Compreender o regime jurídico do exercício da greve pelos servidores públicos pressupõe a análise incidental das seguintes questões: taxonomia do servidor público, natureza jurídica do instituto da greve, adstrição do Poder Público aos princípios da anterioridade e universalidade orçamentária, greve como direito fundamental, distinção entre a greve como instrumento jurídico e a greve como instrumento político, distinção entre a greve de cunho econômico e a greve de cunho ambiental e a competência para o julgamento de ações concernentes ao direito de greve.
Assim, prodromicamente, reunamos o funcionalismo público, quanto ao regime jurídico a que está jungido, nos seguintes conjuntos básicos: a) o universo dos servidores comuns chamados de "estatutários"; b) o conjunto dos servidores apelidados de "celetistas" e prestadores de serviços aos órgãos da administração pública direta, autárquica, fundacional e a empresas estatais não exploradoras de atividades econômicas; c) o grupo dos servidores "celetistas" prestadores de serviços a empresas estatais exploradoras da atividade econômica; d) e os servidores públicos militares.
O art. 37, VII da Magna Carta assegura ao servidor público o direito de greve, a ser exercido nos termos de ulterior lei específica. Anteriormente à EC 19/98, tal exercício se daria nos termos e limites de lei complementar. Forte no princípio hermenêutico da força normativa da Constituição (Canotilho), segundo o qual, havendo várias interpretações possíveis, deve-se adotar a que garanta maior permanência, aplicabilidade e amplitude à norma constitucional, é forçoso concluir que o sobredito dispositivo veicula norma de eficácia contida, e não limitada, isto é, o direito de greve já está garantido ao servidor público (não será a lei específica que o fará), apenas seus limites e termos é que poderão ser definidos pela lei específica.
Conforme analisaremos oportunamente, esta afirmativa parte da premissa de que a greve é direito fundamental e deverá ser harmonicamente conformada com os preceitos de índole orçamentária presentes na Magna Carta, firme no princípio da unidade da Constituição.
Finalmente, pela posição tópica do enunciado no texto constitucional, temos que o art. 37, VII da CF abrange tanto os servidores ocupantes de cargos públicos como os exercentes de empregos públicos, à exceção dos empregados de sociedades estatais exploradoras de atividade econômica.
Na medida em que a Constituição preconizou o sistema da livre concorrência na esfera econômica (art. 170, IV), tal valor norteará o regime da greve dos empregados de empresas estatais exploradoras de atividade econômica. Tal assertiva se funda no art. 173, II da Constituição, que não se compraz com privilégios às estatais não extensíveis ao setor privado.
Aqui, destarte, há um novo valor agregado ao regime da greve, qual seja, o da igualdade de condições jurídicas entre os agentes econômicos públicos e privados (art. 5º, caput, da CF, c/c art. 170, IV e art. 173 como um todo). E conforme será pormenorizado adiante, sequer os óbices orçamentários seriam oponíveis a tais empregados, havendo identidade plena de regime com os empregados em geral, aplicando-se-lhes tão somente o art. 9º da Constituição, pelo qual aos trabalhadores competirá decidir quanto à conveniência e oportunidade da greve, bem como quanto à pauta reivindicatória.
Quanto aos militares, a greve é categoricamente vedada, bem como a associação sindical (art. 142, IV da Constituição). Neste contexto específico, o instituto da greve agrega valores específicos, como o da rigidez disciplinar e da hierarquia militar, questões afetas ao estuário da segurança nacional.
Estes são, basicamentes, os lindes a que está ligado o exercício do direito da greve no serviço público propriamente dito e no serviço público em sentido lato, disciplina esta que a ordem internacional de certa forma corrobora, como se depreende do art. 8º, 1, d e 2 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Contudo, desde Luhman as ciências jurídicas apontam o direito como apenas mais uns dos sistemas do mundo fático, isolado pragmaticamente a fim de reduzir as complexidades deste universo, mas não hermeticamente fechado a ponto de impedir um constante feedback, um fluxo de informações com o meio em que se insere. Assim, não é suficiente a análise formal do instituto nos moldes preconizados pelos positivistas lógicos do Círculo de Viena, sendo necessário relevar a greve, outrossim, como um fato social, um fenômeno fático, uma força que não existe apenas em decorrência da lei.
E é nesse sentido do fenômeno da greve que os operadores do direito, tradicionalmente afetos à formação juspositivista dogmática, encararão as principais dificuldades para lidar racionalmente com o movimento paredista exercido por servidores públicos comuns da Administração direta, autárquica e fundacional e por militares.
A greve é um meio de autotutela de direitos e interesses trabalhistas em sentido amplo. Tais interesses são vastos; afora questões de índole micro ou macroeconômica, tange temas dito ambientais, relacionados à saúde e ao meio ambiente do trabalho, assuntos estes diretamente relacionados à vida, donde o caráter fundamental do direito ao meio ambiente saudável (art. 225) e à saúde (art. 196 da CF). O princípio da solidariedade universal que rege tais ordens é considerado fator de referibilidade ampla quanto aos destinatários ativos e passivos do direito de saúde.
Esta greve ambiental (na feliz expressão cunhada por Raimundo Simão de Mello), além de adentrar o conceito material de direitos fundamentais por força do sistema aberto destes direitos (CF, art. 5º, § 2º), especificamente quanto aos trabalhadores também ingressa formalmente em tal categoria por força da localização tópica, no título dos direitos e garantias fundamentais, do art. 6º, da parte final do caput do art. 7º e do inciso XXII deste mesmo artigo da Constituição.
Em síntese, quer no que toca aos trabalhadores agasalhados pelo capítulo II do título II da Magna Carta (empregados comuns e avulsos), quer no que toca a todos os demais trabalhadores, inclusive militares, agasalhados subsidiariamente pelo art. 5º, caput, da Constituição, a greve ambiental, ao se consubstanciar em direito ou fato social, é forma de autotutela justa e jurídica a todos os segmentos, e nenhum óbice poderá ser oposto a tal modalidade de greve, que pleiteia interesses e direitos implícitos no direito à vida e, mais, nos princípios da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho (art. 1º, III e IV da Constituição).
É que a greve serve à implementação destes direitos fundamentais, servindo-lhes como instrumento, como adjetivo, como acessório, daí sua convolação em direito de igual dimensão, tal como a sorte do acessório que segue o principal.
Assim, a greve ambiental será sempre lícita, se calcada no jus resistentiae de todo cidadão cioso de preservar a própria vida. Neste sentido, presentemente se viu a ameaça de paralisação dos militares operadores de vôos, cuja finalidade seria pressionar as autoridades a adotar providências relacionadas às condições insalubres em que este desgastante ofício vem sendo desempenhado.
Interessante notar que em recente movimento deflagrado entre os funcionários da FEBEM-SP, o TST sinalizou a mudança de sua clássica orientação de que aos servidores públicos não fora reconhecida a validade das convenções coletivas (art. 39, §3º), apontando a possibilidade de debate quanto a condições ligadas à insalubridade, mormente quando tais questões não demandarem dispêndio de verbas públicas (notícias do Tribunal Superior do Trabalho, 19.8.2005, www.tst.gov.br, apud Raimundo Simão de Melo, A Greve no Direito Brasileiro, LTR, 2006, p. 128).
Convém salientar, ademais, que sequer os preceitos de higidez orçamentárias seriam oponíveis em tal situação, envolvendo questões ambientais ligadas à saúde e à vida, caso houvesse a necessidade de injeção de recursos públicos.
Deveras, os princípios da anterioridade orçamentária, da universalidade orçamentária e da estrita legalidade administrativa previstos nos arts. 37, caput, 165, §5º, e 167, II, 169, § 1º da Constituição são apenas alguns dentre tantos princípios guardados pela ordem constitucional, que não devem simplesmente eliminar a ponderação com outros valores que com eles venham a se chocar.
Conquanto importantes, os princípios que regem a atividade orçamentária devem ser conformados proporcionalmente com princípios que regem a vida. No Estado Democrático de Direito, com o novo sentido que se é devotado à cidadania, o ordenamento, para se usar uma expressão egológica, deve tomar o ser humano como fundamente, este que, nas palavras de Kant, é o único fim em si mesmo. Seguindo a tradição do citado filósofo, as coisas ou têm preço ou têm dignidade. Estando a matéria indissociavelmente ligada à dignidade humana, a questão financeira é inoponível, cumprindo ao Poder Público corresponder às expectativas em apreço quer mediante a utilização de créditos adicionais, quer por meio de créditos extraordinários. Ademais, há que se ressaltar que os princípios orçamentários mencionados se voltam precipuamente ao Administrador, e não ao cidadão e tampouco às emanações judiciais, sendo certo que a própria Lei de Responsabilidade Fiscal exclui de sua sistemática as obrigações pecuniárias decorrentes de imposição legal em sentido amplo (aqui compreendida a imposição constitucional e a judicial).
Entretanto, veiculando a greve interesses econômicos, para o servidor público em sentido amplo apresenta-se o óbice do art. 169, §1º (inaplicável ao empregado de empresas estatais exploradoras de atividades econômicas, quer por força do art. 173, §1º, II, quer por força do 169, § 1º, II). Neste tipo de greve, a tendência jurisprudencial maciça é de decretação de impossibilidade jurídica do pedido que vier a ser deduzido em juízo. Todavia, convém tecer uma análise crítica de tal posicionamento.
Excepcionalmente, a greve econômica do servidor público poderá tocar a dignidade da pessoa humana, colocando-se novamente o já analisado conflito entre princípios orçamentários (que guardam grande importância axiológica, na medida em que dizem com as finanças do Estado e, reflexamente com sua própria sobrevivência e com a sua soberania) e valores fundamentais e umbilicalmente ligados ao gênero humano. Em tais situações, excepcionalmente é possível contemporizar o dogma da vedação a aumentos remuneratórios ao funcionalismo à míngua da lei.
Primeiramente, há que se enfatizar que o ordenamento deveria prever mecanismos compensatórios à restrição do direito de greve para as categorias que menciona. Entretanto, o ordenamento deixou-as órfãs de qualquer satisfação.
Em segundo lugar, a greve, nestas situações excepcionais, deve ser tolerada, inclusive em relação aos militares, como fato social suscetível de chamamento das autoridades para a negociação, rumo à consecução de um verdadeiro acordo de cavalheiros (comprometendo-se as autoridades a enviarem projetos de lei de reestruturação da carreira, etc). Trata-se aqui de um aspecto político da greve, não podendo ser desprezado seu papel vocalizador dos anseios da coletividade e sua imanência ao valor democracia.
Finalmente, a greve econômica será lícita e a tutela jurisdicional deverá ser deferida em hipóteses extremadas, como no caso de inobservância do direito ao salário mínimo pela Administração, ou de inobservância ao princípio da irredutibilidade dos vencimentos e ao dever de reajustamento dos mesmos, ou mesmo em casos em que tal reajustamento ocorra em índices ínfimos em relação à inflação.
Isto posto, ante a omissão do Poder Público em disciplinar os meios pelos quais o direito (ou fato social) da greve no serviço público deverá ser exercido, impende a adoção de uma postura garantista, deferindo-se a aplicação, por analogia juris, da Lei nº 7.783/89.
Finalmente, resta definir qual ramo do Poder Judiciário deterá a competência para julgamento de demandas ligadas à greve no setor público. Quanto ao empregado público, dúvida inexiste quanto à competência da Justiça do Trabalho, haja vista os termos dos incisos I e II do art. 114 da CF.
Em se tratando de greve ambiental, relacionada a ambiente do trabalho que, por sua indivisibilidade, toque tanto a empregados públicos como a servidores investidos em cargo, a questão poderá ser deduzida perante a Justiça do Trabalho, ante a indivisibilidade do interesse, com a Justiça Comum detendo competência concorrente, para aqueles que advogam ser deste ramo judicial a competência para demandas de greve relativas a servidores com vínculo administrativo.
Contudo, nos assuntos estritamente concernentes aos ocupantes de cargos públicos, há, basicamente, dois posicionamentos doutrinários a respeito: 1) a competência seria da Justiça do Trabalho quanto a questões que envolvam empregados públicos e da Justiça Comum quanto a servidores com vínculo estatutário ou administrativo, forte na decisão do STF no bojo da ADIN nº 3.395-6 ; 2) a competência seria da Justiça Obreira, com base no inc. II do art. 114 da Magna Carta, não inquinado pela sobredita ADIN nº 3.395-6, cujo objeto limitou-se ao exame do inciso I do art. 114, tanto que a decisão do STF expressamente se restringe a mencionar causas entre servidores estatutários e Poder Público, não mencionando lides envolvendo o sindicato da respectiva categoria.
Bem se vê, ambas as posições se mostram defensáveis; contudo, com base na tradição jurídica pátria, é possível vislumbrar que pela aplicação da teoria da transcendência dos motivos determinantes das decisões de controle de constitucionalidade, por arrastamento, o entendimento exarado na ADIN 3.395-2 será aplicado ao inciso II do art. 114, pelo que a primeira corrente provavelmente prevalecerá na prática forense, restando à Justiça Comum o julgamento de lides decorrentes de interesses divisíveis reivindicados coletivamente por funcionários estatutários.
BIBLIOGRAFIA:
BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro, Trabalho Decente. São Paulo: LTr, 2004.
MELO, Raimundo Simão, A Greve no Direito Brasileiro. São Paulo: LTr, 2006.
SARLET, Ingo Wolfgang, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.