como para possibilitar novos delitos. Favorece ainda o aumento da misoginia, racismo, intolerância religiosa, xenofobia, homofobia e transfobia, isto é, uma sociedade excludente (YOUNG, 2002).

Por fim, através de uma elucidação salomônica, podemos vislumbrar que essa lastimável e possível corrida por armamentos, ocasionada pelos citados Decretos, ao mesmo tempo em que fortalece o Direito Penal do Inimigo, contribui de maneira veemente para o que FERRAJOLI (1997) entende por crise do Direito, que se subdivide em três aspectos: i) crise de legalidade, pela falta ou ineficiência de controles e limites impostos ao Poder estatal, prejudicando a própria noção de Garantismo; ii) incompatibilidade entre o Estado de Direito e as finalidades do Estado social; iii) enfraquecimento do constitucionalismo e da hierarquia das fontes (ex: decretos revogando leis), propiciada também pelo deslocamento da soberania para além dos Estados.

CONCLUSÃO

Em face do que foi relatado e aferido na presente pesquisa, tem-se por conclusão que a formatação dos quatro Decretos federais reduzindo os requisitos para aquisição de armas de fogo, além de malferir a separação de poderes, traz reflexos negativos para os Direitos Humanos, por conta do potencial aumento da violência proporcionado, desfavorecendo ademais a efetividade dos programas de Policiamento Comunitário.

Muito embora se configurem como normas de naipe administrativo, concebemos o entendimento de que elas também contribuem para o soerguimento do Direito Penal do Inimigo, por irem de encontro ao Garantismo Penal, na medida em que são radicalmente intolerantes e rígidas com os indivíduos que praticam crimes habitualmente, taxando-os de perigosos e sob o pretexto de proteger os cidadãos idôneos da violência e dos agressores, considerados uma moléstia endêmica no país.

Sobretudo no tocante ao incentivo à vingança privada pelo exercício arbitrário das próprias razões e legítima defesa excessiva, advogamos a ideia de que isso pode desencadear uma espécie de adiantamento da punibilidade dos criminosos, típica do Direito Penal de terceira velocidade, vulnerando as garantias dos infratores sociais e delegando para as vítimas o papel de acusadoras, julgadoras e executoras sumárias, quando na verdade o monopólio legal da força deveria ser do Estado, até mesmo por questões de imparcialidade, razoabilidade e proporcionalidade na aplicação da lei.

Logo, ainda que os Decretos em tela pertençam à seara do Direito Administrativo, nossa pesquisa constatou que também impulsionam o Direito Penal do inimigo, mesmo porque os ramos da ciência do Direito não podem ser vistos de forma estanque, mas através de uma hermenêutica sistemática e um profícuo diálogo das fontes. Reforça essa concepção o fato de que o Direito Penal possui intrínseca ligação com o Direito Administrativo (MASSON, 2015), considerando que em muitos casos a função de punir é administrativa e aplicada pelos agentes da Administração Pública (delegados de polícia, diretores de penitenciárias, promotores de justiça etc.).

Resta óbvio que esse fortalecimento do Direito Penal do Inimigo desfavorece a função ressocializadora da pena, pois ao invés de tentar regenerar o criminoso, busca puni-lo pelo contra-ataque das vítimas (ferindo ou matando) e amedrontá-lo. Enfraquece ainda a função restaurativa da pena, porquanto ao revés promover a conciliação entre as partes, propicia a retaliação, o que se mostra nocivo, pois, conforme preconiza uma conhecida máxima, combater fogo com fogo é o pior jeito de se provocar um incêndio. Defendemos, por conseguinte, a revogação dos referidos Decretos presidenciais, quer pelo STF, por ação direta de inconstitucionalidade, quer pelo Congresso Nacional, através de decreto legislativo.

Nessa candente discussão, há indubitavelmente de se cobrar do Poder Público não o armamento dos cidadãos como forma de prevenção da criminalidade, mas sim outras medidas mais eficazes, tais como: 1) melhoria da qualidade de vida pela criação de empregos, saúde, segurança, educação (prevenção primária); 2) ações policiais mais efetivas (incluindo a Segurança Cidadã e o compliance [8] nas corporações), programas de apoio a comunidades em situação de vulnerabilidade, controle das comunicações (prevenção secundária); 3) políticas de ressocialização dos reclusos (prevenção terciária) (PENTEADO FILHO, 2012).

De alto a baixo na escala social, verifica-se notoriamente que ao longo da História humana o armamento dos cidadãos só se prestou a servir a interesses de ditaduras, golpes de Estado, guerras civis, perseguições a grupos hipervulneráveis, crime organizado, conflitos políticos, entre outras formas de controle seletivo e punitivo (ANDRADE, 2012). Traga-se a título de exemplo o recente e lamentável caso de invasão ao Capitólio norte-americano, onde cidadãos com porte de armas de fogo, ao invés de utilizá-las para situações de legítima defesa, causaram, exclusivamente por motivações políticas, um sangrento tiroteio que resultou em mortos e vários feridos, o que gerou ampla discussão nos Estados Unidos sobre uma possível restrição do acesso de armas de fogo pela população ianque[9]. A impressão que nos causa é que aquilo que Eugênio Zaffaroni e Ílilson Dias dos Santos cognominam totalitarismo financeiro é uma das molas mestras que move o interesse da banalização da venda de armas em vários países: o aumento dos lucros da indústria bélica, que não raramente financia campanhas eleitorais, fazendo interesses monetários e políticos prevalecerem sobre o social (ZAFFARONI; SANTOS, 2020).

Munidos dessa fecunda análise jurídico-criminológica, admitimos sem hesitar que os conflitos devem ser resolvidos de forma pacífica, ao invés do recurso a armas letais, tanto por parte dos agentes policiais, através da Segurança Cidadã, como pelos cidadãos em geral, valendo-se da mediação, conciliação e arbitragem (justiça integradora). É forçoso reconhecer que em uma sociedade ideal e evoluída, a regra deveria ser a inexistência de armas de fogo, onde a Fraternidade prosperasse e os países e nações buscassem o deslinde de suas contendas sempre dentro da racionalidade e da empatia, respeitando as diferenças políticas, sociais, religiosas, étnicas e raciais, objetivando concretizar o que explicitam tanto a Constituição brasileira como a Declaração Universal dos Direitos Humanos: a busca da paz.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  1. Idealizada pelo jurista germânico Günther Jakobs, essa teoria, também chamada de Direito Penal do Inimigo, defende que a sociedade seria composta por duas espécies de habitantes: as pessoas, cujos direitos individuais seriam plenamente preservados e as não-pessoas, que teriam suprimidas uma série de garantias fundamentais por serem consideradas inimigas do Estado, haja vista seu grau de periculosidade (JAKOBS, 2007).

  2. O doutrinador italiano FERRAJOLI (2002) propôs essa corrente criticando tanto a desnecessária expansão do Direito Penal, como o Abolicionismo Penal. Para o Garantismo Penal, o ideal seria a manutenção da aplicação das penas, porém dentro do estrito respeito aos direitos fundamentais dos apenados, seguindo os ditames dos princípios da legalidade, necessidade, ofensividade, culpabilidade, contraditório, jurisdicionalidade, retributividade e juízo acusatório.

  3. De acordo com o Atlas da Violência de 2018, constatou-se que a promulgação do Estatuto do Desarmamento teve como resultado a interrupção do crescimento das taxas de homicídios decorrentes de armas de fogo, evidenciando que o controle mais rigoroso sobre a posse e o porte dessas armas traz efeitos positivos (IPEA; FBSP, 2007).

  4. A mencionada Portaria determina que deverá ser estimulado e priorizado, sempre que possível, o uso de técnicas e instrumentos de menor potencial ofensivo pelos agentes de segurança pública, de acordo com a especificidade da função operacional e sem se restringir às unidades especializadas. (BRASIL, 2010).

  5. O Decreto Federal 5.123/2004 traz a previsão expressa dos conceitos de armas de uso restrito e de uso permitido, nos seguintes termos:

    Art.10. Arma de fogo de uso permitido é aquela cuja utilização é autorizada a pessoas físicas, bem como a pessoas jurídicas, de acordo com as normas do Comando do Exército e nas condições previstas na Lei no 10.826, de 2003.

    Art. 11.Arma de fogo de uso restrito é aquela de uso exclusivo das Forças Armadas, de instituições de segurança pública e de pessoas físicas e jurídicas habilitadas, devidamente autorizadas pelo Comando do Exército, de acordo com legislação específica. (grifei)

  6. O que se verifica no cotidiano das páginas policiais da mídia nacional são inúmeros assassinatos e agressões por armas brancas por questões banais, tais como brigas de trânsito, discussões em bares, rixas entre torcedores de futebol, contendas entre vizinhos etc.. O que dirá se houver uma proliferação de armas de fogo? Verdade seja dita, o fato parece ser que a esmagadora maioria dos brasileiros não está preparada psicologicamente para utilizar armas de fogo, pois muitos deles se sentiriam poderosos e acima da lei, não dispondo de controle emocional para resolver as cizânias de mera rotina.

  7. Esse medo de ataques preconceituosos pode até facilitar um mercado negro das armas, pois os grupos que se sentirem perseguidos preferirão correr o risco de adquirir armas de forma ilícita do que serem constantemente agredidos por ofensores preconceituosos e intolerantes.

  8. Compliance seria uma política de governança corporativa dentro da preocupação das organizações públicas ou privadas tanto no cumprimento das normas legais quanto nas práticas mais adequadas como explicitação de seus princípios e valores, a exemplo da transparência e responsabilidade (LAMBOY; RISEGATO; COIMBRA, 2018).

  9. Comungamos do entendimento de se mostrar falaciosa a ideia de que a importação incondicional de modelos estrangeiros necessariamente irá trazer resultados positivos semelhantes no país. Dito de outro modo, a despeito de os Estados Unidos serem um país menos violento que o Brasil, a adoção tupiniquim de uma política armamentista nos moldes da norte-americana não trará obrigatoriamente melhoria no mapa da violência. Existem outros fatores a serem avaliados, tais como história de cada país, cultura, eficácia do sistema legal, políticas públicas, estrutura das polícias, credibilidade dos cidadãos nas instituições, entre outros. Pelo contrário, pode gerar o indesejável efeito reverso.

Sobre o autor
Theodoro Luís Mallmann de Oliveira

Servidor público federal do Ministério da Justiça (PRF). Mestrando em Direito Público pela UNISC. Pós-graduado em Direito Tributário na Universidade Federal do Rio Grande do Sul-UFRGS.. Especialista em Direito Processual Civil- Universidade Anhanguera. Especialista em Direito do Trabalho (UNOPAR) Especialista em Direito Previdenciário (Faculdade Com Alberto) Graduado em Direito-UFC. Graduando em História-UECE. Advogado licenciado.

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