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Violência e violência doméstica: conceitos e reflexões preliminares

Agenda 24/02/2022 às 17:38

Resumo:

O presente artigo busca desvendar a origem, a disseminação e os efeitos da prática da violência, seja no seio da sociedade civil ou no próprio ambiente familiar. Apresenta as raízes etimológicas e definições estabelecidas, confrontando o conceito maior com suas especificidades, especialmente nos domínios da filosofia e do direito. Mostra como tal conduta é parte integrante da mentalidade do homem brasileiro e está entranhada na sociedade como algo imutável, eterno e natural. Arrola dados atualizados que expõe a fragilidade do direito de família em coibir a prática da violência contra mulheres e vulneráveis. Dessa forma, é proposta uma abordagem inicial sobre a problemática, abrindo caminhos para discussões posteriores no sentido de elaborar políticas públicas eficazes que coíbam essa prática perversa.

Palavras-chave: violência, violência doméstica, abuso, poder.

INTRODUÇÃO

Neste artigo, buscaremos apresentar a tese de que a violência funciona como metástase na sociedade brasileira patriarcal. Tais distorções estão em consonância com estudos das áreas do direito, filosofia e sociologia.

O conceito de violência que, antes, era um conhecimento restrito a juristas e intelectuais está sendo paulatinamente disseminado nas esferas da compreensão de um número cada vez mais amplo de pessoas, certamente decorrente de um certo cansaço e inconformismo com as reiteradas tentativas de repressão ao pensamento impostas pela mídia.

A referida ideologia dominante contamina e invade todas as áreas de conhecimento, e nisto há um projeto definido: a continuidade da dominação das elites e o validamento do sistema capitalista vigente. A sociedade é artificialmente apresentada como estando em perfeita harmonia e unificado pela expressão da alma e sentimentos brasileiros.

Buscaremos demonstrar como tal conceito é frágil e que a violência é parte integrante do pensamento e das relações sociais (agressor que pratica, vítima que aceita) como um fato determinado e cristalizado.

DA ETIMOLOGIA

Do latim violentia, o termo designa todo ato de violação, quer seja a si ou a outrem, consubstanciado em fato cometido por um indivíduo ou grupo, com intenção expressa de violar, desrespeitar, profanar algo ou alguém. Trata-se de um fenômeno estrangeiro ao estado natural do ser humano, em ação ligada à força, afronta ou fúria, conotando uma ação deliberada que resulte em danos físicos, psicológicos, financeiros, ou em tais âmbitos combinados.

A violência é a qualidade daquele que é violento, do que age com força. De acordo com o Dicionário Houaiss, violência é entendida enquanto a ação ou efeito de (...) empregar força física, ou intimidação moral (2001, p.2866). Seus instrumentos estão no âmbito das humilhações, ameaças, ofensas; e seus efeitos podem levar a ferimentos, tortura, morte ou danos psíquicos (PAVIANI, 2016).

A Organização Mundial de Saúde OMS, em estudo publicado no relatório mundial sobre violência e saúde, assim a definiu:

violência é o uso intencional de força física ou poder, ameaçados ou reais, contra si mesmo, contra outra pessoa ou contra um grupo ou comunidade, que resultem ou tenham grande probabilidade de resultar em ferimento, morte, dano psicológico, mau desenvolvimento ou privação" (OMS, 2002, texto digital)

CONCEITUAÇÃO BÁSICA

As ciências vêm demonstrando diferentes definições de violência ao longo da história, por meio de estudos científicos partindo do objeto e do método de investigação. A violência pode ser descrita, analisada e interpretada pela sociologia, antropologia, biologia, psicologia, teologia, filosofia e também pelo direito. Mas um fato é indiscutível: a violência nada mais é do que a incontestável manifestação de poder.

O poder consiste em fazer com que os outros ajam conforme eu escolho (VOLTAIRE apud ARENDT, 2014), dizia Voltaire. A violência pode ser entendida como um pré-requisito para o poder, afinal, poder, autoridade e violência estão intimamente ligados. Quando o poder está em eminente perigo, surge a violência. A intenção básica do indivíduo que comete a violência é tirar de si ou de outrem aquilo que se tem de direito.

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Jayme Paviani ensina que tal conceito revela-se plural e ambíguo, cercado de diversos matizes e enquadramentos teóricos, bem como diversificadas propostas de coibição. A violência, porém, é inexpugnável: ela nasce na sociedade sempre de modo novo, e não é possível eliminá-la por completo. De acordo com este mesmo autor, ninguém está livre dela, sendo um fator inerente ao ser humano (PAVIANI, 2016, p.8).

De acordo com a filósofa Marilena Chauí, violência:

é tudo que age usando a força para ir contra a natureza de algum ser; é todo ato de força contra a espontaneidade, a vontade e a liberdade de alguém; é todo ato de violação de alguém ou de alguma coisa valorizada positivamente por uma sociedade; é todo ato de transgressão contra aquelas coisas e ações que alguém ou uma sociedade definem como justas e como um direito. (CHAUÍ, 1998 p.39)

Mais especificamente à luz do conceito jurídico, o significado de violência é o cerceamento da justiça e do direito; coação, opressão, tirania. (HOUAISS, op.cit., p. 2866)

O autor Nagib Salibi Filho refletiu que juridicamente, a violência é uma forma de coação, ou de constrangimento, posto em prática para vencer a capacidade de resistência do outro como também ato de força exercido contra coisa. (FILHO, 2003, p.67)

A violência é o uso abusivo e injusto de poder, caracterizada por ações corruptas, impacientes, baseadas em raiva, ira, atos que não tentam convencer; práticas que simplesmente agridem para demonstrar autoridade, comando sobre o outro.

Em suma, é possível afirmar que o ato da violência é o resultado de toda força ou ação irresistível praticadas na intenção do objetivo de coação.

DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

O instituto da violência doméstica tem como padrão todo aquele comportamento que envolve abuso por parte de uma pessoa sobre a outra no âmbito do convívio doméstico.

Trata-se de um tipo de violência praticada sobre qualquer membro que habita ou tem um relacionamento familiar, podendo acontecer entre parentes consangüíneos, unidos de forma civil como marido e mulher ou ainda genros e sogra, nora e sogro, namorados, entre outros.

Este tipo de violência pode assumir diversas formas, critérios e modos, incluindo abusos físicos, morais, verbais, emocionais, religiosos, sexuais e o foco deste trabalho, o econômico.

A violência doméstica caracteriza-se pelo ato de coagir, fazer uso da força para obrigar outra pessoa a fazer algo longe de sua vontade. É ameaçar, oprimir, espancar, submeter e lesionar, seja fisicamente ou psicologicamente outra pessoa ao seu domínio.

Pratica o crime de violência doméstica aquele que cometer abusos psíquicos, físicos sobre pessoa indefesa em razão da idade ou doença, ou ainda praticar maus tratos sobre cônjuge, ex-cônjuge, namorado, ex-namorado, progenitor ou descendente em primeiro grau, havendo coabitação ou não.

Também comete ato de violência doméstica, o sujeito que submeter desleixo, a quem depende dele financeiramente.

Representada na ação ou omissão de violência baseada no gênero e que cause danos ou morte a violência doméstica precisa ser cometida dentro do âmbito de qualquer relação íntima de afeto.

Para a autora Koller:

Apesar das diversas definições de violência, existe uma linha de base comum a todo ato violento: são as ações ou omissões que interferem de forma negativa no desenvolvimento pleno de um indivíduo. A violência ocorre em relações interpessoais assimétricas e hierárquicas, em que há uma desigualdade e/ou uma relação de subordinação" (KOLLER, 2016, p. 33).

Infelizmente números mostram que as maiores vítimas de violência doméstica são as mulheres.

Em dados retirados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública do Rio de Janeiro em 25/08 de 2020, é possível acompanhar que somente em 2019 foram registrados 1206 feminicídios no Brasil, em 61% dos casos as vítimas eram negras, em 70,7% dos casos elas tinham no máximo ensino fundamental e, triste realidade, 88,8% dos casos o assassino era companheiro ou ex-companheiro da vítima (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2021, p.118).

Desta maneira, pode-se verificar, e várias doutrinas citam e especificam, que a definição de violência doméstica, violência de gênero e violência contra a mulher, acabam sendo vistos e utilizados como sinônimos.

O advogado Rodrigo da Cunha Pereira, especialista em direito de família e violência doméstica, destaca que, embora o potencial de agressividade que gera violência doméstica esteja presente em homens e mulheres, a violência no âmbito doméstico, na maioria das vezes, é praticada por homens que se consideram os chefes da família, aquele que detém o poder, ressalta:

A violência se alimenta de grandes paixões negativas, como o ódio, a frustração, o medo, sentimento de rejeição, a crueldade e, principalmente, o desejo de dominação associado ao potencial de agressividade que há em todo ser humano. Ela pode se expressar por meio de atos de força física, o que se denomina agressão, mas pode se expressar também pela dominação, ocultação e sonegação de patrimônio ou de seus frutos que seriam partilháveis. (PEREIRA, 2019, texto digital)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Depreende-se, a partir dos estudos nas áreas jurídica, sociológica e estatísticas oficiais governamentais, que o modelo de sociedade calcado no patriarcado é fonte indiscutível dos abusos praticados nos ambientes familiares e na própria sociedade, como uma condição natural que rege as relações entre os entes que dela participam. Cabe à esfera pública e às ações decorrentes de iniciativas de defesa e orientação o necessário refreamento à essa prática tão disseminada no inconsciente coletivo da sociedade brasileira. No âmbito particular, a defesa e proteção aos mais vulneráveis depende não apenas de políticas públicas eficazes, o que nem sempre é realidade, mas aos poucos e isolados agentes que possuem condições favoráveis de acompanhamento jurídico, infelizmente relegando grande parte da sociedade à arbitrariedade das ações dos sujeitos praticantes de violência, os quais não procuram fazer valer sua vontade mediante argumentação consistente mas, antes, em exercer seu poder.

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. Da violência. Trad. Maria Claudia Drummond. Digitalização em 2004. Disponível em: www.sabotagem.revolt.org. Acesso em: 01 dez. 2014.

BRASIL. OMS. Portal da Saúde. Tipologias e naturezas da violência. 2002. Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/portal/saude/profissional>. Acesso em 24/05/2020.

CHAUÍ, Marilena. Ensaio ética e violência. Revista Teoria e Debate, ano 11, n. 39, 1998.

FILHO, Nagib Carvalho, Gláucia. Vocabulário Jurídico. 21ª edição. Rio de Janeiro. Editora Forense. 2003.

FILHO, Nagib Filho e CARVALHO, Gláucia. Vocabulário Jurídico. 21ª edição. Rio de Janeiro. Editora Forense. 2003.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (FBSP). Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Disponível em: <https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/02/anuario-2020-final-100221.pdf>. Acesso em 26/03/2021.

HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Salles. Violência. In: Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

KOLLER Silva Heitor. Violência doméstica: Uma visão ecológica. In: AMENCAR (Org.), Brasília: UNICEF, 2000.

PAVIANI, Jayme. Conceitos e formas de violência [recurso eletrônico]: / org. Maura Regina Modena. Caxias do Sul, RS: Educs, 2016.

PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Violência patrimonial tem passado despercebida no Direito das Famílias. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2015-set-06>. Acesso: 26/03/2021.

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