Dentre os diversos questionamentos que acompanham o estudo da Lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha graças a infelizmente afamado episódio de nossa história recente, coloca-se, com proeminência, a percepção de que a pretexto de regulamentar o § 8º do art. 226 da Constituição Federal – CF, a novatio legis fez acepção de gênero não autorizada pela CF, do que decorreria uma possível inconstitucionalidade.
Seguindo determinação da Lei Complementar 95/98, art. 7º, III (Art. 7º O primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação, observados os seguintes princípios: III - o âmbito de aplicação da lei será estabelecido de forma tão específica quanto o possibilite o conhecimento técnico ou científico da área respectiva) a Lei 11.340/06 atesta ser vocacionada, exclusivamente, à disciplina da violência doméstica perpetrada contra mulher. Contudo, colhe-se de seu art. 44 modificação do preceito secundário do tipo inscrito no art. 129, § 9º do Código Penal – CP (Art. 44. O art. 129 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), passa a vigorar com as seguintes alterações: art. 129 § 9o Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: pena - detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos).
Diante disto, pergunta-se: tendo em vista a explicitação do objeto da referida norma e a garantia constitucional da isonomia, seria possível ter havido apenas derrogação do antigo CP, art. 129, § 9º? Vale dizer, tendo em vista a acepção de gênero pretendida pela Lei Maria da Penha lesões corporais leves perpetradas, v.g., por filho contra pai idoso seriam apenadas nos termos da redação anterior do CP, art. 129, § 9º?
Apesar de tentadores os argumentos pela exclusividade do objeto normativo da Lei Maria da Penha, forçoso convir que interpretação estrita da norma penal incriminadora em comento revela e impõe considerar-se substituído, abrrogado, o preceito secundário do § 9º do art. 129 do CP.
É que apesar do disposto no art. 1º da Lei Maria da Penha e das disposições da Lei Complementar 95/98 no sentido de que as leis devem indicar expressamente o objeto normado e seu âmbito de aplicação, sabe-se que entre lei complementar e lei ordinária não há propriamente hierarquia, mas diversos âmbitos normativos reservados constitucionalmente.
O conflito entre lei complementar e lei ordinária não há de solver-se pelo princípio da hierarquia, mas sim em função de a matéria estar ou não reservada ao processo de legislação complementar (RE 419.629/DF, 1ª Turma, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgado em 23/05/06).
Demais disso, ao contrário do que ocorre, por exemplo, com as leis orçamentárias (CF, art. 165, § 8º), não há qualquer determinação constitucional no sentido de que a lei que regulamente o § 8º do art. 226 (que não faz distinção de sexo quando determina a edição de lei que coíba a violência doméstica) trate apenas da proteção da mulher em situação de violência doméstica. Ao contrário, determina que seja dispensada assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.
Portanto, não há interpretação extensiva de norma penal incriminadora, mas interpretação estrita do art. 44 da Lei Maria da Pena, que alterou apenas a pena cominada à lesão corporal do § 9º do art. 129 do CP.
Não houve qualquer referência à exclusão do homem de seu âmbito de proteção.
E nem poderia mesmo haver, pois tal operação implicaria situação absurda - vedada por conhecida regra de hermenêutica - consistente em, por exemplo, tratamento penal diferenciado para filhos que agridam mãe ou pai idoso. Não há discrímen jurídico razoável que permita admitir este tratamento penal, pois ambas as vítimas estariam na mesma situação de hipossuficiência física em relação ao agressor, que se beneficiou das relações domésticas de coabitação para perpetrar o ilícito.
Não há reprovação constitucional ou legal a que a Lei 11.340/06 reprove penalmente condutas perpetradas em face de outras pessoas em situação de hipossuficiência que não a mulher, como o fez o art. 44 do referido diploma legal.
A alteração do preceito secundário do art. 129, § 9º do Código Penal realiza em sua plenitude o mandamento constitucional.
Ademais, a opção legislativa por tutelar pessoas em idênticas situações no bojo de texto legislativo destinado prioritariamente a apenas uma categoria delas não é novidade em nosso ordenamento.
O Estatuto do Idoso, apesar de referir-se apenas à proteção do maior de 60 anos, alterou o art. 141 do Código Penal para dispensar o mesmo tratamento penal para que caluniar ou difamar idoso ou deficiente, categorias diversas de indivíduos que se encontram em idêntica situação diferenciada em relação ao agressor.
"Apesar desta alteração localizar-se no bojo de uma lei que protege o idoso, ninguém irá concluir, em sã consciência, que o dispositivo tem aplicação quando deficiente a vítima, ou pior, que teria a vítima que ser, ao mesmo tempo, idosa e deficiente. Pensar desta forma afrontaria um dos principais (e não o único) processos de interpretação que leva em conta o texto literal da lei denominado método gramatical ou filológico" (CUNHA, Rogério Sanches. PINTO, Ronaldo Batista. Violência Doméstica. RT: São Paulo, 2007, 142/143 p.), que, apesar de isoladamente insuficiente, é limite lógico de toda e qualquer atividade interpretativa.
Neste sentido, observa-se que a Lei 11.340 acrescentou parágrafo 11º ao art. 129 do Código Penal agravando a pena da lesão corporal praticada contra deficiente (§ 11. Na hipótese do § 9o deste artigo, a pena será aumentada de um terço se o crime for cometido contra pessoa portadora de deficiência) e ninguém ousaria considerar, com seriedade, que o deficiente referido pela norma deverá tratar-se tão somente de mulher.