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A natureza jurídica da demissão por comum acordo

Agenda 15/04/2022 às 14:20

A demissão por comum acordo deve ser analisada ora conforme as regras de direito contratual, ora conforme as regras e princípios do direito trabalhista, desde que a via escolhida seja a mais favorável à parte mais vulnerável da relação.

Considerações iniciais

A demissão por comum acordo é modalidade de rescisão contratual que permite ao empregado definir, em conjunto com o empregador, os termos do encerramento de seu vínculo laboral. Introduzido pela Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467/2017), o instituto tem por objetivo regulamentar prática do mercado por meio da qual o empregado demitido devolvia o valor da multa do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) ao empregador (BENFICA, 2019). A demissão por comum acordo prevê limitações indenizatórias, conforme dispõe o artigo 484-A do Decreto-Lei nº 5.452/1943 (Consolidação de Leis do Trabalho CLT):

Art. 484-A.  O contrato de trabalho poderá ser extinto por acordo entre empregado e empregador, caso em que serão devidas as seguintes verbas trabalhistas: (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)

I - por metade: (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)

a) o aviso prévio, se indenizado; e (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)

b) a indenização sobre o saldo do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, prevista no § 1o do art. 18 da Lei no 8.036, de 11 de maio de 1990; (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)

II - na integralidade, as demais verbas trabalhistas. (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)

§ 1o  A extinção do contrato prevista no caput deste artigo permite a movimentação da conta vinculada do trabalhador no Fundo de Garantia do Tempo de Serviço na forma do inciso I-A do art. 20 da Lei no 8.036, de 11 de maio de 1990, limitada até 80% (oitenta por cento) do valor dos depósitos. (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)

§ 2o  A extinção do contrato por acordo prevista no caput deste artigo não autoriza o ingresso no Programa de Seguro-Desemprego. 

Percebe-se que a modalidade de demissão por comum acordo reduz as prerrogativas do trabalhador, que terá direito a apenas a metade do valor do aviso prévio e da indenização sobre o FGTS, em vez da sua integralidade. Implica, também, a impossibilidade de utilização do seguro-desemprego e o acesso a somente 80% do saldo do FGTS.

Faz-se necessário refletir sobre a natureza jurídica dessa nova modalidade de demissão criada pela Lei 13.467/2017. Se, por um lado, estão presentes elementos típicos da relação contratual, por outro, é preciso ponderar sobre a fundamentação trabalhista que permeia a relação empregado-empregador, inclusive na celebração do acordo de demissão.

O objetivo do presente artigo é analisar a nova modalidade demissional à luz da regulação geral sobre direito dos contratos e concluir se há elementos que permitem caracterizá-la como relação contratual ou não. A metodologia a ser utilizada será a análise de doutrina e legislação sobre direito contratual e trabalhista, com foco na regulação da demissão por comum acordo.

Natureza contratual da demissão por comum acordo

Segundo o modelo clássico da Escada Ponteana, os elementos constitutivos dos negócios jurídicos, entre os quais está incluído o contrato, são analisados nos planos da existência, da validade e da eficácia (TARTUCE, 2017). Para o negócio jurídico ser existente e válido, deve apresentar agente capaz, vontade livre e sem vícios, objeto lícito, possível, determinado ou determinável e forma prescrita e não defesa em lei. É o que dispõe o Código Civil:

Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:

I - agente capaz;

II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável;

III - forma prescrita ou não defesa em lei.

O cotejamento do que dispõe a CLT sobre o instituto da demissão por comum acordo com os requisitos do negócio jurídico estabelecidos pelo Código Civil não deixa dúvidas de que a celebração do acordo para extinção do contrato de trabalho tem natureza contratual. Os agentes que acordam a demissão são capazes, a extinção da relação trabalhista é objeto lícito, possível e determinado, e a forma foi expressamente prevista pela Lei 13.467/2017.

Uma vez confirmada a natureza contratual, faz-se necessário analisar o novo instituto criado pela Reforma Trabalhista à luz dos princípios que regem os contratos. A autonomia privada, a função social dos contratos, a força obrigatória dos contratos e a boa-fé objetiva constituem a base principiológica do Código Civil que rege os instrumentos contratuais (TARTUCE, 2017).

A autonomia da vontade, em tese, está presente na formação do contrato de demissão por comum acordo. Não se pode conceber, contudo, que empregado e empregador estejam na mesma posição negociadora e que a vontade de cada um dos lados seja dotada de igual autonomia. A formação da vontade do empregado deve ser analisada tendo em conta sua situação de subordinação, típica da relação trabalhista. Não se afasta a possibilidade de que o empregado, autonomamente, decida pela propositura do acordo de demissão a seu empregador, mas não se pode tomar como premissa que sua vontade sempre é manifestada de maneira absolutamente autônoma.

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O limite da liberdade de contratação é, conforme estabelece o Código Civil, a função social do contrato:

Art. 421.  A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. (Redação dada pela Lei nº 13.874, de 2019)

Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

Não obstante a nova redação trazida pela Lei nº 13.874/2019 o princípio permanece, estabelecendo que a liberdade de contratação está limitada pela função social do contrato. Segue válida, portanto, a interpretação segundo a qual os contratos devem ser lidos em conformidade com o meio social em que se inserem, garantindo equilíbrio às relações em que um dos contratantes predomina sobre o outro (TARTUCE, 2017). A análise do contrato de demissão por comum acordo deve, portanto, obedecer aos princípios da função social do acordo, de maneira a evitar onerosidade excessiva à parte mais frágil.

A boa-fé objetiva é princípio contratual que estabelece que os agentes devem ter sua conduta pautada pelos seguintes deveres anexos: cuidado em relação à outra parte, respeito, informação sobre o conteúdo do negócio, lealdade, probidade, cooperação, ação em conformidade com a confiança, com a razoabilidade e com a equidade (Idem). A aplicação direta desse princípio ao contrato de demissão por comum acordo ensejaria interpretação de que tanto empregado quanto empregador devem agir em consonância com os deveres anexos. Entretanto, presume-se ser menos oneroso para o empregador, em razão da posição que ocupa na relação trabalhista, descumprir algum desses deveres, em comparação com o empregado. Nesse sentido, a análise desse contrato de demissão segundo o princípio da boa-fé objetiva deve priorizar o potencial mais elevado de conduta irregular por parte do empregador. A regra expressa no art. 113 do Código Civil, segundo a qual os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração deve, portanto, ser interpretada de maneira conforme à realidade material da relação trabalhista, que permeia o contrato de demissão por comum acordo.

A análise do novo instituto demissional não pode, porém, desconsiderar o universo da legislação trabalhista que segue vigente. A demissão por comum acordo não afasta a incidência dos princípios constitucionais gerais e específicos do direito do trabalho.

Princípios trabalhistas constitucionais e a demissão por comum acordo

O contrato de demissão por comum acordo está inserido em relação trabalhista mais ampla e, portanto, a análise desse instrumento contratual não pode prescindir dos princípios constitucionais que regulam o direito do trabalho. A Constituição da República Federativa do Brasil (CF) é clara ao estabelecer princípios constitucionais gerais e específicos que seguem regendo a relação de trabalho, inclusive após a promulgação da Reforma Trabalhista e dos novos institutos por ela criados.

O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana aplica-se a todas as relações de trabalho, sobretudo a de emprego (LEITE, 2018). Não se pode conceber, portanto, que a celebração de contrato de demissão por comum acordo viole a dignidade do empregado. É passível de questionamento se os próprios termos desse acordo estabelecidos pelo art. 484-A da CLT não seriam contrários ao que estabelece a CF, em seu art, 1º, III:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(...)

III - a dignidade da pessoa humana;

Igualmente deve ser aplicável à análise da demissão por comum acordo o princípio do valor social da livre iniciativa, cuja implementação se dá pela aplicação de outros princípios constitucionais, como o da função social da propriedade e o da função social da empresa (LEITE, 2018):

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;

(...)

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

(...)

III - função social da propriedade;

Não é admissível, portanto, eventual contrato de demissão por comum acordo que desrespeite esses princípios constitucionais. A demissão, ao por fim à relação de trabalho, implica, preliminarmente, prejuízo em face do empregado, o que vai de encontro à função social que deve nortear as ações da empresa. É necessário, portanto, que, no caso concreto, se justifique de maneira fundamentada como essa extinção do vínculo, em termos mais desfavoráveis ao empregado do que o padrão, não é contrária aos princípios.

É necessário analisar também a aplicação dos princípios constitucionais específicos do direito do trabalho. É o caso do princípio da proteção da relação de emprego, que salvaguarda o empregado contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa (LEITE, 2018). Assim prevê a CF:

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

I - relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos;

Nesses termos, eventual contrato de demissão por comum acordo que tenha como substrato a demissão arbitrária ou sem justa causa poderá ser questionado. Não pode o novo instituto servir de fundamento ao empregador para desrespeitar preceito constitucional específico.

O princípio da proteção ao salário desdobra-se em outros: garantia do salário mínimo, irredutibilidade e isonomia salarial (LEITE, 2018). As normas estão previstas na sequência do art. 7º da CF:

IV salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;

(...)

VI irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo;

(...)

XXX proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil;

Não pode a demissão por comum acordo servir de instrumento menos oneroso ao empregador, em termos indenizatórios, para permitir-lhe a redução ou a diferenciação de salários. Eventual contrato de demissão firmado com esse objetivo pode ser questionado por estar violando preceito da legislação trabalhista.

O último fundamento jurídico apresentado neste artigo é, na verdade, o de maior importância para a tese defendida. Trata-se do princípio da fonte normativa mais favorável ao trabalhador (LEITE, 2018). Decorrente do art. 7º, caput, c/c art. 5º, § 2º, da CF, o princípio autoriza a aplicação de direitos previstos em outras fontes normativas, desde que em favor do trabalhador. Assim estabelece a CF:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

(...)

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

De acordo com a previsão constitucional, a aplicação das normas que regulam a relação trabalhista deve priorizar o tratamento mais benéfico ao empregado. É por essa razão que o contrato de demissão por comum acordo deve ser analisado ora conforme as regras de direito contratual, ora conforme as regras e princípios do direito trabalhista, desde que a via escolhida seja a mais favorável à parte mais vulnerável da relação.

Conclusão

A constatação da natureza contratual do instrumento de demissão por comum acordo não implica o afastamento da aplicação da norma trabalhista. A demissão, por qualquer meio, constitui elemento fundamental da relação de trabalho, pois acarreta o encerramento do vínculo. A incidência da legislação trabalhista sobre a modalidade de demissão analisada neste artigo deve ser mantida, pois se trata de encerramento de vínculo, a princípio, em termos mais prejudiciais ao empregado que os da demissão comum. Eventual objetivo de normatizar prática já implementada no mercado não pode servir de fundamento para o descumprimento da legislação trabalhista.

A natureza contratual do novo instituo de demissão deve operar em favor do empregado, uma vez que a Constituição autoriza o uso da norma que lhe é mais benéfica. A verificação dos elementos e dos princípios contratualistas no acordo de demissão pode levar à conclusão de que houve vício na sua formação, implicando a permanência do empregado no cargo ou o encerramento do vínculo mediante indenização integral. Há que se ter cuidado, contudo, para evitar que a análise do acordo pela lógica contratualista conduza à equiparação entre as partes. A relação de trabalho é, por natureza, desigual, e o tratamento mais benéfico ao empregado deve subsistir.


Referências bibliográficas

BENFICA, Kristty Ellen. Demissão por Acordo: Entenda como funciona. 31 de janeiro de 2019. Disponível em: [https://www.jornalcontabil.com.br/demissao-por-acordo-entenda-como-funciona/]. Acesso em 5 de maio de 2019.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: [http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm]. Acesso em 26 de junho de 2019.

BRASIL. Decreto-lei nº 5.452, de 1 de maio de 1943. Aprova a consolidação das leis do trabalho. Disponível em: [http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm]. Acesso em 26 de junho de 2019.

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Instituti o Código civil. Disponível em: [http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm]. Acesso em 10 de março de 2021.

BRASIL. Lei 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Disponível em: [http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13467.htm]. Acesso em 26 de junho de 2019.

LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de direito do trabalho. 9 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

TARTUCE, Flávio. Direito civil, v. 3: teoria geral dos contratos e contratos em espécie. 12 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

Sobre o autor
Lucas Cortez Rufino Magalhaes

Graduando em Direito pela Universidade de Brasília

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAGALHAES, Lucas Cortez Rufino. A natureza jurídica da demissão por comum acordo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6862, 15 abr. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/96772. Acesso em: 2 nov. 2024.

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