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Medidas executivas atípicas em desfavor da Fazenda Pública

Agenda 26/03/2022 às 17:10

É dado ao Judiciário lançar mão da atipicidade de meios executivos contra a Fazenda Pública?

Recentemente, tive a oportunidade de ler a obra "Da vedação ao non factibile: uma introdução às medidas executivas atípicas", de autoria do professor Marcos Youji Minami, por intermédio da qual pude desbravar o tema da atipicidade na execução, assunto com o qual, até então, eu não era muito familiarizado. A partir daí, veio-me à mente uma dúvida: é dado ao Judiciário lançar mão da atipicidade de meios executivos contra a Fazenda Pública? Em sendo a resposta positiva, quais seriam os limites a serem fixados? Movido por esta curiosidade, dediquei certo tempo à pesquisa do assunto, e gostaria de compartilhar com vocês a conclusão a que cheguei.

À guisa de introdução, não se mostra despiciendo asseverar que a execução corresponde, em apertada síntese, ao conjunto de meios materiais previstos em lei, à disposição do juízo, visando à satisfação do direito (NEVES, 2020, p. 1041). Resvalando por esta senda, a doutrina sói ramificá-la em dois grandes blocos, quais sejam, execução direta (por sub-rogação)[1] e indireta (por coerção)[2].

Demais disso, para que haja a concretização da alhures mencionada satisfação do direito, goza o juízo da possibilidade de utilização de medidas executivas. Jungido a isso, uma tormentosa questão é erigida: a da [a]tipicidade dos meios executivos. A doutrina digladia-se em torno deste ponto, notadamente à luz do artigo 139, IV, do Código de Processo Civil de 2015, in verbis:

Art. 139 O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe:

[...]

IV- Determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária.

Para autorizada parcela doutrinária, o dispositivo vertente traz à liça uma lídima cláusula geral de atipicidade dos meios executivos (CÂMARA, 2022, p. 257), que se presta a garantir a observância do princípio da efetividade[3]. Lado outro, renomados juristas se manifestam pela inconstitucionalidade da atipicidade em apreço, sob o argumento (extremado, data maxima venia) de que esta indeterminação máxima se presta a delegar à jurisdição a atribuição de elidir maus costumes e reformar a moralidade social (ASSIS, 2022, p. 150 et seq).

Com o devido respeito ao coro dos que sustentam entendimento contrário, julgo ser possível a utilização de medidas executivas, cum grano sali (por óbvio, não de maneira ampla e irrestrita, sendo curial assentar alguns parâmetros). Afirmo isso com estribo na vedação ao non factibile, decorrência imediata da vedação ao non liquet, consubstanciada no artigo 140 do Diploma Processual[4]. Peço licença para fazer uma lacônica digressão histórica: em Roma, no período das ações do processo civil clássico, o judex, em não havendo formação de convicção acerca da causa sub examine, poderia declarar sibi non liquere (não me parece claro), determinando que houvesse a escolha de novo julgador (TUCCI, 2013, p. 49, apud MINAMI, 2020, p. 129). Paralelamente, o sistema processual brasileiro contemporâneo não abre margens para se abster de julgar. As lacunas porventura existentes devem ser colmatadas pelos métodos de integração, como analogia, costume e princípios gerais de direito, para citar alguns exemplos.

Falou-se, algures, da importância em se fixar parâmetros para a adoção de medidas atípicas. Vem a talho de foice elencar alguns, ainda que de maneira não exauriente. Pois bem, aprioristicamente, é crucial que haja uma fundamentação casuística. Nas palavras de Gabriela Macedo Ferreira (2022, p. 410), quanto mais grave a medida, maior o ônus argumentativo. É o mínimo que se espera em um Estado Constitucional de Direito. Vigora, v.g., na perspectiva de apreciação probatória, o sistema do livre convencimento motivado. Isso não importa dizer que é conferido ao togado uma carta em branco para que preencha ao seu alvedrio, sem levar em consideração as peculiaridades do caso concreto, as normas em pauta, enfim. A fundamentação permite aos sujeitos processuais, aos tribunais e à própria sociedade um exame lógico da decisão judicial.

De mais a mais, deve o magistrado franquear às partes a possibilidade de contraditório. Afinal, constitui-se, juntamente com o ônus argumentativo (rectius: de fundamentação), enquanto ponte de ouro entre a democracia e a jurisdição. Na esteira das preleções de Renê Francisco Hellman (2018, p. 301), o diálogo entre o juiz e as partes, decorrente da chamada bilateralidade de audiência, é fator de fundamental importância para o processo. É a partir dele que o julgador buscará elementos que permitam a sua decisão.

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Demais disso, exsurge o princípio da proporcionalidade, que se desdobra em algumas máximas. Tendo por pano de fundo as pontuações de Karl Larenz (1989, pp. 585, 586, apud LENZA, 2019, p. 179), o princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, em essência, consubstancia uma pauta de natureza axiológica que emana diretamente das ideias de justiça, equidade, [...]. Enquanto princípio geral de direito, serve de regra de interpretação para todo o ordenamento jurídico. Nesta toada, subdivide-se em necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito. O primeiro, no escólio de Pedro Lenza (2019, p. 179): adoção da medida que possa restringir direitos só se legitima se indispensável para o caso concreto e não se puder substituí-la por outra menos gravosa[5]. O segundo, de seu turno, quer significar que o meio escolhido deve atingir o objetivo perquirido, ao passo que o terceiro implica que, sendo a medida necessária e adequada, deve-se investigar se o ato praticado, em termos de realização do objetivo pretendido, supera a restrição a outros valores constitucionalizados (LENZA, 2019, p. 180).

No que concerne à aplicação subsidiária ou não da atipicidade, revela-se paradigmático o enunciado n° 12 do Fórum Permanente de Processualistas Civis, senão vejamos:

(arts. 139, IV, 523, 536 e 771) A aplicação das medidas atípicas sub-rogatórias e coercitivas é cabível em qualquer obrigação no cumprimento de sentença ou execução de título executivo extrajudicial. Essas medidas, contudo, serão aplicadas de forma subsidiária às medidas tipificadas, com observação do contraditório, ainda que diferido, e por meio de decisão à luz do art. 489, § 1º, I e II. (Grupo: Execução)

Colhe-se, pois, que existe uma inclinação pela subsidiariedade das medidas vertentes, é dizer, apenas seria possível lançar mão delas após o esgotamento [infrutífero, logicamente] dos meios típicos. Neste diapasão, comungo do pensamento de Minami (2020, p. 222): Defendeu-se que a situação ideal é a tipicidade como regra – para os casos em que há procedimento detalhado – e a atipicidade apenas subsidiariamente. No entanto, nada impede a combinação dessas medidas. Ora, por que tornar algo conjuntivo em disjuntivo? Se a aplicação combinada resultar de ponderação fundamentada e racional, observando as balizas delineadas (tanto acadêmica quanto jurisprudencialmente) em prol da efetividade da execução, sobejam razões para admiti-la.

Vislumbra-se uma miríade de outros parâmetros para a aplicação das medidas executivas atípicas. Entrementes, o escopo do presente texto não é analisá-las detidamente, porquanto renomados juristas já o fizeram[6]. Passemos, pois, ao objeto precípuo do nosso estudo.

Sobrepujadas estas questões prolegômenas, importa, agora, lucubrar a respeito da utilização de medidas executivas contra a Fazenda Pública, expressão utilizada pela legislação brasileira para designar a presença em juízo de pessoa jurídica de direito público. [...]. Seu regime jurídico é próprio- esse é o objeto de estudo do direito processual público (BARROS, 2021, p. 26). Verdade seja dita, processualmente falando, não se pode cingir a expressão apenas às pessoas jurídicas de direito público, mas também às empresas públicas e às sociedades de economia mista, desde que desempenhem serviço público próprio do Estado (PEIXOTO et al, 2022, p. 165).

Sob este crivo, as execuções por quantia certa contra a Fazenda Pública são manifestamente distintas de qualquer outra execução, máxime em virtude da impenhorabilidade e da alienabilidade condicionada (ALEXANDRE, 2017, p. 833 et seq). A despeito disso, não enxergo empecilhos (ao menos realizando uma interpretação literal do artigo 139, IV, do CPC) ao emprego de medidas executivas atípicas contra a Fazenda, contanto que se obedeça aos multicitados parâmetros e que, ademais, obedeça-se a princípios basilares do Direito Administrativo, como os da supremacia e indisponibilidade do interesse público, continuidade dos serviços públicos, enfim.

Apenas a título de ilustração, com espeque nos exemplos gizados por Marco Aurélio, Patrícia de Almeida e Renata Cortez (2022, p. 176 et seq), afigura-se desarrazoada a suspensão ou o cancelamento de evento público como forma de constranger o ente estatal ao adimplemento de uma obrigação de dar, na medida em que, além de ocasionar prejuízo [inidôneo] à coletividade, em nada guardaria relação com a mencionada obrigação. De outra banda, não parece impossível, por exemplo, recorrer ao bloqueio de cartões corporativos utilizados por agente públicos de alto escalão.

De compasso com o que noticiam Janaina Soares e Lara Dourado (2022, p. 682), a jurisprudência pátria tem oscilado sobre chancelar ou não a atipicidade dos meios executivos contra a Fazenda Pública:

Na linha do que vem sendo entendido pelo STJ, [...], é possível o bloqueio de contas públicas para a satisfação de obrigação de entregar coisa (ex: medicamentos). [...]. Trata-se de medida atípica de execução em face do ente público, legítima na medida em que o valor do bloqueio não impeça a continuidade da atividade pública, o que deve ser averiguado pelo magistrado antes da determinação da medida.

Ex positis, chego à ilação de que é possível a utilização de medidas executivas atípicas contra a Fazenda Pública, desde que não se desborde dos lindes ora estipulados (como proporcionalidade, observância das normas principiológicas estruturais do Direito Administrativo, enfim). Pugnar por entendimento contrário poderia dar azo a um processo de execução permeado pela inefetividade, ao arrepio do que preconizam os princípios de cariz constitucional.


[1] Aqui, resta preterida a anuência do executado, de tal sorte que o Estado, em verdadeira substituição à sua vontade, garante a satisfação do direito do exequente.

[2] Conforme o próprio nome sugere, não há substituição de vontade do executado. O que existe, em verdade, é uma pressão psicológica para que este, voluntariamente, cumpra a obrigação.

[3] Marcos Youji Minami (2020, p. 31 et seq), ao minudenciar, magistralmente, o tema, chega à ilação de que o princípio da efetividade não está expresso na Constituição, mas decorre da cláusula geral do devido processo legal.

[4] Art. 140: O juiz não se exime de decidir sob a alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico.

[5] O Código de Processo Civil prestigia, por exemplo, em seu artigo 805, o princípio da menor onerosidade: Quando por vários meios o exequente puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o executado.

[6] Neste sentido, ver, com proveito: DIDIER JR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Diretrizes para a concretização das cláusulas gerais executivas dos arts. 139, IV, 297 e 536, §1°, CPC, In: Medidas executivas atípicas, 3 ed. Salvador: Juspodivm, 2022.

Sobre o autor
Gustavo Machado Rebouças

Jovem eivado de inexperiência que, casualmente, se presta a tecer breves considerações acerca do mundo jurídico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REBOUÇAS, Gustavo Machado. Medidas executivas atípicas em desfavor da Fazenda Pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6842, 26 mar. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/96810. Acesso em: 21 nov. 2024.

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