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Calem a boca, nos disseram. Calaremos?

Agenda 19/03/2022 às 09:55

No dia em que um Ministro da mais alta corte brasileira determina a exclusão total de uma rede social (Telegram), por acaso abro o portal de outra rede social (Twitter) e deparo com uma pessoa dizendo resumidamente o seguinte:

Foi muito bom a exclusão dessa plataforma porque já soube de pessoas que sofreram golpes praticados por meio dela, além do fato de que pode ser usada para a prática de crimes, tais como tráfico de drogas, de armas, disseminação de pornografia infantil, afora imoralidades de toda espécie.

Então me vem à cabeça o seguinte pensamento:

É, deve estar certo. Aliás, não deveria ser bloqueado e excluído totalmente somente o Telegram, mas também todas as redes sociais, as quais igualmente podem ser utilizadas para o bem e para o mal. Vamos apoiar a proibição do próprio Twitter, do Instagram, do Facebook, do GETTR, do Youtube, do WhatsApp e quaisquer congêneres. Afinal, também já soube de pessoas que foram vítimas de golpes e de uso indevido de todas as redes. Mais que isso, seria bom acabar de vez com a telefonia móvel e fixa, nada mais de celulares ou telefones, chega de todo esse mal, desses canais pelos quais as pessoas podem agilizar e expandir sua capacidade de comunicação e expressão. Tudo isso é um mal em si, um mal irredutível, absoluto. Melhor ainda, seria uma boa ideia, para evitar qualquer outro contratempo em possíveis relações interpessoais presenciais, que se cortassem as línguas e/ou removessem as cordas vocais de todas as pessoas.

Começo a imaginar um ser humano parado em pé com as pernas afastadas e os braços estendidos e abertos lateralmente, à semelhança do Homem Virtruviano desenhado por Leonardo da Vinci. Inicialmente tem um olhar perscrutador e vivo, mas esse olhar vai aos poucos esmaecendo, como se alguma nuvem negra o recobrisse até assumir um aspecto cadavérico. A luz que rodeia o homem e nos possibilita vê-lo, vai cedendo a sombras que recobrem suas pernas, depois seu tronco, seus braços e, finalmente toda a impressão de seu rosto, suas feições e expressões. Aquele homem então desparece, como um sol eclipsado pela lua. Resta apenas um círculo de trevas.

Estou em meu escritório, o dia é claro, um céu azul é visível pela janela, a vida segue em sua beleza, ternura e violência. Contudo, olho para um canto sombrio nesse escritório ao lado de uma pequena prateleira de livros. As sombras me atraem, penso em sentar-me encolhido naquele canto escuro, fechar as janelas, apagar as luzes e ficar ali, esperando ser recoberto pelas trevas. Lembro-me de Gregor, personagem de Kafka, que se tornou um inseto indesejável até para sua família e achou que o melhor era simplesmente sumir. Talvez seja encontrado duro como uma pedra, ressequido no canto escuro do escritório e isso seja um alívio para muita gente. Um inseto ou qualquer coisa indiscernível de outras coisas do mundo inanimado. [1]

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Mas, certamente há personagens bem melhores na história e na literatura para imitar. Personagens que se levantam do chão, que não se vergam e que se inserem numa História que não depende de aprovações, de permissões ou de condições passageiras, uma História na clave da eternidade. A proposta de Kempis é bem mais atrativa e digna da humanidade que há em mim e em todo ser humano. Imitar aquele que vence o tempo, que vence a opinião dos homens, a força, que não se abate, não é sobrepujado nem mesmo pela morte. Talvez em sua face humana de fraqueza peça que o cálice dorido seja afastado, mas logo compreende que não pode alterar sua rota. Nossa imitação deste modelo que nos foi legado não é fácil, mas é o único caminho. Não podemos ceder à tentação de querer agradar aos homens, nem de temer desagradar-lhes, pois só assim será possível gozar grande paz. [2] Além disso, nossas virtudes somente se manifestam em plenitude na adversidade; pois as ocasiões não fazem o homem fraco, mas revelam o que ele é. [3] Não somos insetos, não morremos encolhidos num canto escuro, ninguém nos impõe o silêncio arbitrariamente nem podemos ser iludidos por falácias e mentiras, porque a verdade se sobrepõe, ela existe e, mais que isso, não desiste, ela resiste. [4] A verdade nos liberta do erro e nos põe em pé de coluna reta e digna. A nenhum homem é dado o direito de rastejar como um inseto. Sejamos dignos de nossa humanidade, que recebemos como um dom! Aos tiranetes e às falácias reservemos apenas nosso desprezo.

REFERÊNCIAS

KAFKA, Franz. A Metamorfose. Trad. Marques Rebelo. 17ª. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.

KEMPIS, Tomás. Imitação de Cristo. Trad. Pietro Nassetti. Rio de Janeiro: Martin Claret, 2001.

MARÍAS, Julián. Tratado Sobre a Convivência Concórdia sem acordo. Trad. Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

  1. KAFKA, Franz. A Metamorfose. Trad. Marques Rebelo. 17ª. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996, p. 122 137.

  2. KEMPIS, Tomás. Imitação de Cristo. Trad. Pietro Nassetti. Rio de Janeiro: Martin Claret, 2001, p. 98.

  3. Op. Cit., p. 28.

  4. MARÍAS, Julián. Tratado Sobre a Convivência Concórdia sem acordo. Trad. Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 23.

Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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