RESUMO
O objetivo deste trabalho é fazer uma abordagem sobre a judicialização da saúde no fornecimento de medicamentos, tendo em vista a reserva do possível, considerando como um direito fundamental social e um dever a ser provido pelo Estado. Neste sentido faz-se um aprofundamento do atual momento político social brasileiro, os princípios constitucionais envolvidos na prestação jurisdicional, assim como a limitação do seu uso na efetividade do direito à saúde. Discute-se aspectos doutrinários e jurisprudenciais que determinam e garantem o direito à saúde, a repartição de competências entre os entes federativos e a lei do Sistema único de Saúde SUS. Por fim, examina-se a atuação do judiciário e os limites necessários de suas decisões no âmbito da não interferência nas políticas de saúde e ao fornecimento gratuito de medicamentos, além de uma visão crítica a judicialização excessiva.
Palavras chaves: Judicialização. Proteção à saúde. Medicamentos. Direito coletivo. Obrigação estatal. Políticas públicas. Planejamento e uso de verbas orçamentárias.
SUMÁRIO
1-Introdução, 2- Desenvolvimento: 2.1 Abordagem constitucional e o atual momento político social brasileiro; 2.2 Sobre o princípio da dignidade da pessoa humana; 2.3 Limitação do uso dos princípios na efetividade do direito à saúde; 2.4 Reserva do possível e o fornecimento de medicamentos. 3-Conclusão. Referências.
1- INTRODUÇÃO
O presente trabalho abordará a questão da judicialização da saúde e seus limites visando o fornecimento de medicamentos pelo Estado e considerando o princípio da reserva do possível.
Especificamente sobre o fornecimento de medicamentos pelo Estado temos os comandos legais da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 em vários de seus artigos; 1º, 3º inc. III, 5º, 6º, 23 § único, 24º inc. XII, 30 inc. II, 196, 197, 198, além das leis infraconstitucionais; lei 8080/90, lei 9787/99, assim como os diversos princípios constitucionais que conferem a devida fundamentação legal ao direito à saúde.
O direito à saúde é um tema que constitui motivo de constante debate na sociedade do nosso país, existem muitos problemas, os mais diversos possíveis, enfrentados frequentemente pelos cidadãos que necessitam da prestação Estatal e se deparam com uma difícil resolução para que haja sua efetivação, pois vários fatores estão presentes condicionando esta prestação, incluindo a limitação de gastos orçamentários e, portanto a reserva do possível.
A administração pública não é capaz de prover isoladamente o necessário acesso universal e igualitário à saúde, e isto acontece, em praticamente todos os níveis de ação, desta forma, a escolha deste tema relaciona-se ao fato da existência das muitas controvérsias sobre o direito à saúde, evidenciando estarmos diante de questões de interesse público, coletivo, e em função disto, existindo um número expressivo de demandas no judiciário por aqueles que necessitam, e têm a fundada expectativa de que irão obter providências judiciais favoráveis. Porém, como todo direito possui um custo, que geralmente é variável para sua efetivação, e, os recursos existentes na Administração Pública para tanto, não são ilimitados, surgem às controvérsias.
A carta magna do direito brasileiro ampara o direito à saúde por conter em seu texto uma clara proteção aos direitos fundamentais fazendo jus a alcunha de ¨Constituição Cidadã¨.
Dentre os princípios fundamentais contidos na constituição federal de 1988, a dignidade da pessoa humana importa diretamente na necessidade absoluta de ser provido o bem pretendido, trata-se do bem da vida, sendo um conjunto de valores que permitem a existência e o núcleo a partir do qual, emanam os direitos fundamentais, estando contido nela o mínimo existencial.
A efetividade do direito à saúde materializada na entrega de medicamentos também esbarra em limitações impostas pelos princípios constitucionais, já que por existirem diversos princípios, que levam a direções variadas, a geração de conflitos é inevitável, provocando tensões e até eventuais colisões entre eles.
O instituto da reserva do possível é o principal contraponto à concessão dos direitos sociais e particularmente à saúde, porém, não é possível desconsiderar que estes direitos sociais pertencem à base do estado social e do bem estar, e por este motivo, atenuam o chamado estado mínimo. As justificativas usadas para as negativas destes direitos são muitas e se mostram apoiadas em variadas teses, iniciando assim, um debate constitucional com grande alcance.
A escassez de recursos faz parte da nossa realidade e não pode ser ignorada tanto pela sociedade quanto pelos operadores do direito, incluindo ser relativa ou absoluta.
Neste estudo faz-se uma abordagem sobre a judicialização da saúde no fornecimento de medicamentos, considerando todo o contexto dos direitos fundamentais e o contraponto existente, tendo em vista a reserva do possível, e também o dever de prestação deste serviço a ser provido pelo Estado, procurando não se ater a considerações basicamente teóricas e fora da realidade prática jurídica.
A metodologia utilizada é a pesquisa bibliográfica com ênfase no direito à saúde e a judicialização da saúde, para o fornecimento de medicamentos e tendo em vista a reserva do possível.
2. DESENVOLVIMENTO
2.1 ABORDAGEM CONSTITUCIONAL E O ATUAL MOMENTO POLÍTICO SOCIAL BRASILEIRO
A evolução de como se formou o Estado a partir do contexto histórico do Século XVI, permite estudar com maior detalhamento, o que de forma convencional, se classificou como gerações de direitos.
Historicamente, sabe-se que o Estado Liberal é resultado da quebra do sistema anterior vigente que era o Estado Absolutista. Através das Revoluções Liberais e até se chegar a uma leitura das declarações de Direitos a elas vinculadas, como; a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa, a Declaração de Direitos da Virgínia, a Constituição dos Estados Unidos, onde podemos observar uma perspectiva jus naturalista, mas de conteúdo contratualista, fundamentando as relações político sociais no Direito.
Constata-se ainda a importância e o destaque dados para valores como; a vida, a liberdade, a integridade física, a igualdade e a propriedade, dentre outros, os quais constituem as garantias consagradas sendo estes bens considerados indisponíveis.
Neste momento, surgem então os direitos de primeira geração, que possibilitam aos indivíduos ter direito de defesa diante de eventuais intromissões, sem pertinência do Estado, em sua esfera privada, e, portanto, trata-se de um dever de abstenção deste[1].
De acordo com o doutrinador Bonavides, são os direitos da liberdade, os primeiros a constarem do instrumento constitucional, a saber, os direitos civis e políticos [...]. Os direitos de primeira geração ou direitos da liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado.
Evoluindo na linha do tempo e após a Segunda Guerra Mundial os Estados já tinham feito suas reformas e assumido uma posição de Estado Social. Desta forma, o Estado passa ativamente a intervir na sociedade através da produção econômica, detendo o controle do sistema de trabalho e das relações de emprego, promovendo e garantindo direitos fundamentais sociais, e desta forma, favorecendo a aproximação com a sociedade civil.
Ocorrem também neste momento, grandes mudanças na administração pública, que também passa a promover justiça social, assumindo diversas competências, aumentando consequentemente a prestação de serviços públicos.
No entanto, o Estado Social também passa a tutelar a sociedade, e retira do cidadão a sua participação, isto faz com que em um primeiro momento, os direitos sociais não fossem reconhecidos juridicamente, sendo vistos apenas como princípios políticos.
Ao contrário dos direitos relativos às liberdades clássicas, os direitos sociais funcionam como uma verdadeira forma de liberação de certas privações de origem social, tendo como objetivo a ser atingido à igualdade, ou seja, o homem passa a ser criador de relações sociais e também o produto destas. Surge então o Estado Democrático de Direito que progressivamente vai permitir aos cidadãos poder exercer seus direitos de participação na comunidade jurídica, havendo participação ativa no processo de produção do direito e com o fundamentado originariamente principal que é a lei. Tem-se a partir de então, uma profunda transformação na importância dos valores fundamentais do sistema Constitucional, e desta maneira, permitindo-se uma maior defesa dos direitos fundamentais pela sociedade através da pretensão e concretização dos direitos de ações individuais e coletivas.
No Brasil, os direitos fundamentais foram destacados pela atual Constituição da República, em seu Título II, no seu texto os ¨Direitos e Garantias Fundamentais¨, que subdivididos em cinco capítulos, consagra as suas várias espécies: I - Direitos e deveres individuais e coletivos; II - Direitos sociais; III - Direitos de nacionalidade; IV - Direitos políticos e V - Direito relacionado à existência, organização e a participação em partidos políticos.
No intuito de dar um peso maior a imperatividade das normas que traduzem direitos e garantias fundamentais, a carta magna brasileira instituiu o princípio da aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais, nos termos de seu art. 5º, §1º, assim, desde 1988, a Constituição Federal vem progressivamente conquistando seu papel de lei maior do ordenamento jurídico brasileiro, demonstrando força normativa e efetividade.
Conhecida como Constituição Cidadã, a Constituição de 1988, traz uma nova proposta com descentralização política-administrativa e participação da sociedade civil no controle social, relativamente à elaboração e execução das políticas públicas de cunho social. Trouxe também um conceito novo, o de seguridade social, composto por saúde para todos, previdência social para quem contribuir e assistência social para quem dela precisar, conforme dispõe o artigo 194, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Especificamente sobre saúde, ao disciplinar a matéria a Constituição de 1988 afirma em seu art. 6º, que são direitos sociais a educação, a saúde, [] na forma desta Constituição e depois especifíca o tema em seu artigo 196 em que a saúde é direito de todos e dever do Estado, passa então a instituir o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação da saúde. Portanto, tem-se que a partir de 1988, a prestação do serviço público de saúde, contempla a todos os brasileiros, que passaram a ser sujeitos titulares do direito à saúde, com isto, o texto constitucional apresenta, múltiplas significações, e no tocante à atribuição da saúde, aponta ser um direito subjetivo, de aplicação imediata.
A este respeito merece destaque o julgamento da Suspensão de Tutela Antecipada 175, no Supremo Tribunal Federal, quando o Ministro Gilmar Mendes[2], relator do processo, firmou seu entendimento no seguinte sentido: Dizer que a norma do art. 196, por tratar de um direito social, consubstancia-se tão somente em norma programática, incapaz de produzir efeitos, apenas indicando diretrizes a serem observadas pelo poder público, significaria negar a força normativa da Constituição, o Ministro Celso de Mello[3], por sua vez, no mesmo julgamento, enfatiza que o dever estatal de atribuir efetividade aos direitos fundamentais, de índole social, qualifica-se como expressiva limitação à discricionariedade administrativa.
Por conta dessa multiplicidade, o Supremo Tribunal Federal em seus julgados tem tomado algumas decisões de natureza distinta ao dispositivo constitucional, sem com isto, negar efetividade às suas normas. Sob o argumento de que se trata de um serviço de grande relevância pública e um direito fundamental, o STF reforçou a sua eficácia imediata, e o fez, independentemente da existência ou não, de normas infraconstitucionais da saúde.
Esta caracterização implica na exigibilidade judicial desse direito, sendo atribuído ao julgador à definição do conteúdo da norma, e, por consequência, o seu efeito político se refletirá no reforço à responsabilização dos entes da federação na sua efetivação.
A judicialização sobre o direito à saúde e o fornecimento de medicamentos é um exemplo claro deste marco da conquista, tal como ensina o professor Luís Roberto Barroso:
As normas contidas na Constituição Federal deixaram de ser percebidas como apenas integrantes de um documento estritamente político, não sendo mais mera convocação à atuação do Legislativo e do Executivo, e, portanto ganharam status de direitos fundamentais maiores, e desta forma, passaram a desfrutar de aplicabilidade direta e imediata por juízes e tribunais [4].
A tutela judicial específica se apresenta em função dos direitos subjetivos fundamentais, o que reforça a importância do contido na carta magna, que revela em seu texto, um ambiente com direitos constitucionais em geral e direitos sociais em particular.
No atual momento político social brasileiro, a sociedade procura concretizar, buscando no judiciário, a promessa constitucional de entrega universalizada do serviço de saúde, o que na verdade já vem acontecendo, quando, o Poder Judiciário determina à Administração Pública que forneça medicamentos de forma gratuita nas mais variadas hipóteses apresentadas. Estas decisões promovem uma suposta segurança jurídica quanto aos resultados das ações para os que ingressam com a demanda judicial.
Porém, ao existir um excesso de judicialização buscando o direito à saúde, entendido como direito fundamental e amparado na Constituição Federal, naturalmente ocorrerá certa falta de critérios em algumas decisões, e até mesmo distorções dos princípios de razoabilidade e proporcionalidade quando a fundamentação das decisões judiciais tendem a demonstrar um certo garantismo, baseadas em decisões extravagantes de conteúdo emocional, que não levam em consideração que o custeio de determinados tratamentos médicos, não são acessíveis e não apresentam razoabilidade, como nos casos de medicações experimentais de eficácia duvidosa, bem como nas terapias alternativas, que assim, impõem a Administração Pública a obrigação de dar ou fazer, desconsiderando a reserva do possível, uma vez que, na grande maioria das vezes, a receita não comporta tal compromisso. É sabido ser de competência do Poder Judiciário interpretar a Constituição e as leis, pois se vive em um Estado constitucional democrático de direito, e sendo assim, deve-se priorizar e respeitar o ordenamento jurídico, mas, isto somente não basta, pois, os princípios sempre devem estar envolvidos nestas decisões.
Quando o tema é a Judicialização da Saúde, este, isoladamente não tem o significado primordial de promover o ativismo judicial, que é um fenômeno a ser compreendido como a ultrapassagem das linhas que delimitam a função jurisdicional em detrimento de outras funções, que são as legislativas, as administrativas e até mesmo as das funções relativas ao governo [5]. Não são poucas as situações em que se pratica o ativismo judicial, fato realizado por juízes e desembargadores, que diante de questões que envolvem principalmente conceitos jurídicos indeterminados, e que permitam o uso de princípios. Nestas circunstancias será necessária à devida ponderação envolvendo lado a lado os direitos fundamentais e os princípios constitucionais que necessariamente estarão presentes nas decisões dos magistrados.
Cabe ressaltar, que como o tema envolve princípios e direitos fundamentais, existe um, de grande destaque e que se sobrepõe aos demais, trata-se da dignidade da pessoa humana, aqui envolvidos a vida e a saúde. Em se tratando destes bens, que são indisponíveis, fácil será a ocorrência, diante dos múltiplos casos concretos, de haver contrapontos pela variedade de sentidos possíveis dadas pela lei, exatamente por se tratarem de normas com sentido geral. A decisão fundamentada dos deveres jurídicos a serem executados em função destas normas ocorrerá em circunstâncias que haja omissão dos Poderes Públicos, assim como nas de ações que afrontem a Constituição e também nos casos de lesão ao princípio do mínimo existencial.
Ressalvadas estas hipóteses descritas, a atividade judicial precisa se importar e levar em consideração as decisões e opções administrativas e legislativas, sobretudo aquelas que foram formuladas pelos órgãos cuja competência seja específica, sob pena de, se não o fizer, de ultrapassar seus limites ao dizer e aplicar o direito nos casos concretos.
Portanto, em respeito ao conjunto de decisões legislativas e administrativas já existentes sobre a matéria, e principalmente nos casos de serem elaboradas por instituições oficiais do governo, o judiciário não deverá interferir, salvo se não estiverem sendo devidamente cumpridas. A contrário senso, se não houver lei ou ato normativo, ou até, se houver uma ação administrativa implementada em desacordo com a Constituição, o judiciário deverá agir, garantindo os direitos fundamentais.
Um ponto importante a ser considerado é que ainda hoje temos no contexto político social controvérsias sobre qual dos entes federativos tem a responsabilidade de prestar e entregar o tipo de medicação pleiteada. Estas controvérsias, na maioria das vezes, promovem uma grande disputa jurídica e administrativa, visto que a Constituição Federal em seu artigo 24, inc. XII e no 30, inc. II, atribui competência concorrente entre os entes federativos para legislar sobre o assunto, ou seja, proteção e defesa da saúde. Trata-se de um cenário, onde frequentemente existem superposições de esforços e de defesas, com envolvimento das entidades federativas, gerando aumento de gastos, comprometimento do tempo útil dos servidores e agentes públicos envolvidos e levando a uma prestação jurisdicional deficiente[6].
Quanto à distribuição de medicamentos, a competência específica de cada ente federativo não está descrita, nem na Constituição Federal, nem na lei, desta forma, esta falta tenta ser preenchida com o objetivo de se ter critérios mínimos e haver uma repartição efetiva de competências dos inúmeros atos administrativos federais, estaduais e municipais. O que na verdade existe, é um esboço e não um comando determinante, através da Portaria nº 3.916/98 do Ministério da Saúde, que versa sobre a Política Nacional de Medicamentos.
De acordo com esta diretriz, de maneira bem simplificada, na universalidade da prestação dos serviços, os diferentes entes federativos em reciprocidade colaborativa, confeccionam e elencam listas de medicamentos que serão adquiridos, com posterior fornecimento à população.
Como a judicialização de fornecimento de medicamentos ocupa a grande maioria das demandas judiciais que promovem a chamada Judicializaçao da Saúde, algumas decisões judiciais, devem considerar aspectos elementares importantes, como discutir a alteração das listas elaboradas pelo Poder Público que devem evidenciar a comprovada eficácia das substâncias.
Neste sentido, existem decisões dos tribunais superiores, como foi o caso, por exemplo, do Superior Tribunal de Justiça que suspendeu liminar em ação civil pública que obrigava o Estado a distribuir um tipo diferenciado de Interferon, muito mais caro, pelo Interferon comum, que já era fornecido gratuitamente [7].
O entendimento foi no sentido de que o novo medicamento possuía um custo muito elevado em comparação com o comum, e principalmente, que não possuía eficácia comprovada através das notas e pareceres técnicos disponíveis dos órgãos competentes reguladores do sistema SUS. Houve o consenso de que o Judiciário não poderia se basear em opiniões médicas minoritárias ou mesmo em casos isolados de eficácia do tratamento.
Alguns outros parâmetros podem influenciar na tomada de decisões pelo judiciário, como as substâncias já disponíveis no país, pois a inclusão, ou não, de um novo medicamento ou tratamento médico nas listas elaboradas pelos entes federativos, ou seja, que se vinculam aos Poderes Públicos, ao privilegiar os medicamentos disponíveis no mercado nacional e utilizando preferencialmente àqueles conveniados ao SUS, estará favorecendo a garantia do direito à saúde de acordo com o princípio constitucional do acesso universal e igualitário.
Por outro lado, a opção pelo menor custo sem prejuízo de seus efeitos terapêuticos, direciona o Judiciário pelas mesmas razões a optar pelo medicamento genérico.
O medicamento genérico regulado pela Lei nº 9.78799, é aquele que tem o mesmo princípio ativo do produto de referência, podendo ser produzido após a expiração da proteção patentearia, havendo a comprovada eficácia, qualidade e segurança do produto.
Outro parâmetro importante a ser considerado também, nas decisões judiciais, é se o medicamento é essencial à sobrevivência de pacientes, principalmente para aqueles enfermos que tenham prognóstico difícil e manejo reservado da doença, pois os medicamentos de potencial curativo deverão ter preferência em relação a outros que somente causem uma melhor qualidade de vida, ou seja, uma sobrevida temporária.
Apesar dos entes da federação elaborar isoladamente as listas de medicamentos, o Judiciário entende ser possível haver a responsabilidade de forma solidária entre eles, pois se trata de competência comum, o raciocínio deste parâmetro é que ao elaborarem as listas, os entes da federação, estão autovinculados, consequentemente em havendo a decisão política de determinado ente incluir um medicamento em sua lista, todos ocuparão o pólo passivo, o que á acontece na prática, em caso de uma demanda eventual. Claramente, este posicionamento não contribui para dar uniformização e segurança ao sistema existente de repartição das atribuições.
No tocante ao ajuizamento de ações, sabe-se que os cidadãos necessitados podem perfeitamente ingressar no judiciário com ações individuais, para postularem os medicamentos constantes nas listas existentes e elaboradas pelo Poder Público, em assim sendo, como já referido, o polo passivo da demanda será ocupado pelo ente federativo; União, Estado ou Município, que tiver incluído em sua lista o medicamento, tratando-se nestes casos da efetivação da decisão política específica do Estado, que será discutida de forma jurídica.
Cabe ressaltar, que no âmbito de ações coletivas as decisões serão mais abrangentes, uma vez que, as complexas avaliações técnicas de ordem médica, administrativa e orçamentária, dizem respeito primariamente aos Poderes Legislativo e Executivo em seus programas de políticas públicas. Vale ressaltar também, que privilegiar ações coletivas, em detrimento das ações individuais, para restringir as últimas apenas nas hipóteses de danos irreversíveis e naquelas não observadas nos direitos conferidos pelo legislador com base na lei, possivelmente será capaz de desorganizar menos a Administração Pública, pois é sabido, que as ações coletivas garantem a universalização da medida, atendendo de forma mais isonômica e a um público maior que esteja em condições semelhantes, e, por serem de caráter eminentemente social, trata-se do caminho natural a ser seguido, principalmente quando se tratam de direitos fundamentais e não restam dúvidas que existe uma enorme, clara vantagem potencializada na utilização dos processos coletivos, uma vez que, estarão sendo efetivados e tanto o reconhecimento destes direitos, quanto a sua igualdade na redistribuição.
Deve-se destacar neste contexto a atuação do CNJ - Conselho Nacional de Justiça que disponibilizou uma ferramenta para auxílio nos processos de Judicialização da Saúde, trata-se do e-NATJus[8]. Esta plataforma oferece uma boa alternativa e elementos para o andamento destes processos e favorece aos magistrados prolatar decisão terminativa buscando o melhor mérito.
Dentre outros tópicos temos o cadastramento e a solicitação das notas técnicas na área da Saúde para avaliação dos Núcleos de Avaliação de novas Tecnologias NATs, concentrando em um único banco de dados diversos pareceres e notas técnicas, uniformizando o modelo de pedido e de respostas das notas e pareceres técnicos, faz o controle de acesso ao sistema, pois exige o prévio cadastramento pelo CNJ, facilitam a obtenção de dados estatísticos permitindo que sejam feitos relatórios circunstanciados sobre os vários temas de Judicialização da Saúde, evita a disseminação de informações inadequadas sobre produtos e tecnologias em Saúde, aproxima os agentes do sistema de saúde dos componentes do sistema de justiça. Além disto, faz uma prevenção da Judicialização da Saúde, pois, disponibilizando publicamente os pareceres e as notas técnicas evitam a formalização de pedidos cujos tratamentos medicamentosos ou com aquele específico medicamento, não seja adequado.
Por fim, permite que os magistrados do Brasil tenham acesso a estas notas e pareceres técnicos que irão auxiliar na tomada de decisões qualificadas, pois concentra as melhores evidencias científicas na área da Saúde, reduzindo assim a possibilidade de decisões judiciais conflitantes em temas relacionados a medicamentos e também outros tratamentos.
Assim, o CNJ, órgão do poder judiciário com competências administrativas, mantem a necessidade de contribuição ao país para qualificar a atividade jurisdicional, evitando a venda de ilusões na Judicialização da Saúde e promovendo, consequentemente, que haja uma maior racionalidade nos processos judiciais.
Por outro lado a Constituição Federal em seu artigo 129 elenca as funções institucionais do Ministério Público, dentre as quais, temos o de tutelar o bem público e poder promover as ações judiciais para a defesa e no interesse dos direitos difusos e coletivos [9].
A atuação ministerial é extremamente importante na área da saúde e acontece basicamente em atuações extrajudiciais em que o Ministério Público se reúne com os agentes envolvidos para a discussão das questões de direito sobre a saúde, promovendo inclusive acordos judicialmente se não houver sucesso na pactuação, quando então o MP atuará na defesa dos interesses indisponíveis. No entanto, sabe-se que o Ministério Público, não tem legitimidade para ajuizar ações individuais, porém, o entendimento do judiciário evoluiu permitindo que o MP possa atuar em defesa de uma pessoa apenas.
Há decisão do Supremo Tribunal de Justiça STJ, neste sentido, tendo fixado a seguinte tese: ¨O Ministério Público é parte legítima para pleitear tratamento médico ou entrega de medicamentos nas demandas de saúde propostas contra os entes federativos, mesmo quando se tratar de feitos contendo beneficiários individualizados, porque se trata de direitos individuais indisponíveis, na forma do artigo 1º da Lei nº 8625/1993 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público).
Tal entendimento já era aceito pelo Supremo Tribunal Federal STF, desta forma fica superada a idéia de que o MP somente poderia atuar e ajuizar ação na defesa de pessoa individualizada na ausência de defensoria publica ou advocacia dativa na localidade.
Embora verdadeiramente o MP deva atuar de modo coletivo, visando beneficiar o maior número de pessoas.
Desta forma o MP torna-se um importante ator no auxílio de melhorias na construção de políticas do SUS e também de concretização de Direito à Saúde.
2.2 SOBRE O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
A atual Constituição Federal que legitíma o Estado Constitucional Democrático de Direito, gira e tem sua base, em torno da dignidade da pessoa humana e da centralidade dos direitos fundamentais. A dignidade da pessoa humana é o núcleo do qual emanam os direitos fundamentais, desta forma, tem como ponto primordial a proteção aos sujeitos de direitos encontrando amparo constitucional nos artigos 1º, 3º, 5º, 109 §5º, trata-se de princípio que envolve e norteia todo o sistema jurídico nacional.
Quando se fala de direitos fundamentais estamos incluindo a liberdade de agir, ou seja, trata-se da autonomia da vontade, é o direito de cada um de poder planejar e eleger seus projetos existenciais, a igualdade, que nada mais é do que o direito em fazer parte da sociedade e de ser tratado com dignidade igual a todas as demais pessoas, não havendo discriminações, arbitrariedades e não cabendo exclusões evitáveis. E quanto ao subprincípio do mínimo existencial, que corresponde às condições básicas e elementares de educação, saúde e renda que em conjunto, possibilitam o acesso aos valores civilizatórios e a participação com fundamentos no processo político e no cenário de anseios da sociedade, ou seja, é o conjunto de bens indispensáveis para satisfação de seus direitos fundamentais primários. É um princípio fundamental implícito.
Na visão de Luís Roberto Barroso, o princípio da dignidade da pessoa humana é composto por três elementos, valor intrínseco, autonomia e valor social [10]. O valor intrínseco distingue a pessoa humana dos outros, dos demais seres vivos e das coisas, ficando claro que as coisas têm preço e as pessoas têm dignidade, inteligência, sensibilidade e comunicação e materializa o direito à vida, a igualdade e a integridade física e moral.
Para o referido jurista, a autonomia da vontade significa que o indivíduo pode escolher os rumos da sua vida sem a intervenção estatal. Sendo a heteronomia à vinculação das pessoas em relação ao grupo, projetando-se também a solidariedade, e, reforça sua posição, de acordo com seus estudos, em que a dignidade da pessoa humana, nos direitos fundamentais da Constituição Portuguesa, precisa ser vista através de três perspectivas; individual, universal e no âmbito livre. É um princípio relativo como qualquer outro, mas que contempla um valor fundamental para o sistema jurídico dando incremento aos direitos fundamentais e ao Estado Constitucional.
Já para Sarlet, a dignidade da pessoa humana constitui o caminho e a direção a ser seguido não apenas dos direitos fundamentais, mas efetivamente, da ordem jurídica como um todo incluindo a constitucional e infraconstitucional [11].
A maior crítica estabelecida ao princípio da dignidade da pessoa humana existe quanto à sua amplitude e elasticidade e também quanto à sua ambiguidade o que permite sua invocação na retórica em praticamente qualquer situação.
Diante de todo o exposto, conclui-se que este princípio fundamental, não pode ser invocado isoladamente para a resolução de todos os casos sobre saúde. Ele servirá de importante parâmetro de argumentação, mas em conjunto com outro princípio, ou outro valor constitucional para consubstanciar a argumentação jurídica.
A importância do princípio implícito na dignidade da pessoa humana que é o mínimo existencial, já foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal, conforme destaque na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental ADPF nº 45.
Cabe ressaltar que os poderes, legislativo, executivo e o judiciário, têm o poder/dever de construir e realizar os direitos fundamentais, com o maior alcance possível, mas sempre levando em consideração e tendo como fator limitante o cerne destes direitos.
Para aqueles que defendem esta corrente, o princípio da dignidade humana, impõe os limites necessários para a atuação do Estado, fundamentado, no objetivo de impedir a violação da dignidade pessoal. Isto justificaria para grande parte da doutrina que este seja considerado como o princípio de maior hierarquia.
Tal fundamento possibilita também, presumir que para não haver esta violação, o Estado deve ter como meta permanente, a proteção, a promoção e realização da vida com dignidade para todos, pretendendo ter a maior abrangência possível.
E quanto a isto, Daniel Sarmento tem o seguinte posicionamento:
O princípio da dignidade da pessoa humana representa o epicentro axiológico da ordem constitucional, irradiando efeitos sobre todo o ordenamento jurídico () o princípio em questão é o que confere unidade de sentido e valor ao sistema constitucional, que repousa na idéia de respeito irrestrito ao ser humano razão última do Direito e do Estado [12].
Portanto, esse princípio impõe ao Estado, como atividade, o dever de respeito e proteção, assim como, a obrigação de promover diretrizes caso surjam obstáculos que impeçam as pessoas de viver dignamente. E isto inclui as demandas pela saúde englobando o fornecimento de serviços e medicamentos.
2.3 LIMITAÇÃO DO USO DOS PRINCÍPIOS NA EFETIVIDADE DO DIREITO À SAÚDE
Sobre o uso dos princípios constitucionais em se tratando de direito à saúde, tem-se que levar em conta uma teoria que se desenvolveu a partir de estudos de Ronald Dworkin, que passaram a ser difundidos no Brasil, trata-se da teoria dos princípios [13].
Essa teoria está associada a uma defesa da teoria dos direitos fundamentais, que em um momento posterior, Robert Alexy, aproximou a categorias do direito romano-germânico, e então, as obras daqueles autores europeus passaram a influenciar o pensamento do direito brasileiro, deflagrando uma grande corrente de estudos sobre o tema em território nacional.
É da maior importância no pensamento jurídico atual, a atribuição de caráter normativo aos princípios, e a clara distinção entre as regras e os princípios, existe uma variedade de critérios e estabelece-se a diferença entre ambos utilizados pela doutrina. Segundo o professor Barroso devemos observar que é quanto ao modo de aplicação que reside a principal distinção entre regra e princípio. Regras se aplicam na modalidade tudo ou nada: ocorrendo o fato e sendo descrito em seu relato, ela deverá incidir, produzindo o efeito previsto [14]. De acordo com o ministro, se não for aplicada à sua hipótese de incidência, vamos estar diante de uma violação da norma jurídica. Não havendo, segundo nos ensina, margem para elaboração teórica ou para atribuir valor por quem deve interpretar, só caberá apenas e tão somente aplicar a regra, fazendo o enquadramento do fato na norma, e assim, obtendo uma conclusão objetiva.
Pode-se dizer que regras são comandos legais e definitivos, ou seja, uma regra somente não será aplicada se outra a impuser exceção, ou se for considerada inválida, e, portanto terá como consequência, que os direitos dela emanados também serão definitivos.
No caso dos princípios, eles contêm um direito fundamental, ou seja, um valor e uma finalidade.
Como a Constituição apresenta diversos princípios que levam as mais variadas direções, o que gera conflitos, tensões e eventuais colisões entre eles, será necessário fazer as ponderações nos casos concretos que se apresentarem como conflitantes. É importante ressaltar que existe a colisão entre os próprios princípios constitucionais, a colisão entre os próprios direitos fundamentais e a colisão entre direitos fundamentais e outros princípios constitucionais.
Há de se destacar que essas normas confrontadas e em rota de colisão têm a mesma hierarquia[15], estando impedidas de aplicar a mesma resolução das regras, não cabendo à aplicação objetiva, mas sim uma ponderação de acordo com o tamanho e o peso que elas têm na situação específica. Caberá como solução a ponderação dos princípios envolvidos e dos fatos relevantes e não a simples adequação do fato a uma determinada regra.
Desta forma, os princípios devem ser realizados na maior intensidade possível, em detrimento dos demais elementos jurídicos presentes na hipótese apresentada. Em decorrência disto, os direitos neles fundados poderão ser exercidos em princípio e na medida do possível.
Caso o legislador realize ponderações em abstrato, e para isto irá definir parâmetros a serem seguidos nos casos de colisão, não deverá ser parcial a ponto de fazer preponderar a sua própria valoração sobre a que foi feita pelo órgão de representação popular, salvo, se estiver convencido, e puder fundamentar, demonstrando que a norma é incompatível com a Constituição Federal.
Como menciona Américo Bedê [16]:
A aplicabilidade imediata, somada a uma interpretação constitucional de princípios, permite que exista uma verdadeira força vinculante da Constituição e não apenas das normas constitucionais que são consideradas convenientes pelos detentores do poder.
Assim, mesmo sendo reconhecida a normatividade dos direitos sociais, as omissões estatais não estão sendo satisfatoriamente corrigidas. Em função disto, se destaca a importância do Judiciário para a efetivação dos direitos fundamentais sociais, principalmente quando existe a omissão total ou mesmo parcial dos demais poderes constituídos.
Apesar de posicionamentos contrários, o Poder Judiciário é o órgão legítimo para dar efetividade ao controle de políticas públicas e sociais, quando omissos os poderes de competência específica, não podendo atuar com voluntarismos hermenêuticos ou criações morais em desacordo com a realidade social em que vivemos e das próprias regras do sistema constitucional em vigência.
Para a obtenção de sua efetividade uma grande parte da população tem ingressado na instância judicial, para obter a definição de temas importantes para a sociedade brasileira, o que faz aparentar ao público em geral, ser o âmbito judicial, um novo local de debates.
Também vale destacar, quando o assunto é sobre a limitação do uso dos princípios na efetividade do direito à saúde, a questão envolvendo a falta de recursos, princípio da reserva do possível, para efetivação de direitos, que pela peculiaridade, deve ser avaliado caso a caso e de acordo com o sumário fático apresentado.
Cabe ressaltar, que se tem também, o princípio da separação dos poderes, válido dentro do âmbito federativo, mas também existe o comando legal constitucional de haver competência concorrente dos entes federativos para legislar sobre proteção e defesa da saúde, fato que ensejou a criação do SUS Sistema Único de Saúde.
Já na vigência da Constituição Federal de 1988, houve a aprovação da Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/90). A lei discorre e desenvolve a estrutura e o modelo operacional do SUS, tanto na sua forma de organização quanto no de funcionamento.
O SUS é na verdade um conjunto de ações e serviços de saúde, realizados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, tanto da administração direta quanto da indireta.
Não é proibida a participação da iniciativa privada no SUS [17] mas basicamente, isto acontece em caráter complementar.
Conforme dispõe o artigo 6º, VI da lei 8080/90, são atribuições do SUS;... a formulação da política de medicamentos,[...], e outros insumos de interesse para a saúde e a participação na sua produção.
A lei em seu texto, além de montar a estrutura do SUS [18]·, também norteia os princípios pelos quais deve orientar sua atuação, destaque principal para aquele que garante a participação de todas as pessoas ao acesso das ações de saúde e seus serviços, que exatamente
vem a ser o princípio da universalidade, além deste princípio tem-se também o da subsidiariedade e a municipalização, que basicamente atribui responsabilidade prioritária aos municípios na execução das políticas de saúde em geral e de distribuição de medicamentos.
Também encontramos na Lei nº 8.080/90 o que cabe a cada ente federativo na questão, basicamente a direção nacional do SUS, atribuiu a competência de prestar cooperação técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para o aperfeiçoamento da sua atuação institucional (art. 16, XIII), deve promover a descentralização para as Unidades Federadas e para os Municípios, dos serviços e ações de saúde, respectivamente, de abrangência estadual e municipal (art. 16, XV). Já a direção estadual do SUS, a Lei nº 8.080/90, em seu art. 17, atribuiu as competências de promover a descentralização para os municípios dos serviços e das ações de saúde, de prestar apoio técnico e financeiro, e de executar supletivamente ações e serviços de saúde.
Os verbos e as seus respectivos significados de planejar, organizar, controlar, gerir e executar os serviços públicos de saúde cabe à direção municipal do SUS, e somente de modo complementar a Estados e União, o suprir, nas ausências do município para a execução de políticas de saúde, ficando bem claro a caracterização da descentralização administrativa.
Portanto, a distribuição de competências contida na Constituição Federal e também da Lei nº 8.080/90 se baseiam na subsidiariedade e na municipalização. Há ainda determinado pela lei, a participação dos entes federativos no sistema de financiamento. Neste sentido, cabe ressaltar, que não significa dizer que o ente da federação a quem incumbe fornecer determinado bem seja o que deve custeá-lo sozinho.
2.4 RESERVA DO POSSÍVEL E FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS
O instituto da reserva do possível é o principal contraponto à concessão dos direitos sociais e particularmente das demandas da saúde, porém, não se pode desconsiderar que estes direitos que são sociais e fundamentais, são a base do Estado Social e do bem estar, tendo força para mitigar o status negativo do princípio e fazer preponderar o chamado estado mínimo existencial, princípio implícito e subprincípio da dignidade da pessoa humana. As justificativas usadas para a negativa destes direitos são muitas e as fundamentações variadas, causa, de um debate constitucional de grande alcance, passando pela ótica filosófica e termina com as críticas operacionais, aí se incluindo, a reserva do possível.
O debate constitucional envolve o impacto provocado por um conjunto novo de ideias chamado de pós-positivismo, que é um esforço de superação do legalismo estrito, tem-se então, a formação de uma nova hermenêutica constitucional e o crescer de uma teoria de direitos fundamentais baseada sobre a ideia da dignidade da pessoa humana. Pode-se se dizer que neste momento houve a reaproximação do Direito com a Ética.
Contudo, vale ressaltar, que a definição de gastos dos recursos públicos devem ser decididos através de esfera de deliberação democrática e não dos magistrados, uma vez que, deve-se respeitar o princípio de separação dos poderes, além do mais a invasão pelo Judiciário poderia produzir um desequilíbrio inesperado que comprometeria o funcionamento regular da Administração Pública.
Sob a ótica filosófica [19] a crítica maior se dá por conta da suposta presunção de que os juristas e os juízes tomariam melhores decisões nas matérias de políticas públicas do que os agentes públicos competentes e encarregados desta função questiona-se a legitimidade democrática dos magistrados, uma vez que não foram eleitos por voto popular e, portanto não deveriam interferir em políticas públicas, assim como também no que concerne a sua legitimidade essencial.
Quanto ao debate sobre os direitos sociais e o controle de políticas públicas, se ultrapassar o aspecto jurídico, deverá necessariamente considerar questões morais e questões técnicas e além das questões políticas e de contingência. Os magistrados não são experts em se tratando da realização estatal e, certamente vão ignorar outras necessidades relevantes e a imposição implacável de gerenciar recursos limitados, a fim de atender as demandas, isto, é denominado pela doutrina como micro justiça.
Trata-se na verdade, da teoria da asserção, onde o magistrado aprecia a exordial do autor aceitando tudo o que é relatado como verdadeiro e ato contínuo, profere a sentença.
De acordo com Câmara [20]
Parece-nos que a razão está com a teoria da asserção. As condições da ação são requisitos exigidos para que o processo vá em direção ao seu fim normal, qual seja a produção de um provimento de mérito. Sua presença, assim, deverá ser verificada em abstrato, considerando-se por hipótese que as assertivas do demandante em sua inicial são verdadeiras, sob pena de se ter uma indisfarçável adesão às teorias concretas da ação. Exigir a demonstração das condições da ação significaria, em termos práticos, afirmar que só tem ação quem tem o direito material.
Basicamente os magistrados verificam de início se a demanda é de saúde básica, média ou alta complexidade, para verificar a legitimidade das partes e definir contra qual dos entes federativos deve ser proposta e contra quem foi instada. Considerando que cada ente possui atribuição específica dentro do sistema de saúde não se tratará de responsabilidade solidária, de acordo com a posição de Menezes, embora haja jurisprudência dos tribunais superiores em sentido oposto.
Na sequência da consecução formal, uma vez verificada a legitimidade das partes e o interesse de agir, será buscado o motivo que levou a negativa em sede administrativa, além disto, itens como: se o medicamento é aprovado pela Anvisa, se é fornecido pelo SUS, e em sendo o motivo pelo qual não foi entregue ao Autor, buscar o conhecimento se existem políticas públicas e se há orçamento para o fornecimento do mesmo. Sobre uma postura mais ativa do Judiciário no tocante à ineficiência ou até inexistência de políticas públicas e sociais, visando efetivar os direitos fundamentais, esta vem sendo afirmada não apenas pela doutrina, mas pela jurisprudência nacional. Destacam-se, pois, pelo conteúdo robusto de seus fundamentos, a decisão inicial proferida pelo STF na ADPF 45 [21], in verbis:
A questão da legitimidade constitucional do controle e da intervenção do poder judiciário em tema de implementação de políticas públicas, quando configurada hipótese de abusividade governamental. Dimensão política da jurisdição constitucional atribuída ao supremo tribunal federal. Inoponibilidade do arbítrio estatal à efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais. Caráter relativo da liberdade de conformação do legislador. Considerações em torno da cláusula da "reserva do possível". Necessidade de preservação, em favor dos indivíduos, da integridade e da intangibilidade do núcleo consubstanciador do "mínimo existencial". Viabilidade instrumental da arguição de descumprimento no processo de concretização das liberdades positivas (direitos constitucionais de segunda geração).
E tem-se como decisão posterior pela perda superveniente de seu objeto:
(...) conclui-se, desse modo, que o objetivo perseguido na presente sede processual foi inteiramente alcançado com a edição da Lei 10.777, de 24/11/2003, promulgada com a finalidade específica de conferir efetividade a EC 29/2000, concebida para garantir, em bases adequadas e sempre em benefício da população do país recursos financeiros mínimos a serem necessariamente aplicados nas ações e serviços públicos de saúde (...) sendo assim, tendo em consideração as razões expostas, julgo prejudicada a presente Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, em virtude da perda superveniente de seu objeto.
Na verdade existe um importante custo com o incremento da Judicialização da Saúde, pois embora deva se levar em consideração a reserva do possível e o desvio de recursos orçamentários, as decisões, estatisticamente apresentam uma tendência à concessão do pleito. Nas ações civis e nos mandados de segurança que são impetrados para conseguir prestação positiva do Estado, principalmente pelo tema ser sobre as políticas públicas, é alegado como tese de defesa da Fazenda Pública a necessidade de se respeitar a reserva do possível, o que significa dizer que deve-se ter recursos públicos disponíveis e previsão orçamentária de forma específica. Porém, desta forma que se apresenta este princípio, não vem sendo amparado pela jurisprudência majoritária, possivelmente por denotar uma submissão dos direitos fundamentais à discricionariedade do administrador, representando, portanto uma restrição ao mínimo existencial.
Neste contexto, destaca-se o icônico voto[22]do Ministro Celso de Mello no julgado pelo plenário do STF, registrado como Pet. 1246/MC/SC de 31 de janeiro de 1997, que significou na prática jurídica, a impossibilidade de qualquer outro discurso com argumentação relacionada à reserva do possível, em que se pede transplante das células mioblásticas para tratamento de doença rara denominada Distrofia Muscular de Duchenne, aparece uma passagem do Ministro Celso de Mello muito importante para este estudo, não só pelo número de vezes em que é citada por outras decisões, mas também pela sua peremptoriedade:
Entre proteger a inviolabilidade do direito à vida, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado pela própria Constituição da República (art. 5º, caput), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo - uma vez configurado esse dilema - que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: o respeito indeclinável à vida.
A solução parece fácil quando reduzida a uma simples escolha entre proteger a vida ou garantir o interesse financeiro e secundário do Estado, e uma vez tendo influenciado a jurisprudência do Brasil, em termos práticos significou o reconhecimento de que o SUS estava obrigado a fornecer qualquer medicamento, mesmo que com alto custo e de eficácia terapêutica discutível.
Assim, tanto a defesa do Estado se tornou impossível, quanto à reserva do possível uma desacreditada letra da lei.
O tema envolvendo os custos sociais e a limitação dos recursos orçamentários parece ter uma solução fácil para os que acreditam que por serem positivados na Constituição Federal terão concretização imediata.
O fato é que deve-se entender melhor estas decisões e buscar a realidade dela decorrente, ou seja, as consequências danosas que dela podem decorrer como o desvio de verbas destinadas previamente a outros programas governamentais e o não alcance da demanda pleiteada para todos.
3- CONCLUSÃO
O quadro envolvendo a chamada Judicialização da Saúde é basicamente caracterizado pela existência de demandas judiciais de forma excessiva, resultante da tensão entre os valores protegidos pela Constituição que são o direito do cidadão à prestação de serviços garantidores de sua vida e saúde, em oposição, ao dever/poder do Estado de organizar e delimitar os recursos disponíveis para tanto, destinando universalmente a efetividade das prestações de saúde, a fim de alcançar toda a coletividade, a abordagem sobre a Judicialização da Saúde no fornecimento de medicamentos, é considerada como um direito fundamental social e um dever a ser provido pelo Estado. Neste sentido foi realizado um aprofundamento do atual momento político social brasileiro, com os princípios constitucionais envolvidos na prestação jurisdicional, assim como a limitação do seu uso na efetividade do direito à saúde, uma vez que, são direitos fundamentais sociais, dotados de um caráter objetivo, sendo concebidos como os valores dignos de proteção constitucional.
Foi dado ênfase ao direito fundamental social à saúde, e conferida uma primazia, em caso de disputa ou colisão com outros direitos fundamentais, sejam individuais, sejam sociais coletivos, pois a saúde é fruto da elevação do princípio da dignidade humana, colocado como eixo do sistema constitucional brasileiro, princípio que impõe ao Estado, como atividade, o dever de respeito e proteção, e a obrigação de promover diretrizes diante de obstáculos que impeçam as pessoas de viver dignamente, as ações e serviços de relevância pública em termos de proteção, prevenção e saúde, através do Sistema Único de Saúde, é um dever a ser realizado pelos entes federativos, não cumprido, resultará em direitos exigíveis no judiciário.
Discutiu-se aspectos doutrinários e jurisprudenciais que influenciam e garantem o direito à saúde, a repartição de competências entre os entes federativos e a lei do Sistema único de Saúde SUS, além disto, a atuação do judiciário e os limites necessários de suas decisões nas políticas de saúde e ao fornecimento gratuito de medicamentos, com uma visão crítica a judicialização excessiva.
Constatou-se que o limite da aplicabilidade das medidas judiciais está diretamente ligada a efetiva prestação dos serviços através do SUS, concluiu-se que o judiciário pode mitigar injustiças e perdas de oportunidades, incluindo o momento terapêutico do pretendente ao direito, mas, o norteamento destas decisões deve ter fundamento na proporcionalidade e razoabilidade para solução das lides, destacando a importância da distinção a ser feita sobre o alcance e a efetividade nas ações individuais e coletivas.
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